sábado, 22 de junho de 2013

COMPOTA DE AMEIXAS COM CHÁ E CHEIROS




Ingredientes:

500 g de ameixas frescas e maduras

Um bule de chá com açúcar

Quatro colheres, das de sopa, de rum

Algum tempo, muito afeto

Acessórios essenciais: uma cesta, ervas aromáticas, um bloco, uma caneta, luz do Sol



Se tiver quintal, percorra-o pela manhã. Lá pelo meio de uma manhã de Sol. Esqueça as ervas daninhas e tudo o que houver de mais rasteiro. Os olhos devem ser levantados para além da sua cabeça, junto das ameixoeiras. Use as duas mãos que ajudarão na procura de ameixas rijas e maduras. Não importa a tonalidade. Podem ser brancas, rosadas ou vermelhas. Tenha consigo uma cesta. No fundo, pode pôr hortelã-pimenta, alecrim, manjericão, lúcia-lima, erva cidreira… Colha os frutos ainda com algumas folhas. Utilize uma tesoura pequena de poda. Usada mas não enferrujada.

Se não tiver árvores de fruto, procure as ameixas num mercado tradicional. Se a vendedeira quiser aldrabar no preço, é por uma boa causa. Porém, não deixe de regatear. E de escolher os frutos bem frescos, perfumados, coloridos.

Chegando à cozinha, ponha a cesta – mesmo que vá ao mercado, prefira-a ao saco de plástico – sobre a mesa. Retenha as cores e os aromas. Pode até fotografar e registar, por escrito, as suas impressões, porque a memória muitas vezes é curta; as imagens amontoam-se, esbatem-se, apagam-se.

Utilize um bloco que tenha comprado numa viagem com momentos de luz e descoberta. Ponha-o sobre a mesa e vá escrevendo frases soltas. Poderá reutilizá-las, recortando-as e colando-as no frasco. Evite tapar os frutos.

Não desligue o telefone nem o ponha em silêncio. Se alguém telefonar, partilhe o momento.

Lave depois as ameixas, já sem pé nem folhas. Faça-o numa vasilha grande, sem pressa, mexendo os frutos delicada e amorosamente.

Ao lado, tenha outra vasilha. Antiga de preferência. Que lhe traga boas recordações de alguém que gostava de si, que se preocupava consigo, que lhe mostrava sempre um sorriso e que também contava histórias doces.

Misture e ajeite bem as ameixas nessa vasilha. Sobre elas, deite devagar o chá. Use um bule que viu sobre a mesa em dias de festa ou em momentos felizes. Cubra todas as ameixas, independentemente da forma ou do conteúdo. Ponha a tigela num sítio fresco e tranquilo da cozinha. Dê-lhe espaço e visibilidade. Vá à arca e procure uma toalha de estopa ou de linho. Pode ser grossa e enrugada. Aconchegue-a sob a malga. Deixe repousar durante a tarde e noite. Aproveite o silêncio aromatizado para escrever mais longamente.

No dia seguinte, levante-se cedo. Abra a janela. Espreguice-se, esquecendo que a vizinha é madrugadora e curiosa.

Já na cozinha, escorra as ameixas e passe-as para uma compoteira transparente. O rum irá para o lume com um pouco de açúcar e a calda que ficou. Logo que tome ponto, deite-a sobre as ameixas, deixando macerar duas horas. Coloque a compoteira num sítio onde dê o Sol. Vá rodando o frasco para iluminar todos os frutos e poder observá-los melhor na sua unidade e diferença. Saboreie o momento. Guarde a cesta.

Por fim, ofereça as ervas aromáticas à vizinha. Ela disse um dia que não gostava de ameixas.


Nota: Já partilhei, há tempos, esta "receita". Na verdade, nunca a fiz. Interessou-me mais pelo compor das palavras do que a compota em si. Mas confesso que, quando tiver ameixas, irei fazê-la.  Fica a promessa?

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Haverá vidas inúteis?

Título do livro: A Vida Inútil de José Homem

A autora: Marlene Ferraz
Nasceu em 1979. É psicóloga e escritora.
Pode ler-se que "assume um enamoramento imprudente pela escrita".

 Uma das páginas do livro que ganhou o Prémio Literário "Revelação Agustina Bessa-Luís 2012".


 Num dos últimos sábados à noite, vi, no canal 2, o programa "Bairro Alto". A entrevistada era uma jovem escritora, nascida em Viana do Castelo. Fiquei seduzida pelo diálogo e fui ficando porque gostei do que ia ouvindo. Marlene Ferraz, a escritora e também psicóloga, falava sentida e pausadamente, de muitas coisas e do seu amor por obras literárias e personagens para ela inesquecíveis. Deu o exemplo de Blimunda, que via por dentro das pessoas e das coisas. E, curiosamente, achei que ela tinha um olhar que fazia lembrar essa personagem criada por José Saramago e que mais nos chama para o Memorial do Convento.
 
