sábado, 26 de fevereiro de 2022

Quando nos imaginamos na pele dos outros

 

Logo de manhã, vi-a com lágrimas nos olhos. Ela tinha visto as imagens de uma família ucraniana que decidiu fugir de casa para escapar à morte. O homem teve de ficar para combater pelo seu país.

Ela, ainda com lágrimas, contou a notícia. Não fez comparações com a sua própria vida, mas tinha o filho ao colo e, de certeza, que tinha pensado no sofrimento de viver tal situação.

 

Tantas vezes o sofrimento dos outros é visto por nós com indiferença. Se não o sentimos e não o vivemos, é como se não existisse. Mas existe. Perto e longe de nós. E temos a prova quando nos pomos na pele dos outros.


quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

A sopa

 

Ela pediu-me a receita da minha sopa. Respondi-lhe que dependia dos vegetais que tinha em casa. Como vi na cara dela que eu estava a ser muito vaga, porque não tinha o hábito de fazer sopa, expliquei-lhe que às vezes faço com refogado, ao qual junto abóbora, batata doce ou outros vegetais. Quando está tudo cozinhado, passo com a varinha mágica e junto couve, repolho ou outras verduras.

Ah, e gosto muito do feijão. Faz-me lembrar o Brasil - acrescentou.

Sim, costumo juntar ainda um pouco de feijão cozido.

Outras vezes - disse eu - faço um creme de legumes, pondo-os todos cortados na panela ao mesmo tempo, cobrindo com água e deixando cozer. 

Voltou a elogiar a sopa: é muito boa e tem muita vitamina - disse ela com o seu sotaque.


Estou eu a falar de sopa num dia em que um dos políticos mais cínicos da atualidade exerceu a sua prepotência e invadiu o país vizinho, a Ucrânia.

Com medo, muita gente vê-se na obrigação de fugir. Sem qualquer aconchego. Nem de uma sopa.

 

 




domingo, 20 de fevereiro de 2022

Pedido

 

Mundo, ao longo de tantos meses, tive tantas saudades tuas. Quero voltar a ti e abraçar-te como quando reencontramos alguém que amamos e de quem tivemos de nos afastar por circunstâncias cruéis e exteriores a nós. Sempre pensei que nada nem ninguém nos podia separar. E muito menos uns seres invisíveis ao comum dos mortais e que os cientistas dizem ser redondos e cheios de olhos invasores. Também de crueldade variável e que se abeiram das nossas bocas não para nos beijarem, mas para cansarem a nossa respiração e suspenderem a nossa vida.  

Mundo, vejo-te como um enorme ser vivo muito amado, mas do qual todos tivemos de nos esconder durante demasiado tempo, para fugirmos a contágios prováveis e muitas vezes letais. Porém, mesmo em confinamento, continuei a amar-te e a rever-te em algumas das tuas cidades, sem recorrer a fotografias ou desembrulhar souvenirs. Bastava a memória para, magicamente, de olhos abertos ou fechados, logo percorrer, por exemplo, a rua das Flores com cheiro a livros antigos, a vinho do Porto das mercearias, a chocolate quente da pequena mas cosmopolita esplanada; com a graça dos graffiti e frases à moda do Porto... Também me vi a passear devagar junto ao Sena, a subir à Torre Eiffel em tarde fria e de vento, a vaguear num  nostálgico boulevard literário com cafés abertos a encontros e desencontros; a entrar num quente pub londrino de vozearia alegre e vinho tinto ou cerveja a jorrar para copos altos, vendo pela janela autocarros vermelhos e táxis de todas as publicidades...

  Mundo, deixa-me convocar, mas sobretudo revisitar estas e outras cidades, que são marcos felizes que não quero apagar do mapa amoroso da minha vida. Como as amo e como as sentia tristes e sós durante a pandemia, sem ninguém para lhes olhar ou mimar as formas redondas ou lisas de bela e humana arquitetura, o movimento agitado das ruas, a pressa ou lentidão dos carros, os sem-abrigo de olhar parado porque ninguém para para os olhar, os velhos nas passadeiras com medo da rapidez dos mais novos, os turistas que pousam as mochilas enquanto fotografam e delas se esquecem quando validam o momento no facebook, as vendedeiras que apregoam peixe miúdo ou meias para homem, senhora e criança, e que têm de ter sete olhos porque pode aparecer a polícia, as mulheres de saltos altos seduzidas pelas roupas que vão experimentar mil vezes, os homens de camisas abertas aos olhares que desejam, as mulheres tristes e cansadas que seguram sacos pesados nas mãos grossas e vermelhas, os homens e mulheres de negócios com andar de sucesso seguro, os adolescentes a comer sandes e batatas fritas que saem dos sacos gordurosos de papel pardo, os apaixonados que se beijam e se abraçam no prazer imediato que é quase o único que conhecem, os artistas que criam nas mesas solitárias dos cafés, os mercados de todas as vozes e de todos os cheiros e de todas as cores...

