sábado, 3 de março de 2018

Um livro em fim de semana de chuva



O dia está chuvoso, para além do vento, da trovoada... Amanhã, pelas previsões, não será muito diferente.
A leitura um pouco mais prolongada talvez venha a calhar.
E por que não Homens imprudentemente poéticos de Valter Hugo Mãe?
Poéticos são os ambientes, as personagens, os diálogos, os temas que emergem, sem ruído, de um Japão mágico e mítico que é o pano de fundo da obra. Temas como o amor, a morte, a perda, a miséria, a procura, a natureza, o medo, a esperança, a culpabilidade, a ternura irrompem de espaços e de tempos ancestrais que as palavras do narrador-autor põem amorosamente a nu, diante dos nossos olhos incautos e curiosos.
Há cenários de cerejeiras, pássaros e violetas, onde vejo seres inocentemente belos e humanos (como Matsu, a rapariga cega; a senhora Kame, "a mãe perto") a convocar candura, inocência, delicadeza. Mas também os homens os transmitem, como os vizinhos inimigos: Itaro, que faz leques com as canas de bambu que recolhe e Saburo que molda taças de barro.
Existe uma beleza onde coabita a delicadeza e a rudeza.
Registei algumas frases que me tocaram pelo seu sentido poético:
"A beleza carece de nenhum motivo, p.77; "(...) a menina dizia: para os cegos as flores são ainda coisas de ver. Mapeava-os pelos perfumes". p. 90; "As taças eram terra adulta.", p.107; "A memória era o resto da realidade", p. 141.
Na descrição dos ambientes, surgem casos de amálgama com laivos de Mia Couto: "Alguns peixes barulhavam na água" - p.79.
O  não uso da dupla negação também é notório: "Viu nada", p.113; "Tinha nenhum recipiente", p.141.
A ausência do ponto de interrogação também ocorre quando o contexto o dispensa, tal como foi prática de José Saramago; "O artesão gritou: quem é.", p.117.
No tempo em que VHM não usava maiúsculas, mesmo no seu nome, ouvi-o dizer a um auditório constituído por alunos e professores que, para se aplicarem outras regras, era necessário conhecer bem as que são convencionais. Repeti-o várias vezes nas minhas aulas, lembrando-me das palavras prudentes do autor desta obra Homens imprudentemente poéticos.

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