domingo, 30 de abril de 2023

Um dia feliz, disse ele!

 


Eu tinha chegado à cidade com mar ao fundo. Fui tomar um café. Por dentro do balcão, o homem magro e sempre lesto repetia o habitual 'obrigado'. Nunca parava para que os clientes não esperassem. Era a hora da meia de leite e da torrada ou croissant.  

Nas mesas, casais de meia idade com bom ar e bom peso iam saudando, sorridentes, outros casais conhecidos ou amigos com idênticos ar e peso que iam chegando. Quando saíssem, talvez dessem as mãos e sorrissem. E ainda melhor se fosse um para o outro.

Reparei que uma freira com roupa mais leve do que o habitual se sentava a uma mesa onde estava outra mulher com ar ascético, o que não impede o prazer de bons sabores logo a começar o dia. Num olhar e pensamento mais rápidos, diria que elas pareciam destoar. Ou eu também. E dei comigo a interrogar-me se este verbo ainda tem cabimento nos dias de hoje. 

Felizmente já não se destoa tanto como antigamente. Quando uma qualquer diferença era notada, como a cor de pele, a idade, a maneira de vestir, etc, logo se olhava e os mais indiscretos comentavam nem que fosse em surdina, que não deixava de ser ruidosa.

Fui pagar à caixa. O homem magro sempre em movimento agradeceu como fazia a todos os clientes. E, dando-me o troco, olhou rapidamente para mim, como também fazia com todos os clientes, e  'um dia feliz', disse ele.

 

Um domingo também feliz para todos, digo eu também, embora não nos possamos olhar. Se pudéssemos, seria bom que fosse com mais tempo e mais vagar.

 

 

terça-feira, 25 de abril de 2023

Onde estou no 25 de Abril 2023

 

Impossível não me lembrar do que vivi há 49 anos no dia 25 de Abril. Saí de casa para um dia de aulas normal e percorri as ruas habituais, no Porto. Estranho era o  silêncio de uma cidade que estava quase deserta. Perguntei a alguém o que se passava. 
Está a haver uma revolução em Lisboa, responderam-me com espanto semelhante ao meu.
O rádio, encostado ao ouvido, ia sendo escutado por outras pessoas que passavam, com ar atónito e  incrédulo.
A ditadura - palavra quase nunca pronunciada até então - tinha caído, ouvi também dizer.
E, ao fim da manhã, estávamos os dois de mão dada no meio de uma multidão que ia enchendo as ruas, como se saísse de um buraco negro em busca de uma luz que, afinal, existia, mas que a enorme maioria dos portugueses desconhecia.
 
Ao longo do dia, foi-se sabendo que um grupo de pessoas de grande coragem tinha dado vida à Liberdade, palavra que até então só era dita por alguns mais ousados ou mais informados e que, por isso, dela eram privados, porque o poder instalado preferia a cândida e calada ignorância. Não era por acaso que 60% das mulheres eram analfabetas.
Nesse dia, dia único, compreendi muita coisa que durante anos me escapou. Tal como à maior parte das pessoas.
 
Hoje, escolhi ficar em casa e aproveitar o sossego para arrumações que ficam por fazer no dia a dia.
Oiço, porém, alguns discursos de comemoração dessa data fundamental na nossa História e alguns comentários ao que está a acontecer na Assembleia da República. 
Não vi nem ouvi os discursos quando Lula estava presente. Vi depois imagens dos cartazes que um grupo parlamentar exibiu em protesto pela sua presença.
Ufanos e excitados, esses deputados pareciam rapazolas num concurso de televisão onde queriam surpreender.  Desse por onde desse, logo que desse pontos.
 
E em muitos discursos - a maior parte serenos, felizmente, embora veementes e críticos - lá apareceram as citações de poetas do costume: Sophia, Natália Correia, etc. E como de Ceos da TAP se tem falado muito e também hoje se falou, o Céu foi lembrado sendo S. Paulo citado, assim como o Papa Francisco.

Pela tarde, fiquei contente ao ver tanta gente nas ruas de várias cidades. Uns indignados, outros a exigir o que lhes é devido, outros a festejar. Todos usando bens que fazem progredir a Humanidade, como a Liberdade e o respeito.