Mundo, preciso de te reencontrar nestes e noutros espaços que amo. Em pessoas que amo. Em obras de arte que preciso de olhar para conhecer, amar e compreender melhor a vida que tanto amo. Mundo, escuta com atenção o meu pedido: não voltes a deixar-nos cair em pandémica solidão.

 

 

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Luzes

 

De tarde. A chuva caía silenciosa. De tão pouca. Lembrei-me dos narcisos que tinha descoberto há pouco no canteiro.

Tinham renascido esses sorrisos luminosos. Cada ano nos mesmos lugares.

Quando os olho, ou saúdo, nem sei, acende-se a luz boa e suave de tempos mais primaveris.

 

E ele, entregue ao soninho habitual da tarde, entregava-me a casa, silenciosa e sossegada como a chuva miúda.

Fiquei a olhá-lo e esperei que me devolvesse o sorriso luminoso.


quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

"Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol.

 

Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol.

Ambos existem; cada um como é".

 

Alberto Caeiro (heterónimo de Fernando Pessoa), 1915 

 

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Conversa com mão na mão e enjoo dentro

 

- Ó menina, está mal disposta? Reparei logo na sua cara quando entrou na camioneta.

- Estou mesmo. Não quer ir para outro assento? Acho que vou vomitar.

- Não, menina, dê cá a sua mão. Eu quero ajudá-la.

- Desculpe, mas nem me apetece falar, estou mesmo enjoada.

- É covid. Não se preocupe, menina, porque já tive. Toca a todos. Que mão fria, menina!

- O que vale vou sair na próxima paragem.

-  Quando tive covid, também andei enjoada.

- Mas não estou com covid. 

- Não?

- Estou grávida de quatro meses.

- Ah!


segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

A mala de Noé

 

A história que tenho partilhado por estes dias não é propriamente de postal risonho e feliz de Dia dos Namorados. Mas, como também este Dia de S. Valentim pode ser vivido quando se quiser e puder, publico hoje a quarta e última parte do conto. Deixo - como gosto e espero - uma janela aberta, donde também se pode(rá) ver alguma esperança. Será?

Bom Dia dos Namorados!


 ...

Dir-lhe-ia, então, que poderia passar uns dias comigo, mas que o prazo da estada seria limitado por mim. Como poderia verificar, o espaço onde eu vivia era muito pequeno para duas pessoas. Tínhamos ambos direito à felicidade e à liberdade. Eu poderia ajudá-lo a procurar algum outro sítio onde morar, porque conhecia a região. Se precisasse, emprestava-lhe algum dinheiro, embora eu tivesse pouco e a vida em Londres fosse muito cara. Poderia, portanto, recebê-lo, enquanto ele não encontrasse outro lugar para viver, se me prometesse que aceitava as minhas condições.

 Como tinha a convicção de que viria mais tarde ou mais cedo, uma noite, pus-me a olhar a parede atrás do pequeno sofá e, com um lápis muito claro que está sempre na mesa pequena para sublinhar frases de livros, marquei o sítio onde poderia pendurar os dois quadros que Noé havia feito para me oferecer. Pelas medidas que me tinha enviado, talvez ficassem bem ali.

Nos dias seguintes, não tive quaisquer notícias de Noé. Fui até sossegando, convencendo-me de que talvez tivesse desistido da ideia de vir passar comigo uns tempos em Londres. Poderia ter-se reconciliado com a mulher. Porém, ao regressar a casa, num fim de tarde de chuva persistente e melancólica, fiquei perplexa com uma presença com a qual não contava. Para grande surpresa minha, Noé esperava-me à porta do prédio onde eu vivia. Viu-me, pegou na mala, ainda com os selos do avião, e subiu atrás de mim. Quis saber a razão de ter vindo sem avisar e, em surdina, respondeu-me de forma quase incompreensível. Depois de termos entrado, abriu a mala, tirou os dois pequenos quadros que pintara para me oferecer, passou-mos para as mãos, enquanto olhava a pequena parede atrás do sofá. Vendo as marcas do lápis, disse que eram um sinal de que eu o esperava. Foi quando o vi sorrir pela primeira vez após a chegada.  Depois, pediu café que logo fui fazer. Que estava com pressa de sair, mas que pretendia deixar a mala, se eu não me importasse. Ausentou-se pouco depois, sem dizer o que ia fazer nem a que horas regressava. Esperei-o até tarde, mas não voltou. Nem nos dias nem nas noites seguintes.

