segunda-feira, 13 de julho de 2020

Ler e partilhar


Tenho uma amiga que tem o bom hábito de partilhar algumas leituras.
Como é uma excelente leitora. dá assim a conhecer obras e autores muito bons,
mas, pelo menos para mim, muitas vezes desconhecidos.
Desta vez, partilhou o excerto seguinte.
Para além do prazer do texto, o autor - ou narrador - levanta problemas atuais e pertinentes.
Realço o que é abordado nas últimas linhas.
Obrigada, Idalina

“Tinha apenas onze ou doze anos quando o meu tio me ensinou a manejar a espingarda: nesse tempo, as crianças amadureciam cedo; com nove ou dez anos já ajudávamos no campo, nas obras, nas oficinas. Ao primeiro tiro, o coice da espingarda deixou-me uma nódoa negra no ombro e quase me atirou ao chão. Como seria de esperar, errei o alvo, e voltei-me para o meu tio, mortificado de vergonha. Esperava que zombasse de mim, mas não, não se riu, como eu temia; passou-me a mão pela cabeça, deu-me um piparote e disse-me: acabas de ganhar o poder de dar morte ao que está vivo, um poder que é na verdade uma desgraça, porque o verdadeiro poder – e esse ninguém o tem, nem mesmo Deus, porque aquela história de Lázaro é uma patranha – é devolver a vida ao que está morto. Tirar uma vida é fácil, qualquer um o pode fazer. Fazem-no todos os dias por esse mundo fora. Abre o jornal e logo vês. Até tu podes tirar uma vida, desde que melhores a pontaria, claro está (aqui, sim, sorriu, galhofeiro, semicerrando os olhos cinzentos e vivos que o bom humor rodeava de uma teia de aranha de pequeninas rugas). O homem, que é capaz de construir enormes edifícios, de fazer desaparecer montanhas inteiras, de abrir canais e erguer pontes sobre o mar, não consegue fazer com que uma criança morta volte a abrir as pálpebras. Por vezes, o maior e mais pesado é também o mais fácil de mover. Pedregulhos enormes na traseira de um camião, vagões carregados de metais pesados. Mas aquilo que guardas dentro de ti, os teus pensamentos e desejos, que aparentemente nada pesam, não há Hércules que consiga carregá-los aos ombros para outro lado. Não há camião que os transporte. Conseguir o amor de alguém que te despreza, ou a quem és indiferente, é uma tarefa bastante mais difícil do que atirá-lo ao chão com um murro. Os homens batem por impotência. Julgam conseguir por meio da força aquilo que não alcançam por meio da ternura e da inteligência. “

Rafael Chirbes, Entre Margens, 2015.


domingo, 12 de julho de 2020

Frescas flores from London




Também dávamos passeios na avenida


O hotel era Avenida. O nome mantém-se no cimo da porta principal deste hotel em ruínas, nas termas de Vidago.
Pouca mais resta intacto: janelas partidas, cortinas todas rotas, só ervas daninhas no que era jardim...
A porta principal está aberta, vendo-se a escadaria com muitos cacos espalhados.
Passei lá num dos últimos dias.
E impossível não recordar alguns dias que a família lá passou, há muitos anos, para tratamentos gástricos do meu pai.
Nessa altura, havia muita gente dentro e fora do hotel, as refeições eram à hora certa, as mulheres conversavam enquanto faziam renda e trocavam amostras, os homens liam o jornal e conversavam sobre os assuntos do dia, ou melhor, sem saberem ao certo de que dia eram, porque o lápis azul encarregava-se de apagar o que queria. 
Muitos serões eram dançantes, o que exigia indumentária mais cuidada. Julgo que havia música ao vivo que tocava muito chegadinhos slows.
Durante o dia, em horas de menos calor, também dávamos passeios na avenida, sobretudo até ao parque.


