Qamar, uma jovem turquemena que compôs um poema sobre a tecelagem de tapetes, vivia em Shebeghan, na província de Jawzjan, no norte do Afeganistão. Aos dezasseis anos, Qamar preferia andar na escola pois queria ser médica ou professora. No entanto, sendo o principal ganha-pão da família, não tinha alternativa senão passar os seus dias ao tear. Os tapetes afegãos são sobretudo feitos por mulheres cuja habilidade e trabalho árduo quase nunca são reconhecidos… Quando é que o nome de alguém como Qamar alguma vez aparece na pequena etiqueta no reverso desses tapetes que se vendem por centenas de dólares?
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Grande parte da história do Afeganistão está patente nos tapetes das mulheres. A diversidade étnica do país está nos seus padrões. A lã provém das ovelhas, das cabras e dos camelos que pastam nas colinas e os tingidos tradicionais derivam das plantas, frutos e vegetais do país. A casca da romã e as nozes dão o castanho, o vermelho resulta das raízes da granza, o amarelo do açafrão ou da camomila, e o azul do anil. Mas, mais do que os materiais, os tapetes carregam as emoções e sentimentos das mulheres que os fazem.
Ninguém sabe quando as mulheres afegãs começaram a tecer tapetes. Sempre que procuro informar-me sobre a sua história, dizem-me que remonta a séculos e que é uma arte que foi transmitida de mãe para filha, juntamente com os seus padrões específicos. Mas uma coisa é certa: os tapetes representam o melhor exemplo da arte afegã. No passado, os reis afegãos ofereciam tapetes de presente a dignitários estrangeiros, e, agora, o presidente oferece-os a outros dirigentes nacionais. Quando há um evento oficial com políticos ou celebridades proeminentes, todos caminham sobre
uma passadeira vermelha afegã e, quando uma rapariga afegã se casa, os pais ou familiares presenteiam-na com um tapete para o seu quarto.
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Montar um tear em casa é fácil e os instrumentos necessários para tecer são baratos e fáceis de obter. Para os nómadas, existem mesmo pequenos teares portáteis — com os fios de lã presos — que podem ser colocados em cima de um burro. A tecelagem de tapetes é principalmente uma atividade que as mulheres e as crianças podem executar sem terem de sair de casa. Durante o período dos talibãs, quando as mulheres eram proibidas de sair — e as jovens impedidas de ir à escola —, podiam ganhar dinheiro tecendo tapetes em casa, e as mulheres e crianças que não eram originárias de famílias de tecelãs de tapetes adquiriram essas competências. Mais tarde, quando muitos afegãos se tornaram refugiados no Paquistão e no Irão, as mulheres voltaram a dedicar-se à tecelagem de tapetes, começando a exportar daí os seus produtos artesanais para o resto do mundo.
Graças ao Afghan Woman's Hour, conheci muitas tecelãs de tapetes, mas, até então, não fazia ideia das adversidades por que passavam para criar estas obras de arte e fiquei impressionada com a infelicidade de muitas destas mulheres. Descobri que, no norte do país, as raparigas eram valorizadas pela sua capacidade para tecer. Dedicavam-se de alma e coração aos seus tapetes, mas ninguém se preocupava com o que elas sentiam; só queriam saber quanto dinheiro o tapete renderia. Algumas jovens disseram-me que os pais as obrigavam a tornar-se máquinas de tecer tapetes. Não faziam outra coisa senão dar nós, calcar, amarrar e cortar durante horas a fio. Estavam
a envelhecer atrás dos teares, a perder a energia, beleza e saúde. Não faziam ideia de quanto os seus tapetes podiam render no mercado internacional, e apenas sabiam que estavam acorrentadas ao tear. Hoje em dia, olho com outros olhos para os tapetes afegãos que tenho em casa e interrogo-me sobre as mulheres e crianças que os teceram.
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Samira, como Qamar, é de Sheberghan e é uma típica tecelã de tapetes. Depois de ler o poema de Qamar, senti interesse em conhecer mais jovens como ela e, no norte do Afeganistão, não são difíceis de encontrar: quase todas as casas têm um tear de madeira. O norte do país é principalmente habitado por turquemenos e usbeques que dão valor às mulheres consoante o grau de habilidade que elas possuem para tecer tapetes. Se, por exemplo, uma rapariga é capaz de confecionar belos tapetes que valem bom dinheiro, a família de um rapaz paga um preço alto por ela para se casar e a
família da rapariga dirá: «Os seus cinco dedos são cinco chiraghs (luzes).»