Como não atendia o telemóvel nem dava notícias, comuniquei o seu desaparecimento à Polícia que quis ver e abrir a mala. Lá dentro, havia apenas recortes de jornais, que identifiquei como sendo noruegueses por já ter recebido tantas outras páginas (apesar de nunca as ter lido), um livro com o título Victoria, um caderno com páginas cheias de texto manuscrito, cujas palavras ninguém conseguiu decifrar, e uma reprodução do quadro de Edvard Munch: "Melancolia”.

Hoje, mais uma vez, irei à polícia. Terei de contar de novo a história, porque Noé desapareceu há já dez dias, sem deixar quaisquer sinais. Apenas a mala. Já perdi o trabalho numa casa, porque tive de faltar duas vezes seguidas para ir prestar declarações.

Perante o mistério e incómodo do seu desaparecimento, preferia chegar a casa e encontrar Noé à minha espera ou saber do seu paradeiro, para poder retomar a minha rotina diária, com a harmonia por que tanto anseio, e ajudá-lo, tentando afastar alguns remorsos que, de vez em quando, me atormentam.

A Polícia acreditou sempre em mim. Por isso, decidi fazer um pedido ao agente que está a tratar do caso: que fique com a mala e com a reprodução de Munch. Custa-me viver com tanta amargura.

Enquanto embrulhava o quadro para tentar livrar-me dele sem o danificar, vi que havia uma frase por trás, na moldura, que mal se notava e que, para além disso, era também indecifrável para mim: Takk for at du invitert meg hos deg! Deveria ser em norueguês, com toda a certeza. Qual seria o significado?



Ontem, tive a oportunidade de saber a tradução da frase através de uma nova cliente indicada pela empresa de limpezas onde trabalho: "Obrigado por me teres recebido em tua casa".

Quem ma traduziu foi uma senhora norueguesa que veio habitar a casa que passei a limpar.

Ela também tinha chegado a Londres havia precisamente dez dias.

 

 

 

 

domingo, 13 de fevereiro de 2022

A mala de Noé

 ...

Sabia que ele poria constantemente em causa a minha forma de viver e de agir, tentando impor as suas ideias sobre tudo. Eu teria de estar sempre a justificar as minhas legítimas opções. A minha profissão de empregada de limpeza também seria questionada e criticada por ele, porque já não era a primeira vez que o fazia. Dizia-me com frequência que não entendia como uma pessoa com instrução se sujeitava a limpar as casas que outros sujavam. Por isso, quanto às cartas, nem as leria. Apesar dos nossos laços familiares, não havia proximidade que implicasse o sacrifício de o receber e viver com ele durante uns tempos. Mesmo que fossem breves, parecer-me-iam intermináveis. De vez em quando, responderia a uma das cartas para lhe atenuar os mais do que certos estados de solidão e melancolia.

O tempo foi passando em West Hampstead, onde eu gostava cada vez mais de viver. Durante algumas semanas, respondi a duas cartas de Noé, omitindo sempre o convite que ele esperava e que me lembrava em toda a correspondência. Numa das cartas, Noé voltava a falar das peças que havia feito para me oferecer. E que já as tinha embrulhado. E que já as tinha posto na mala. E que me enviava um excerto de Victoria que tinha copiado à mão. E que, se eu pretendesse, me mandaria mais páginas, porque, como não podia trabalhar, tinha muito tempo livre e havia sido aconselhado pelo médico a ocupá-lo a seu gosto. No tempo em que estivesse comigo, para além de poder ensinar-me uma língua nova, poderia falar-me da vida e da obra de pintores noruegueses como Edvard Munch que, tal qual como ele, conhecera tristezas e deceções. Bastaria ver o quadro "Melancolia", um dos seus preferidos.


Dizia também que não esquecia que tinha mais família, mas que, tal como eu bem sabia, comigo o diálogo sempre fora mais fácil. Voltar a Portugal estava fora de hipótese, porque sentia-se desenraizado no seu país natal, donde saíra havia demasiados anos e sentia que os laços familiares e de amizade já se tinham quebrado. Recordava-me que, entre mim e ele, o contacto nunca se perdera. E que ambos gostávamos de Arte, incluindo Literatura, e que esses eram fortes traços de união. De novo não respondi de imediato. Para mais, Noé não tinha e-mail e a comunicação era feita por carta, à moda antiga, o que implicava mais tempo para me deslocar aos Correios.