Não sou muito saudosa do passado, mas tenho muita pena de ver casas a cair de abandono. 
Estas e outras termas caíram em desuso.
Vão renascendo agora, sobretudo com serviços de relaxamento, mas a pandemia não ajuda.
Quando agora lá passei, olhando uma das janelas, vi um pedaço de cortina a esvoaçar fora do vidro partido com uma folha seca presa na ponta.
Parecia a mão de um fantasma a dizer adeus numa casa assombrada. A folha, entretanto, desprendeu-se do farrapo da cortina que continuou ao sabor do vento. 
Ou continuaria a acenar? 


quinta-feira, 9 de julho de 2020

Joan Baez & Mercedes Sosa "Gracias A La Vida"

"Gracias a la vida"

Letra

"Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me dio dos luceros, que cuando los abro,
Perfecto distingo lo negro del blanco
Y en el alto cielo su fondo estrellado
Y en las multitudes el hombre que yo amo

Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado el oido que en todo su ancho
Graba noche y dia, grillos y canarios,
Martillos, turbinas, ladridos, chubascos,
Y la voz tan tierna de mi bien amado

Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado el sonido y el abecedario;
Con el las palabras que pienso y declaro:
Madre, amigo, hermano, y luz alumbrando
La ruta del alma del que estoy amando

Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado la marcha de mis pies cansados;
Con ellos anduve ciudades y charcos,
Playas y desiertos, montanas y llanos,
Y la casa tuya, tu calle y tu patio

Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me dio el corazon que agita su marco
Cuando miro el fruto del cerebro humano,
Cuando miro al bueno tan lejos del malo,
Cuando miro al fondo de tus ojos claros

Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado la risa y me ha dado el llanto
Asi yo distingo dicha de quebranto,
Los dos materiales que forman mi canto,
Y el canto de ustedes que es mi mismo canto,
Y el canto de todos que es mi propio canto

Gracias a la vida que me ha dado tanto"

Fonte: LyricFind
 
Compositores: Violeta Parra Sandoval


Aniversário

Painel de Júlio Resende

"No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida. 

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Para, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!... "

Álvaro de Campos - Heterónimo de Fernando Pessoa -, in Poemas

terça-feira, 7 de julho de 2020

Uma imagem para muitas palavras

      Agim Sulaj cartoonmouvement.com

Este cartoon saiu ontem no exame de Português, 12º ano,
como tema para desenvolvimento de um texto escrito.


Ennio Morricone – Gabriel's Oboe

sábado, 4 de julho de 2020

"Uma vida bonita" (?)


- Temos uma vida bonita, disse ela, explicando: 
Temos trabalho, não devemos nada a ninguém, passeamos aos fins de semana e todos os anos fazemos uma viagem de avião. 
- Este ano é que as viagens estão mais complicadas.
- Pois estão, já tinha dado um bom sinal e estou a ver que fico sem o dinheiro e a ver navios, em vez da  viagem que até nos fazia muito bem a ver se estávamos uns dias de acordo e sem andarmos zangados.
E continuou:
- Este ano, mudei as cortinas da sala e os azulejos da casa de banho. O que vale é que o meu marido sabe fazer essas coisas, sai mais barato e fica como deve ser.
- E a casa onde vivemos é importante.
- Se é, continuou. E está cada vez mais a meu gosto. Mas, mesmo assim, nem sempre somos felizes lá dentro. Estamos sempre a pegar-nos um com o outro. Eu gosto do amarelo, ele prefere o castanho; eu gosto das vidraças fechadas, ele quer tudo aberto; eu gosto de ver séries, ele é vidrado no futebol...
- É difícil encontrar gostos tirados a fotocópia. Tem de se negociar.
- Isso pra mim não dá. Mas, seja como for, temos uma vida bonita, porque temos trabalho, não devemos nada a ninguém, passeamos aos fins de semana e todos os anos fazemos uma viagem lá fora. Ou, melhor, fazíamos. Já nos chateámos por causa disso. Está-me sempre a dizer que eu não devia ter dado um sinal tão grande. Já lhe disse que na próxima vez é ele que trata disso. Respondeu-me logo que nem se sabe quando haverá a próxima. Só pra me irritar.
Mas, bem vistas as coisas, temos uma vida bonita.