Uma das perguntas do dia, nos media, era se a Democracia está em risco. E as respostas que ouvi diziam que sim, que a Democracia pode estar em risco, por erros cometidos e pelos extremismos emergentes que, inexplicavelmente, querem que o país regresse à escuridão fechada do passado.
 
Ao jantar, falamos do que foi acontecendo ao longo do dia e de como será bonito irmos em família à Festa na comemoração dos 50 anos do 25 de Abril. 
 
Oxalá a esperança não esteja em risco.

sexta-feira, 21 de abril de 2023

Perguntas guardadas. E não só.

 

Fomos a uma escola do primeiro ciclo, nas Antas. Levávamos uma atividade que incluía o desenho, o recorte e a leitura. Porém, no grupo dos meninos do segundo ano nasceram, espontaneamente, muitas perguntas, sobretudo sobre as ilustrações do livro.


Queriam saber quem fez a capa, como tínhamos escolhido as letras, como é que se faz um livro, se demora muito tempo a fazer os desenhos e muitas, muitas mais. Ver aqueles meninos com os bracitos no ar a perguntar, a querer saber, a ser curiosos parecia o melhor de tudo.

E como as questões incidiam mais sobre as ilustrações e a parte gráfica, puxei a brasa à minha sardinha e se, tal como tinha sido referido pela ilustradora, para desenhar como se quer é preciso desenhar muito, também para escrever uma história é preciso ler e escrever muito. Com paciência e com amor.

E logo mais perguntas: escreves a lápis primeiro? Tens computador? Já escreveste outras histórias? E mais bracitos no ar. E mais e mais perguntas. E outras tantas respostas.

E a atividade era como a procissão: ainda ia no adro. E uma turma tinha o tempo contado porque ao início da tarde havia uma visita de estudo.

Foi quando uma das professores interveio e em voz bem alta e doce disse:

- Para já, vamos guardar as outras perguntas no coração.  

Os meninos ouviram com livre atenção e fizeram silêncio. E, naturalmente, também guardei o momento no coração.


quinta-feira, 20 de abril de 2023

As escadas rolantes e os namorados

 

Já tenho ouvido e tenho reparado que nos tapetes rolantes de centros comerciais há beijinhos, sorrisos, mãos dadas e outros afetos. Não deixa de ser bonito e bom para quem aproveita esse tempo que parece mais livre e mais lento.

Só que às vezes o par carinhoso impede a passagem de quem está atrás e nem repara. 

Se tenho tempo, deixo que os mimos continuem, não me aproximo muito e vou olhando à minha volta. Se estou com pressa, com licença, com licença, sem deixar de pensar que estou a interromper um bom momento. 

 

quarta-feira, 12 de abril de 2023

Meia culpa

 

Não, não é engano na palavra. Queria mesmo dizer meia, porque tento libertar-me pelo menos  de metade da culpa que, em muitas pessoas da minha geração, foi sendo incutida quase desde que nascemos.

Conheço casos de várias self made women, mulheres que se esforçaram e que foram aprendendo por si próprias a vencer obstáculos. Não todos porque se a culpabilidade começa muito cedo, mais custa a libertar.

E se o assunto é chato para algumas pessoas, mea culpa. É, porém, sinal de que a culpabilidade não vai sendo tão semeada. Felizmente.


terça-feira, 11 de abril de 2023

Às vezes tinha vergonha de dizer que era de Gondomar

 

Oiço por vezes pessoas a falar da sua terra com segura convicção e sentimento amoroso de pertença. Apesar de cada vez mais o mundo se alargar legitimamente para todos, louvo-lhes a atitude.

Existem, porém, lugares cujos habitantes falam da sua terra natal com um tímido e inseguro sorriso, como julgo acontecer muitas vezes na minha, traduzindo alguma indiferença ou desconfiança já muito antigas. 

A forma como as autarquias são geridas tem bastante importância para a construção da história de cada um e da satisfação pela terra onde se vive. Com muita ou pouca instrução, as pessoas querem ver ações que contribuam para a sua qualidade de vida, tendo resultados práticos desse necessário e natural investimento.

