Com os seus botões - figura sentada 1
Tanta gente aqui no hospital à espera de vez. Não conheço ninguém, mas deve haver muitos professores, a maior parte reformados. É bom haver convenções. Que bom eu ir à consulta e saber que o problema não é grave. Já tomei um café e soube-me bem. Passo a maior parte do meu tempo em casa. Só saio para a minha pequena caminhada. Tenho medo de cair. Hoje estou feliz porque saí e, se cair, tenho quem me ajude. Há muito tempo não vestia este fato. Os sapatos apertam-me um bocado, mas trazem-me boas recordações e a caixa pode arejar. Sempre gostei de me arranjar. Em casa, como estou só, uso demasiado o roupão, mas, pensando bem, não é a melhor indumentária para vestir o meu dia.
Agora reparo, aquela fulana está sempre a olhar para mim. Será pelas minhas rugas? Será que estou despenteada? Mas ontem fui à cabeleireira e quando saí não havia vento. Para além disso, a laca que a cabeleireira me põe é à prova de furacão. Já lhe disse que faz mal ao ambiente, mas ela é teimosa. Diz que me fica muito bem. Traz-me o espelho para me mirar de vários ângulos. Nem quando eu era secretária de direção, usava o cabelo assim. Também não precisava porque era jovem e bonita. E sempre gostei da minha liberdade. Até no cabelo. Agora deixo-me levar pelos mimos.
Os olhos dela fixos em mim parece que me estão a tirar uma radiografia. Fogo, como diz agora toda a gente. Se demorar a chegar ao meu número, levanto-me e vou perguntar-lhe se me conhece. Não tem cara de quem esteja a tramar seja o que for, mas é tramado o modo atento como olha. Se me levantar para falar com ela, é da maneira que alivio os meus pés e falo com alguém, sem ser só com a funcionária do guichet e com o médico.
Com os seus botões - figura sentada 2
Ui, ainda faltam trinta números para chegar à minha vez. O que vale é que neste hospital não faltam funcionários nem pontos de atendimento e os números rolam a bom ritmo no ecrã. Devem estar aqui muitos professores, porque a instituição tem convenção com a ADSE. Atrás de mim, uma jovem diz que já passa das onze e meia, que vai dar aulas à uma hora em Aveiro e ainda não fez o exame médico.
Todo o tempo do mundo terá aquela senhora tão bem posta, como dizia a minha mãe. Está sentada do lado oposto. Há tanto tempo que não via alguém vestido assim. Um fato chanel, como antigamente nas revistas chiques de moda. A blusa com um grande laço e até os sapatos são a condizer.
Qual teria sido a sua profissão? Se a teve, foi professora quase de certeza. Daquelas rígidas que nunca deixavam o programa por cumprir, sem tempo para outros diálogos. Para quem a liberdade era palavra desnecessária e pejorativa. Devo estar a fixá-la bastante, creio. Mas a figura dela ficou no guarda-fatos de muitas das memórias de quem também viveu esse tempo, como eu. Quando chegar a minha vez, se passar por ela, vou sorrir-lhe. Falar-lhe talvez não, porque de certeza que não quer ser incomodada e em casa não lhe faltará com quem falar.