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Gosto muito deste espaço




Felizmente, há músicos assim!




Corrupção logo ao pequeno almoço


O pequeno almoço na mesa. Que bom, embora o de quase sempre.
Ligo a televisão e lá estão os casos muito falados nos últimos tempos e a cada passo acrescentados de outros: Isabel dos Santos, Sócrates,  Novo Banco, Ricardo Espírito Santo, dirigentes desportivos e tantos, tantos outros nomes ligados a crimes de corrupção que lesam o país a todos os níveis.
A 'eles' nada lhes diz, porque a ambição do poder e do dinheiro é desmedida, mas a muitos de nós toca também o mau exemplo que dão a tantas gerações. Os estragos que deixam são irreversíveis.
Grande corrupção para um país tão pequeno.
E muitos, alegadamente corruptos, habituaram-se a mostrar à opinião pública uma expressão tão angelical que espanta quem observa. E ouvir 'tenho a consciência tranquila' ainda é mais irritante.
Todos devemos usar máscara, porque o tempo é de pandemia, mas tantas máscaras em rostos a descoberto são vírus que causam muitas e graves doenças.
Será que ainda pode haver cura?


quinta-feira, 2 de julho de 2020

Este texto não é para quem não acha piada a esqueletos


Hoje recebi um mail de uma amiga com um vídeo engraçado, dos que quase todos recebemos a cada passo.
O vídeo mostrava um homem na rua a dançar, tendo a ele presos dois esqueletos, um atrás e outro à frente, que repetiam os mesmos movimentos de dança, o que se tornava hilariante.
E lembrei-me do esqueleto que tenho em casa.
Não, não se admirem nem pensem mal de mim. Eu explico.
Comprámo-lo e, durante um par de anos, esteve no quarto de uma das minhas filhas, porque era lá que ela estudava para as suas aulas, incluindo anatomia. 
Depois desse tempo, o estudado esqueleto ficou a um canto e chegou a servir de cabide para casacos ou outra roupa. Coitado, passou a estar vestido, mas continuou sempre sem pele e só osso.
Um dia, quando já não estava a ser objeto de estudo, emprestei-o a uma colega cuja filha era estudante da mesma área da minha filha.
Quando mo devolveu, trazia o esqueleto nos braços, envolto num lençol que não o tapava todo, deixando ver as pernitas pendidas e o rosto mesmo nada bem parecido, como se sabe dos outros exemplares que todos conhecemos.
Pode imaginar-se a cena e o riso que provocou.
- Ainda tiram uma foto e enviam para a CMTV!!!
- Ai que vamos ser motivo de investigação!!!
Agora, já não está no quarto e aqui jaz, desculpem, está pendurado no seu suporte a um canto discreto de uma outra divisão.
E não tem servido de cabide.


Conversa com anjos dentro

- Oh, este anjo caiu-me da mão e partiu.
- Também era muito frágil.
- Pois era, mas tenho pena.
- Eu sei, claro.
- E já estava aqui há tanto tempo.
- Deixe lá, os anjos estão no Céu.


terça-feira, 30 de junho de 2020

A criança que há em mim/nós!


Maldita pandemia! Que não me deixa estar com a minha neta este verão.
Não estão nada fáceis os voos de Londres para o Porto. Nem do Porto para Londres. E para quem tinha viagem marcada pela TAP ainda pior.
Mesmo assim, comecei a organizar melhor o quarto da minha neta. Se não vier agora, pode ser que venha para o Natal. Se o maldito vírus não continuar a contagiar por terra, mar e ar.
E como ela gosta muito de livros de histórias, lá estão eles numa prateleira já sem pó. Uns são novos, outros eram da mãe e da tia e, claro, não podia faltar o que a avó escreveu, e que a Cristina Pinto ilustrou, e lhe dedicou.