Há uns anos, quando Valentim Loureiro era presidente da autarquia, eu, como tanta gente, sentia algum constrangimento e até vergonha quando dizia que era de Gondomar, porque logo vinha à baila o nome do polémico autarca, sentindo um rótulo pelas confusões e trapalhadas de um grupo que nos governava e que se governava a si e aos seus  - embora houvesse casos exemplares de dedicação à causa pública em diferentes pelouros.

Quantas anedotas e histórias iam sendo contadas nos meios de comunicação social a propósito de ofertas de eletrodomésticos e de outras manobras populistas para aliciarem ao voto nesse candidato que tantas vezes apregoava pôr Gondomar no mapa.  Conseguiu-o também pelas agitadas e ruidosas barafundas das quais o país se ria, ridicularizando.

Felizmente esse tempo já é passado e, apesar da esfera em que circulo ser bastante restrita e de consumir sobretudo alguns bens culturais, vejo que há mais normalidade e que obras importantes vão surgindo e facilitando a ligação das pessoas à natureza e a espaços verdes e de lazer, o que é fundamental para o bem-estar nos dias de hoje. 

Talvez um orgulho calmo e consciente de sermos desta terra tenha de continuar a ser cultivado. O atraso de Gondomar, em muitos setores e durante muitos anos, contribuiu para isso. Daí a razão de muitas pessoas, ao verem surgir uma Biblioteca Municipal, um Pavilhão Multiusos, etc, também votarem massivamente, durante os vários mandatos, em Valentim Loureiro, mesmo discordando das manigâncias que eram públicas. Felizmente da última vez que se candidatou, os votos que caíram nas urnas foram muito poucos com o seu nome.

Parafraseando a canção de Cláudia Pascoal: sou Maria, sou mulher e sou de Gondomar.

Oxalá possa continuar a dizê-lo com crescente confiança e segurança, embora esta última palavra não sirva muito bem para me caracterizar.

 

 

quinta-feira, 6 de abril de 2023

BOA PÁSCOA!

 

Uma Páscoa e primavera felizes para todos e para todas.

Obrigada pelas vossas visitas e mensagens. Não imaginam a alegria que me dão.

Aproveitemos, se possível, estes dias floridos e de sol. 

Num mundo complexo, as coisas simples e boas não deixam, felizmente, de existir para desfrutarmos delas.

E sermos mais felizes, sentindo o corpo e a alma mais descansados.

UM GRANDE ABRAÇO!


quarta-feira, 5 de abril de 2023

Uma coisa sem importância. Ou terá?

 

Nunca fui muito gastadora, mas acho que já fui mais gastadora do que sou hoje. Ia mais a lojas e não resistia a algumas compras não muito necessárias mas que me atraíam no momento.

Agora, dou comigo a olhar para o que tenho no guarda-fatos e a pensar que, afinal, tenho que chegue e que sobre para usar e variar. 

Os lojistas é que não devem gostar muito desta conclusão a que muita gente vai chegando, pensando na sua bolsa e na proteção do ambiente.

Porém, como noutros setores, o tempo é de procurar, criativamente, novas alternativas. E, por enquanto, acho que pelo menos as grandes lojas continuam a faturar e a faturar. As mais pequenas é que talvez não, e tantas vezes com coisas bonitas, diferentes  e de boa qualidade. 

Que me desculpem, mas, mesmo nessas não tenho entrado. Numas, fico confusa com a fartura de coisas tantas vezes remexidas e desarrumadas; noutras, porque já prevejo a reação: não sei se temos o tamanho!!! 

 

segunda-feira, 3 de abril de 2023

As duas mães

 

Há muito tempo que não se viam. A mulher mais velha gostou muito de rever a rapariga, mas já com filhos adolescentes. Recordava-se tão bem dela quando era pequena, de mimado sorriso tímido.

E a mulher mais velha logo se lembrou da mãe dela.  Quando os filhos eram pequenos, encontravam-se na escola com frequência. E falavam muito das suas crianças. Dos sucessos, dos sonhos, das fragilidades, etc.

Com o tempo, cada um dos filhos foi seguindo os seus cursos e as suas vidas. As duas mães deixaram de se ver, sem deixarem de se lembrar com carinho uma da outra. Com vidas e profissões muito diferentes, ambas acabaram por ficar sós, também em circunstâncias diversas.

