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Sabia que ele poria constantemente em causa a minha forma de viver e de agir, tentando impor as suas ideias sobre tudo. Eu teria de estar sempre a justificar as minhas legítimas opções. A minha profissão de empregada de limpeza também seria questionada e criticada por ele, porque já não era a primeira vez que o fazia. Dizia-me com frequência que não entendia como uma pessoa com instrução se sujeitava a limpar as casas que outros sujavam. Por isso, quanto às cartas, nem as leria. Apesar dos nossos laços familiares, não havia proximidade que implicasse o sacrifício de o receber e viver com ele durante uns tempos. Mesmo que fossem breves, parecer-me-iam intermináveis. De vez em quando, responderia a uma das cartas para lhe atenuar os mais do que certos estados de solidão e melancolia.
O tempo foi passando em West Hampstead, onde eu gostava cada vez mais de viver. Durante algumas semanas, respondi a duas cartas de Noé, omitindo sempre o convite que ele esperava e que me lembrava em toda a correspondência. Numa das cartas, Noé voltava a falar das peças que havia feito para me oferecer. E que já as tinha embrulhado. E que já as tinha posto na mala. E que me enviava um excerto de Victoria que tinha copiado à mão. E que, se eu pretendesse, me mandaria mais páginas, porque, como não podia trabalhar, tinha muito tempo livre e havia sido aconselhado pelo médico a ocupá-lo a seu gosto. No tempo em que estivesse comigo, para além de poder ensinar-me uma língua nova, poderia falar-me da vida e da obra de pintores noruegueses como Edvard Munch que, tal qual como ele, conhecera tristezas e deceções. Bastaria ver o quadro "Melancolia", um dos seus preferidos.
Dizia também que não esquecia que tinha mais família, mas que, tal como eu bem sabia, comigo o diálogo sempre fora mais fácil. Voltar a Portugal estava fora de hipótese, porque sentia-se desenraizado no seu país natal, donde saíra havia demasiados anos e sentia que os laços familiares e de amizade já se tinham quebrado. Recordava-me que, entre mim e ele, o contacto nunca se perdera. E que ambos gostávamos de Arte, incluindo Literatura, e que esses eram fortes traços de união. De novo não respondi de imediato. Para mais, Noé não tinha e-mail e a comunicação era feita por carta, à moda antiga, o que implicava mais tempo para me deslocar aos Correios.
Porém, em casa e no meu trabalho, os pedidos de Noé passaram a ser recorrentes na minha cabeça, porque, afinal de contas, ele era um ser humano de certeza em sofrimento. Entrei numa fase de dúvida e hesitação que me levou, não sei se por cansaço se por magnanimidade, à aceitação da sua vinda. Bem vistas as coisas, talvez fosse melhor recebê-lo. Ele já não era nada novo, vivia uma situação desesperada por causa da separação da mulher, que ele dizia continuar a amar profundamente. Julgo que só quando falava dela era verdadeiro até às lágrimas.
Foi quando, finalmente, tomei a decisão que julgava definitiva.
(III)