Ora, quando faço estas arrumações e olho com mais atenção, tenho vontade de ler os livros de Sophia, de Matilde Rosa Araújo, de António Mota... e de escritores  jovens  que escrevem tão bem para crianças, como é o caso de Valter Hugo Mãe e de tantos outros.
Este meu gosto vem, com certeza, do nascimento da minha neta e talvez tenha a ver também com a tal criança que - dizem - existe dentro de nós.
É pena que essa existência não facilite a vinda da minha neta, após tanto tempo de ausência.
Mas, pelo sim, pelo não, é melhor não perder esse sentimento.
De outro modo, seria mais maldita esta maldita pandemia!


segunda-feira, 29 de junho de 2020

Ainda vou a tempo, S. Pedro?


Peço-te desculpa, S. Pedro,
De não ter falado aqui;
Para os outros versejei
Sem escrever ontem pra ti.

Tenho andado muito ocupada
E és o último: que azar!
Os últimos ser primeiros
Já deu o que tinha a dar.

S. Pedro, não fiques triste
E peço-te paciência,
Pra não perdermos a nossa
Nem a nossa consciência!

Como tens chaves do Céu,
Podes entrar e sair.
Dá uma chave aos cientistas
Para o Covid banir.

Está na hora de ir embora
Mas não posso dar beijinho;
Como já deves saber,
Agora é cotovelinho!



sábado, 27 de junho de 2020

Obrigada, Sandra!

 Este pequeno texto foi partilhado hoje, 
por uma professora, num grupo de Whatsapp, após o final de aulas à distância.
Gostei muito e pedi para o publicar aqui.

Obrigada, Sandra.
Obrigada, tantos professores
e tantas professoras.


Ontem acabaram as aulas... A sensação que fica é que nada terminou... Não estar, ver, sentir a reação dos alunos dá ideia que nada terminou! 
Sei que dar as aulas presenciais foi uma árdua tarefa e nada agradável, mas a sensação de vazio que senti nesta despedida... Foi muito triste e difícil. 
Mais triste é não estar convosco, ver os vossos sorrisos, sentir a vossa presença! 
Para mim, isto foi tudo menos escola e eu adoro o que faço! E acima de tudo adoro estar convosco!

Sandra Moreira 


Não está a cheirar nada bem!


Gosto muito dos parques de Londres. Dos que conheço, é claro. Um deles foi até cenário de um filme bastante interessante que estreou há poucos anos. O parque é Hampstead Heath. É imenso, arborizado, florido, com lagos, com vastos espaços verdes. Enfim, muito variado e ótimo para caminhar, para correr, para contactar com a natureza, para relaxar...
E tenho pena de não ir lá há muito tempo, mas a pandemia tem fechado muitas portas, embora tenha também aberto outras, mas menos numerosas.
Pois bem, esses parques maravilhosos, aonde vão multidões (pelos vistos, a afluência nunca abrandou muito, apesar de todos os apelos) continuam com as casas de banho fechadas.
Pode imaginar-se o que se passa e o que se encontra pelos caminhos por onde as pessoas vão apenas para caminhar ou correr.
É caso para dizer: isto não está a cheirar nada bem!!!


Deve ser bom ouvir


 




sexta-feira, 26 de junho de 2020

'E hoje, já sorriste?'

Ela estava doente e ia recebendo mensagens: As melhoras, vai correr tudo bem, tu és forte...
Mas uma das que mais lhe tocou foi: 'Então, hoje já sorriste?'
Gostou tanto que passou a adotar essa questão em situações semelhantes, esperando que agradasse como com ela tinha acontecido.
E as respostas que dava e que agora recebia pareciam mais positivas e a repetição menos chata. 
Coisas tão simples e mais leves quando o momento é mais pesado.
E com a vantagem de não haver direitos de autor.