Porém, em casa e no meu trabalho, os pedidos de Noé passaram a ser recorrentes na minha cabeça, porque, afinal de contas, ele era um ser humano de certeza em sofrimento. Entrei numa fase de dúvida e hesitação que me levou, não sei se por cansaço se por magnanimidade, à aceitação da sua vinda. Bem vistas as coisas, talvez fosse melhor recebê-lo. Ele já não era nada novo, vivia uma situação desesperada por causa da separação da mulher, que ele dizia continuar a amar profundamente. Julgo que só quando falava dela era verdadeiro até às lágrimas.

Foi quando, finalmente, tomei a  decisão que julgava definitiva.


(III)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

A mala de Noé

            ...

Numa das cartas, contou-me que as discussões com a mulher, norueguesa, continuavam e que, alguns dias atrás, depois do trabalho e antes de regressar a casa, tinha tomado comprimidos para dormir, para que, logo que chegasse, pudesse deitar-se e adormecer profundamente, sem nada dizer e sem nada ouvir. Não previra, contudo, que o trânsito pudesse atrasar. Adormeceu a conduzir, quase provocou um grave acidente, sendo levado pela polícia e, dias mais tarde, internado numa clínica psiquiátrica. Para além do trágico da situação, pensei, com certo alívio, que, enquanto lá estivesse, seria de certeza bem tratado e não me importunaria.
         Após algumas semanas, recebi nova carta de Noé. Pousei-a em cima da mesa, sem vontade de a abrir, com receio de encontrar mais páginas de jornais noruegueses que eu não entendia e que já me enervavam. O destino seria o de sempre: contentor de reciclagem. Acabei por abrir. A folha era grande mas o espaço de escrita bem curto. Noé dizia que estava melhor, que no internamento tinha aprendido a fazer umas peças de artesanato e que mas queria oferecer. Poderia trazê-las quando viesse passar uns dias comigo porque continuava à espera que eu aceitasse o seu pedido. As peças, uns pequenos quadros de parede, tinham frases que me eram dedicadas, mas que não me preocupasse porque as tinha escrito em português.

Às vezes, à noite, em casa, eu chorava por não ter percebido bem as indicações da patroa, das clientes ou das colegas e, por isso, tinha errado no meu trabalho, sentindo, nesses momentos, mais pesada a solidão. Agora, por outro lado, não continha as lágrimas de algum desespero porque queria viver só e não com aquele familiar que me azedaria os dias, que exibia ostensivamente os seus conhecimentos de uma língua que eu desconhecia, para mostrar erudição e apoucar-me. Falava com frequência e com paixão de Knut Hamsun e de um livro que o escritor, prémio Nobel da Literatura de 1920, escreveu: Victoria. Quando falávamos sobre essa obra, perguntava-me sempre se eu conhecia a história.  Como lhe dizia que não,  concluía:

- Não sabes quem foi Victoria? Então, se a menina não leu, acabou-se a história!

Em relação às minhas leituras, ele dizia sempre que nenhuma tradução era fiável. "Traduttore, traditore", repetia sublinhando a expressão italiana. Voltava a falar de Victoria, que lera no original, e do tremendo desencontro amoroso que na obra é abordado.

 

Eu tinha sido infeliz no casamento durante anos a fio, mas estava a encontrar algum equilíbrio, como pretendia. Às vezes, pensava que a minha vida não era a que tinha desejado, mas tinha saúde e o dinheiro que ganhava permitia-me pagar as minhas contas, e, sobretudo, ter a paz que me faltara durante largos anos. Porém, se recebesse Noé no meu pequeno apartamento, deixaria de ter acesso a essa  tranquilidade, sobretudo de final do dia, a que me tinha habituado e de que tinha necessidade. Conhecia-o bem. Instalava-se e prolongava a sua estada até à exaustão. Seria preciso avisá-lo inúmeras vezes de que o prazo de permanência na casa tinha expirado, sem garantia de sucesso. Acontecia sempre assim quando tinha problemas graves com a companheira. No entanto, mesmo na sua ausência, não se cansava de dizer que era a mulher da sua vida e que por ela iria até ao fim do mundo - por ar, por terra ou por mar.

  Estava decidido: dir-lhe-ia que não me era possível recebê-lo. 

 (II)