Agora, ali estava uma delas a falar com uma das crianças que há muito não via e que se tinha tornado mulher adulta.

- E a tua mãe como está?

Não estava bem, não. Vivia muito só e, o pior, não tinha amigas com quem falar nem tinha qualquer atividade que lhe desse alegrias.

E a pergunta surgiu por parte da jovem:

- E no seu caso, tem amigas, com certeza?

Sim, algumas boas amigas e uns poucos bons amigos. Felizmente. E ela ia fazendo perguntas. Andava mesmo muito preocupada com a mãe. Os irmãos iam-se desligando porque tinham a sua vida muito ocupada e não desperdiçavam o direito de a viver.

Ela, que era a mais nova, estava sempre presente e tentava ajudar a mãe. Falava com ela, dava-lhe sugestões, motivava-a a sair, a participar de atividades onde conhecesse outras pessoas e se sentisse bem. Sim, iria fazê-lo, prometia-lhe a mãe, mas, chegada a hora, desistia e tudo ficava na mesma - a mesma solidão, as mesmas obsessões. Como estariam os filhos? E os meninos? Porque não atendiam o telefone? Porque não respondiam às mensagens? Porque não vinham visitá-la mais vezes?

Deste lado, a outra mãe ia pensando que talvez fosse bem mais feliz e que assim também os filhos o seriam. Pese embora ter muitos momentos com preocupações idênticas. Tinha bons amigos e algumas atividades que lhe davam prazer, o que lhe amaciava a vida e ajudava a olhar mais alegre e carinhosamente para o mundo e a relativizar muitas situações presentes e passadas.

Sabia que a vida vai dando e retirando muita coisa, mas acreditava que também a vida vai oferecendo outras.

Acabou por mandar um beijinho para para a outra mãe. Pudesse, pelo menos, dar-lhe algum alento. Por pouco que fosse.



domingo, 2 de abril de 2023

Felizmente há manhãs bonitas!


Vi hoje que, no seu blogue,  http://carruagem23.blogspot.com/, Vítor Oliveira tem o post "Uma dramatização de Uma história de João Ratão", acompanhado de vídeo.

Obrigada, Vítor, que os dias continuem a florir no Agrupamento de Escolas Dr Manuel Laranjeira, em Espinho.

Um abraço


Valeu a pena porque a alma não foi pequena

 

Em dezembro, a convite da Direção do Agrupamento de Escolas Dr Manuel Laranjeira, foi a apresentação do livro que escrevemos em coautoria, eu e Maria Clara Miguel, Uma história do João Ratão, Edit. Lugar da Palavra, e ilustrado por Ana Bessa. 

Nesse dia, ficou uma promessa na escola básica de Guetim: alunos e professoras iriam representar a peça e as autoras do texto dramático seriam convidadas.

Claro que o convite logo foi aceite. Com todo o gosto.
E o prometido aconteceu: na manhã do dia 28 de março, estava tudo a postos para a representação. Logo que chegámos à escola, vimos a figura que dá nome ao Agrupamento com uma bela legenda:

 

E um belo painel de apelo à urgentíssima preservação da natureza e ao papel de cada um no mundo em que vivemos.

 

 


O trabalho que nos tinha trazido até à bonita escola de Guetim iria, por certo, motivar mais um bocadinho para a leitura que é também uma forma de salvar o presente e o futuro.
Numa sala, não faltavam adereços nem um nervoso miudinho que se pressentia por parte dos atores ainda nos bastidores.
No espaço maior da escola, meninos de diferentes idades estavam, calmamente, sentadinhos no chão, na companhia de professores, educadoras e funcionárias, à espera da peça, tal como nós.
À frente de todos os espetadores, os belos e coloridos cenários da peça, elaborados pelas crianças com a ajuda da professora de educação visual.

 



E, em breve, docentes, não docentes e alunos estavam em palco para narrarem momentos da história e representarem as personagens do livro que passavam a ter vozes mais vivas porque humanas: os grilos falantes, o João Ratão, o Quinzinho, o burrico Tonico, a Carochinha, a Joaninha, o padre Julião, os pretendentes da Carochinha, etc.