E a propósito, hoje já sorriram?


quarta-feira, 24 de junho de 2020

O Porto sem festa de S. João

 Obrigada, M.A., por outra bela e bem humorada partilha.
Retratas muito bem alguns espaços do Porto que nunca ninguém viu desertos em noite/dia de S. João.
      Como o momento continua difícil, e como se diz que todos os santos ajudam,
é certeiro o pedido que fazes a S. João:
'Se não conseguires sozinho,
Faz um apelo ao S. Pedro!'


 
'Em dia de S. João,
Fui à festa e não a havia,
É que o Santo, do seu posto,
Confinou toda a folia.

Foi num gesto altruísta,
S. João, sabemos todos,
E o Porto, solidário,
Lá acatou esses modos.

Era ver tantas esplanadas
Cheias de mesas vazias
E nas poucas ocupadas
Nem sinais d`outras folias. 

Nem doces, nem manjericos,
Nem o cheiro das sardinhas,
Nem nada que nos lembrasse
Das tradições sanjoaninas. 

S. João, quando puderes,
Vê se afastas este medo,
Se não conseguires sozinho,
Faz um apelo ao S. Pedro!'
M.A.

terça-feira, 23 de junho de 2020

Como 'cada dia é uma riqueza', aqui vai outra beleza


Surpresa de S. João

É véspera de S. João 
E já o sol nascente
Que bate na janela vizinha
Em frente à minha
Faz nascer um sol poente. 

Hoje tenho dois sóis
O nascente e o poente
Por causa de uma janela
E dos espelhos que há nela;
Um que nasce na montanha
E o outro, galhofeiro,
A imitar o verdadeiro. 

Não deito nenhum deles fora;
Se vêm à mesma hora
Com tão dourada surpresa
É porque S. João assim quer
Mostrar que, se eu quiser,
Cada dia é uma riqueza.
 
                             Clémina 
                             23 junho 2020

Ó meu rico S. João!


Se eu tivesse boa voz,
Cantava-te uma canção
Pra te fazer companhia,
Ó meu rico S. João!

Deves estar muito triste
Tu, meu querido santinho,
  Estavas sempre acompanhado
E hoje ficaste sozinho!

Não podes sair à rua
Com martelinho e balão
Que lá se foi o tal milagre,
Mesmo que digam que não!

  Vendo egoísmo ou desleixo,
Vais ficar muito afinado,
Porque muita gente pensa
Que está tudo desconfinado!

Não percas a alegria,
Ó meu santo folgazão,
Mas não queiras ir à festa
Que o vírus não brinca, não!
 

segunda-feira, 22 de junho de 2020

'S. JOÃO SEMICONFINADO'


'S. João é fogo que arde sem se ver
É festa na TV, mas que não se sente
Num semiconfinamento descontente
Das quadras faço sonetos sem querer. 

É um sofrer pelos outros ver sofrer
É solitário ficar sem ver a gente
É esperar a notícia que não mente
É ouvir números, de pernas a tremer. 

É ter de estar presa sem vontade 
Testar, testar, testar... sem ver balão! 
E, serenamente, querer sempre a verdade. 

E como poderia ir ao S. João 
Se proibiram fogareiros na cidade? 
Asso eu as sardinhas, já é bem bom.'
                                        
                                              Clémina 
                                          22/junho/2020

Obrigada! Que bela partilha.
Quando abri o mail e vi este poema, fiquei muito contente.
  Grande criatividade e atualidade.
Feliz S. João em família!
Com boa sardinha assada! 

Cesaria Evora & Kassav - Sodade

domingo, 21 de junho de 2020

Em manhã cedo de domingo

Gosto do silêncio da manhã
cedo em que as pessoas devem 
dormir ainda
e talvez
sonhar ou então com
pesadelos por tantas
incógnitas de todas as
horas
passadas
presentes
futuras.