O primeiro romance, publicado pela Gradiva, de Marlene Ferraz começa com uma
"MENSAGEM
Qualquer homem de coração cai. Unhas cravadas no chão duro, as entranhas da terra que o há de comer ainda não o chamam. É tempo de levantar-se, ir adiante. Assim se faz a nossa perfeita criatura".
 

quinta-feira, 20 de junho de 2013

O sonho de Mia



Nunca irei esquecer o dia em que pela primeira vez encontrei Mia. A minha camioneta avariou na sua aldeia e imediatamente simpatizámos um com o outro. Eis a sua história.
A aldeia de Mia chama-se Acampamento San Francisco e fica situada entre a grande cidade e as montanhas cobertas de neve. Não é bem uma aldeia, mas é lá que ela vive. Não há belos jardins, nem árvores. Não há estradas a sério, apenas um caminho em terra batida.
O pai de Mia vai todos os dias à cidade vender ferro velho na sua camioneta. Noutros tempos, havia terras cultiváveis, mas a cidade estendeu--se desmesuradamente e hoje só resta aquilo que é deitado fora. As casas são feitas à toa, com toda a espécie de materiais que os habitantes da aldeia recolhem nos locais onde o lixo da cidade é descarregado….
Todas as noites Mia corre ao encontro do pai que, às vezes, vem contente, com algum dinheiro no bolso, mas outras vezes triste, de mãos a abanar. O pai sonha vir a construir uma casa de tijolo…
Uma tarde, no início do outono, o pai de Mia voltou com um sorriso estranho nos lábios. Abriu o blusão e saiu de lá o focinho lindo de um cão! Tinha-o encontrado na cidade, sozinho e abandonado.
Mia beijou logo o focinhito e chamou-lhe Poco, por ser muito pequenino. Mostrava-o a toda a gente e depressa se tornaram inseparáveis. Poco adorava a sua nova família: lambia continuamente as caras de Mia e dos pais… Mia até apresentou Poco a Sancho, o cavalo, e o cãozito seguia Mia para todo o lado, mesmo até à escola. Bem comportado, esperava cá fora que as aulas acabassem.
Mas, naquele inverno, o frio era intenso e um dia Poco desapareceu. Mia procurou-o por todo o lado.
— Acaso viu o meu cão? É pequenino, castanho e com manchas — perguntava ela a todos.
— Olha, vi passar uma matilha naquela direção — disse-lhe um homem, apontando para o lado da lixeira.— Pode ter ido com eles.
Mia saltou para cima do cavalo, e lá foram, ela e Sancho, à lixeira, procurar o cãozinho.
Mas, à medida que o procuravam, iam-se afastando cada vez mais da aldeia. E, quando Mia se apercebeu, já se encontrava no cimo de uma montanha muito alta de onde se podia ver a nuvem negra que se estendia sempre sobre o vale. Mas, acima dessa nuvem, o ar era tão puro que até lhe custava respirar! Tamanha brancura dava-lhe volta à cabeça! Desceu do Sancho e pegou num punhado de neve que provou. E, depois, pôs-se a dar cambalhotas naquele imenso tapete branco.
Sancho olhava para ela e não tardou a imitá-la, rebolando-se na neve e pontapeando o ar com as suas velhas pernas cansadas. A Mia, deitada de costas na neve, com os braços e as pernas esticadas, nunca o céu tinha parecido tão azul e tão próximo…
Chamavam por Poco e procuraram-no até cair a noite. Surgiram então as primeiras estrelas. Mia estava cansada, mas confiava em Sancho: sabia que o cavalo havia de a conduzir a casa, sã e salva. Lá iam calmamente quando, de repente, Sancho parou para cheirar o chão. Mia olhou em redor. Já não havia neve, apenas flores a perder de vista. Colheu um ramo, mas com raízes. Aquelas flores iriam sempre recordar-lhe o dia em que tanto tinha procurado Poco e acabara por encontrar aquele lugar maravilhoso, sob as estrelas.
No dia seguinte, Mia plantou as flores, colocando algumas em latas de conserva. Tratou delas e regou-as todos os dias. As flores desenvolveram-se muito bem, crescendo vigorosas, e alastraram durante o verão. No outono, o vento espalhou as sementes em redor da aldeia, e estas rapidamente se multiplicaram. Na primavera seguinte, as flores tinham invadido toda a
aldeia e coberto as lixeiras de um manto branco, tão branco como a neve das montanhas. Mia estava encantada, mas não esquecera Poco por quem diariamente continuava a chamar.
Numa bela manhã, quando o pai estava de saída para a cidade com uma carga enorme de objetos para vender, Mia pediu-lhe que a deixasse ir também para tentar vender as flores. Tinha-as às dezenas, plantadas em latas de conserva. O pai sorriu, mas deixou que a filha tentasse a sorte.
Mia pousou as flores nos degraus da catedral à beira da ferro velho do pai. E logo surgiram os primeiros clientes, tão numerosos que o pai teve de largar o seu negócio para a vir ajudar.
— Donde são estas flores? — perguntavam as pessoas.
— São as flores do Poco — limitava-se ela a responder.
Dali em diante, Mia passou a vender flores com o pai. Como ele, também ela sonha em vir a ter uma casa de tijolo.
Mas sempre que passava por uma matilha de cães, Mia pensava em Poco. Até ao dia em que um cão parou para vir cheirar as flores. Lambeu-lhe a cara e deitou-se a seus pés.
— Estas são as flores que vêm das estrelas — disse ela baixinho.
Vinha eu de Santiago do Chile e dirigia-me para a cordilheira dos Andes, quando dei com um terreno inculto, um baldio que, na realidade, era uma gigantesca lixeira a céu aberto onde toda a cidade despejava o lixo. Manuel, que lá vive, fez-me ver que, para ele e os demais habitantes da aldeia, aquele terreno lhes permitia recolher objetos que seriam depois reciclados e vendidos….
 
Michael Foreman
Le rêve de Mia
Paris, Éd. Gallimard-Jeunesse, 2007
(Tradução e adaptação)