 



E a peça, que decorreu com a alegre vivacidade de todos os atores e intervenientes, acabaria naturalmente em festa. E estávamos felizes ao vermos a dedicação das professoras na preparação do trabalho e o entusiasmo e expressividade das crianças, a partir do livro que escrevemos com a adaptação da história, dita original, do João Ratão.

 


No final, com sorrisos de empatia e de bem receber, esperava-nos um bom cafezinho e um bolo delicioso feito pela funcionária D. Laura.
Quando nos despedimos, nós, as autoras, contentes e motivadas, manifestámos vontade de escrever nova história em conjunto. Haja tempo para que o possamos fazer. Se as crianças gostaram, é porque valeu a pena todo este trabalho partilhado. E aconteceu sobretudo porque a alma da escola não é pequena.


domingo, 26 de março de 2023

Há Céu e Céu!

 

O piano

 

Ontem, a menina, nos seus bonitos sete anos, deu o seu primeiro recital de piano. Os pais, orgulhosos, filmaram e partilharam, felizes, o vídeo da pequena pianista, no seu vestido de saia rodada florida e de grinalda rosada bem visível no cabelo. No início da atuação, a professora de piano, sempre atenta aos pormenores, veio dar um retoque na postura e logo se afastou, discreta, para não perturbar o momento para o qual também tinha carinhosamente trabalhado.

Concentrada e ágil, a menina cumpriu bem a bela missão e, no final, foi  aplaudida.

Em casa, toca piano diariamente, com a ajuda insistente do pai, mas também diariamente diz que não gosta de tocar piano.

Ficou, porém, feliz com o seu primeiro recital. E disse, com a sua voz meiga e olhar azul: - Gostei muito de atuar.

 

 

A conversão

 

Há muito que não ouvia a palavra conversão. Hoje, na TSF, passaram excertos de uma entrevista a Alice Vieira, dizendo-se que a escritora se tinha convertido à religião católica, graças à sua grande amizade com José Tolentino Mendonça.

Esta será uma boa notícia para os católicos nestes dias em que a igreja passa por tantos problemas devido a comportamentos tão censuráveis: dos abusadores de crianças e de quem encobriu os crimes durante tanto tempo, abusando também dos seus poderes e não cumprindo o que é tantas vezes pregado de mãos erguidas e olhos postos no céu.

Felizmente há padres e bispos que vivem a sua vida sacerdotal de forma exemplar não esquecendo que todos os seres humanos, e não só, merecem respeito. Esses vão trabalhando muitas vezes em silêncio para a alegria comum e nunca para o sofrimento de inocentes.

 

A Maria do Céu

Nunca foi minha aluna, mas os professores da turma falavam dela. Era estudante do secundário, muito aplicada, muito comunicativa, gostava de participar em diferentes atividades da escola e queria ser advogada. Trabalharia muito para o conseguir, porque os pais tinham de fazer grandes sacrifícios para poderem pagar os estudos. Apoiavam-na em tudo para que conseguisse ser o que sonhava. E louvavam os professores que também a ajudavam. A vida sorria como o céu na terra.

      Maria era também muito bonita e saudável. Só que surgiu um pequeno problema cardíaco, de pouca monta, mas que exigia uma intervenção cirúrgica. Uma coisa rápida e simples, dizia o médico. Em breve, poderia retomar as aulas e a sua vida de jovem promissora. 

      Porém, no hospital, durante a operação, que seria pequena e corriqueira, as coisas correram mal. Muito mal. Como ninguém imaginou. Uns aparelhos não foram devidamente ligados e utilizados. Com esta anomalia, a Maria ficou paralisada e dependente a cem por cento. Para sempre. O hospital não reconheceu o erro, o assunto vai-se arrastando em tribunal, as ajudas são só algumas, a mãe, a principal e permanente cuidadora, faz tudo o que lhe é possível, com os fracos recursos de que dispõe, mas Céu só o vê no nome da sua menina e na maior alegria que seria ouvir uma palavra dita por ela, o que não acontece desde que saiu do hospital há mais de cinco anos.

Quando  entrou para a sala de operações, a Maria levava todos os sonhos de uma jovem que queria viver feliz e ser advogada; quando de lá saiu, o céu dos sonhos tinha-lhe desabado, não deixando sequer antever uma nuvem de esperança.