Porém
o silêncio da
manhã
e a manhã  
continuam a ter
beleza
mais notada
quando há silêncio
e tudo parece
estar tranquilo
apesar de tantas
incógnitas de todas as
horas
passadas
presentes
futuras.

sábado, 20 de junho de 2020

O convite

Há muito tempo que ele gostava dela. Era bonita, bem disposta, inteligente. Criava laços positivos com as pessoas. Dizia o que sentia sem ferir ninguém. Seria uma boa companheira.
Eram livres, colegas de trabalho e conheciam, mais ou menos, a história de vida de cada um. Ela ter três filhos pequenos a seu cargo não dava muito jeito porque os dele já eram crescidos e viviam com a mãe. Mas, realmente, não há bela sem senão.
Já se via a viver com ela e a voltar aos tempos antigos em que os filhos eram pequenos. Via-se, pacientemente, sentado no chão a fazer legos ou puzzles. 
Como gostava dela, tudo se resolveria.
Num intervalo do trabalho, encontraram-se os dois a tomar café. Estavam sozinhos. Ele aproveitou o momento e convidou-a para sair. Podiam ir caminhar junto à praia e depois logo se veria.
Ela aceitou o convite. Os miúdos estavam na escola e assim podia ver o mar.
Encontraram-se à hora marcada. Ela trazia a roupa habitual, ele vestia uma camisa que parecia a estrear.
Enquanto caminhavam, ele olhava-a à espera do momento de poder dizer algo mais íntimo. 
Enquanto caminhavam, ela olhava o mar com o fascínio de um reencontro amoroso.
Não havia mesmo maneira de ele poder dizer-lhe que gostava dela.
Talvez ela aceitasse ir dar uma volta de carro. Seria mais fácil e não haveria tantas distrações. Já tinha pensado nisso.
- E se fôssemos dar uma volta? Ainda é cedo. Tenho ali o carro. Depois levo-te a casa.
- Por falar em casa, desculpa, mas lembrei-me agora que não tenho leite para o lanche dos miúdos. Vejo ali um Pingo Doce. Importas-te que vá lá? Só esperas um bocadinho.
- Sim, sim, claro, eu espero.
- Depois, pedia-te então se me levavas a casa. É que os miúdos vão chegar daqui a 30 minutos.


sexta-feira, 19 de junho de 2020

Amanhecer?

Nos últimos tempos, tenho-me levantado cedo. Abro a porta e a Castanha (a minha cadela) vem logo espreitar. Vê-me e parece ficar feliz porque sabe que em breve lhe vou dar comida.

Vejo, desconsoladamente, que o meu pão acabou. E o pão sabe(-me) tão bem ao pequeno almoço. 
E o que faço no forno não me tem saído nada bem.

Liguei a televisão. As notícias eram as de ontem. Não me apetecia ouvir as mesmas coisas.
Fui fazendo zapping. Parei num programa em que uma mulher negra falava de dez anos de violência doméstica com constantes humilhações. Não estava ali apenas para esmiuçar desgraças, mas para dizer como tinha conseguido sair delas.
Para reconquistar a liberdade, tinha recorrido a uma casa de abrigo, onde esteve uns meses com os filhos.
E contou que agora podia ler histórias (esta parte também me comoveu) para o filho mais novo, como não tinha feito para o mais velho.
E falou de uma refeição em paz, com os filhos, à volta de um frango assado que tinha um sabor maravilhoso como já não sentia há muitos anos.

Agora, vou voltar aos meus afazeres.
Mesmo sem pão ao pequeno almoço, o dia parece luminoso. 
Será o amanhecer?


quarta-feira, 17 de junho de 2020

Gosto de cidades assim

Pequenas, acolhedoras, com gente que se cruza na rua e se conhece.
Com esplanadas, com lojas antigas, outras mais modernas, mas todas higienizadas.
Com livrarias como nas grandes cidades.
Com mar ao fundo, como não se encontra em qualquer cidade.
Com pedacinhos de cor e bom humor...


Tudo isto vi hoje em Espinho.

Não falo das obras que me fizeram andar às voltas.
Possam, quando estiveram prontas, fazer com que se diga:
- Gosto de cidades assim. 

