quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

"Cantiguinha"

 Monet
Foi numa das últimas aulas. A escola a meio gás por já terem acabado as aulas do 9º e 12º ano. Na turma, iriam ser apresentados os últimos trabalhos sobre poesia do séc. XX. Dois alunos ainda não o tinham feito e haviam faltado nas duas últimas aulas. O que me desagradava. A mesa deles estava vazia: lugar copioso para o repouso das mãos. Como se o ano escolar já tivesse acabado e o tempo só fosse de passagem e despedida. E como nada havia sobre a mesa, o que estava mais à mão era o lado do cochicho. O que me desagradava também.
O tempo já era pouco. Estava calor. Muito calor. Perguntei, então, pelos trabalhos. E o Zé disse: eu não fiz nem faço. Não gostei do modo como falou. Disse-lho. Ele respondeu que ia mudar de curso e não valia a pena. E que, na opinião dele, tinha falado normalmente.
Estava cada vez mais calor. As janelas tinham de estar abertas. Lá fora soprava um vento morno. Que fazia tilintar as beiras dos estores em baloiço irritante de encontro à janela. No corredor, passava um grupo de alunos ruidosos.
A minha expressão fechava-se, encerrando quase todos os sorrisos. E perguntei à Otília, aluna da mesma mesa vazia: e tu, fizeste o trabalho? A resposta foi não. De novo o não diálogo. Ela emudeceu. Perguntei-lhe por que não respondia. Fechou mais o rosto, fez preguinhas com os lábios que cerrou encolhendo os ombros. O Zé, colega e amigo inseparável, que tinha dito que não fazia o trabalho, respondeu: ela não diz nada porque se sente constrangida. Estava difícil. Estava calor. E estava na hora de retomarmos os outros trabalhos. Foi o que fizemos.
A Núria levantou-se, segurando as folhas do trabalho na mão. Dirigiu-se à secretária, no estrado, onde costumavam apresentar os trabalhos. Os alunos sentiam que subiam a um patamar mais alto e eu gostava de os ver subir na visível demonstração dos conhecimentos.
E Núria tinha escolhido Cantiguinha de Cecília Meireles.
Meus olhos eram mesmo água,
- te juro -
Mexendo um brilho vidrado,
Verde-claro, verde-escuro.
Fiz barquinhos de brinquedo,
- te juro -
Fui botando todos eles
Naquele rio tão puro.
Veio vindo a ventania
- te juro -
As águas mudam seu brilho,
Quando o tempo anda inseguro.
Quando as águas escurecem,
- te juro -
Todos os barcos se perdem,
Entre o passado e o futuro.
São dois rios os meus olhos,
- te juro -
Noite e dia correm, correm,
Mas não acho o que procuro.
Cecília Meireles, 1938

Leu o poema. Referiu temas abordados. Acrescentou algumas figuras de estilo. Juntou um comentário final. Anexou alguns dados biográficos sobre a autora.
Disse-lhe para ler o poema de novo. Em voz alta. Devagar. Como a poetisa era brasileira, sugeri: Núria, e se o lesses com sotaque brasileiro? – Eu não sei – respondeu ela com aqueles olhos grandes de quem está sempre à espera de apoio e concordância. Mas ela sabe… e ele… ele também lê bem…
E a cantiguinha foi adoçando outras leituras em sotaque brasileiro. Leu, então, a Fábia. Com a sua voz fininha, doce e sorridente. Ó setora, o Zé também sabe… E o Zé leu. De forma suave. Pausada. Soletrada. Prolongando maciamente o refrão «te juuuro…»
Felicitei-o pela leitura. Ele sorriu. No final da aula, saiu normalmente. A Otília ficou para trás. Veio falar comigo sobre as últimas faltas. E de não ter feito o trabalho. Não sabia bem o que se passava com ela. Sentia-se desligada. Eu disse-lhe que se temos talentos, devemos multiplicá-los e não desperdiçá-los. Sorriu. Sem constrangimento.
Senti que a esperança pode ser «verde-claro, verde-escuro». Como na «Cantiguinha». Vos juro! Ou melhor, vos juuuuuro!

Escrevi este texto há uns três anos. Foi publicado no blogue Terrear. Apesar de simples, podia ter sido escrito recentemente, por isso o partilho mais uma vez.

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