 

Árvore(s) com maresia

Espinho - hoje

terça-feira, 16 de junho de 2020

A máquina de escrever


Há dias, ouvi na rádio uns jovens
a louvar as virtudes do uso da máquina de escrever.
Achei estranho porque dispõem, com certeza, de outras ferramentas bem mais expeditas.
Estavam interessados noutras competências da máquina de escrever,
como a dimensão lúdica.


Lembrei-me então da minha velhinha máquina de escrever e revisitei-a.
Limpei-lhe o pó e pu-la numa prateleira onde não estorvasse, mas onde também não se estragasse. Gosto de preservar certos objetos que fazem parte da minha memória.
Contudo, não tenho nenhuma vontade de a reutilizar, apesar de nela ter feito muitas fichas de trabalho, testes, relatórios e ter escrito alguns pequenos textos (nesse tempo, escrevia-os sobretudo à mão e também guardo os caderninhos).

Ao escrever na máquina, era muito difícil corrigir os erros ou fazer alterações. A borracha, azul, dura e redonda, era uma boa ajuda, mas desastrada pelas manchas que deixava e pelos estragos que causava no papel.
Muitas folhas se estragavam quando havia enganos e, quantas vezes, o trabalho tinha de ser todo reescrito.
O tempo que se perdia, os nervos que se ganhavam.
Bendito computador para, perante o texto, poder avançar, retroceder, apagar, gravar, mudar, retomar, retocar, corrigir...

Por isso, velha máquina de escrever,
gosto de te saber elogiada,
mas repousa na prateleira 
sossegadamente!
Porque, confesso, não me deixam saudades
esses tempos de antigamente!

Prefiro o computador
que ajuda em tantas ações!
Até para os sonetos de amor,
se ele o conhecesse,
seria a opção de Camões!


segunda-feira, 15 de junho de 2020

Mudam-se os tempos, persistem incompreensões!





'Não podemos olhar para o lado...'

Postal enviado pelo Clube de Histórias

domingo, 14 de junho de 2020

Conversa na rua com carinho a rimar

- Então, como vão os seus doentes?
- Vão indo, obrigada. Tanto o meu marido como o meu filho têm apetite e é o que lhes vale.
- Que bom!
- O médico diz que assim aguentam melhor os tratamentos.
- Pois, com certeza.
- E sabes que só querem a minha comida?
- Pois, comidinha boa e caseira sabe sempre bem.
- Vou fazer 84 anos e graças a Deus ainda posso fazer o comerzinho como eles gostam.
- As melhoras e muita saúde para si.
- Bem preciso. Pelo menos para continuar a fazer o comerzinho!
Ao menos o comerzinho como eles gostam.


sábado, 13 de junho de 2020

O solitário da rua e Variações


Não sou muito de arraiais, mas este ano tinha pensado ir dar um pezinho de dança. E beber uns copos. E viver uns momentos descontraídos. A vida são dois dias, carago! Sei de amigos que também queriam ir.

Tive vontade de ir este ano às festas dos santos populares, logo quando não há arraiais por causa da pandemia. Se calhar, sou como o Variações: 'só estou bem onde não estou'.

Ontem à noite, estive quase para sair na mesma e passar por sítios onde nestas datas costuma haver música pimba, dança, fogareiros com sardinha assada a fumegar, bandeirinhas coloridas quase a tocar as nossas cabeças já um pouco à roda, etc.

Não, não teria piada nenhuma o passeio e pra mais a chuva veio ajudar à festa, ou melhor, à falta dela.
Seria um passeio de solitário ainda mais solitário.

Decidi ficar em casa. Havia bola, embora não fosse o meu clube a jogar. Mas sempre era bola e houve muito tempo de jejum de ver o esférico a rolar, como diziam alguns comentadores mais pomposos.
Quando me sentei para ver o jogo, comecei a ouvir música alta na casa ao lado. E, coincidência, era o Variações.

Tal como acontecia comigo, o clube do vizinho não era mesmo nenhum dos que entravam em campo.