Os tapetes afegãos que comprei recordam-me constantemente essas cinco luzes quando olho para eles. Depois de ouvir as histórias de vida de Samira e de Qamar, valorizo ainda mais esses tapetes, pois reconheço o seu verdadeiro custo em termos de sacrifício e dedicação.
Samira tecia rapidamente os fios coloridos. Ao seu lado, no chão, estava a lâmina para cortar os fios e, à sua frente, um desenho do padrão do tapete. Mal olhava para ele, era capaz de tecer de olhos fechados. Ao fim de algum tempo, os seus dedos pequenos e finos começavam a doer de tanto torcer e rodar o fio. Samira estava sentada numa almofada redonda diante do kargah, um grande tear de madeira. Tinha mais de seis metros de largura e enchia quase todo o comprimento da sala. Tinha de esticar bem os fios para chegar ao ponto onde estava a tecer.
A sala onde trabalhava era escura e estava cheia de pó da lã. Samira começava a trabalhar de manhã cedo antes de a mãe lhe fazer companhia. Era a filha mais velha; o irmão mais novo andava na escola e a irmã ainda era bebé. Quando o irmão saía de casa para a escola, já Samira estava a trabalhar no kargah que o pai construíra. Samira e a mãe passavam o dia sentadas diante do tear. Era o trabalho delas. Samira usava um lenço quadrado bem amarrado à cabeça e sentava-se curvada sobre os fios quando tecia. Por vezes, quando se sentia muito cansada, encostava-se ao kargah, repousando o corpo contra a estrutura.
Estava ocupada a tecer e a cortar os fios quando a mãe gritou:
— Eh, preguiçosa, assim que viro as costas, paras de tecer e encostas-te ao kargah.
Samira começou a tecer ainda mais depressa.
— Não, mãe, estive sempre a tecer desde que saíste daqui. Anda ver, já fiz o primeiro padrão. Estás satisfeita agora?
A mãe examinou atentamente a peça que ela tecera.
— Muito bem, minha filha. Parabéns, fizeste um belo trabalho, mas agora tens de trabalhar mais depressa porque a tua irmãzinha não me deixa trabalhar tanto como preciso e, se não acabarmos este tapete a tempo, o teu pai vai zangar-se. E que desculpa vai ele dar ao tojar (comerciante)?
Samira olhou para o kargah e pôs-se a tecer ainda mais depressa. A cada nó que atava, sentia-se mais revoltada e, a cada sopro, engolia mais uma golfada de pó. A mãe foi sentar-se ao lado dela. Samira fazia sempre imensas perguntas à mãe e esta respondia sem interromper o trabalho de tecer e controlar a tecelagem da filha; inspecionava atentamente o trabalho dela e corrigia erros, ensinando-a a tecer com
precisão e estilo. A mãe tinha também um talento inato para misturar cores e criar desenhos novos e elegantes.
— Mãe, quando acabarmos este tapete, temos de começar outro?
— Minha filha, fazes essa pergunta todos os dias quando começamos a tecer e a minha resposta é sempre a mesma; sim, teremos de recomeçar este trabalho. Teremos de continuar a tecer enquanto pudermos, porque o teu pai já aceitou muitas encomendas do tojar — disse, sorrindo.
— Sim, mãe — respondeu Samira. — Eu sei, mas estou farta e quero ir para a escola como o Naeem. Porque é que ele pode andar na escola e eu não? Eu tenho onze anos e ele tem dez. Não é uma diferença de idade muito grande, pois não?
— Ouve, minha filha, eu andei na escola?
Samira abanou a cabeça.
— Não, eu sei que não andaste na escola.
— Pronto, aí tens a resposta. A tua mãe não andou na escola e tu também não vais andar. Mas o teu pai andou quando era criança e agora o teu irmão também anda. Não te esqueças de que só tens um irmão. Um dia, tu e a tua irmãzinha vão viver para casa de outras pessoas e depois vão ajudar os vossos maridos ocupando-se das tarefas domésticas, exatamente como eu ajudo agora o teu pai.
Samira não ficou muito satisfeita com a resposta da mãe, mas não disse nada e continuou a tecer, os seus dedos manobrando os fios a grande velocidade. Não tardou a chegar a hora de almoço e pediu à mãe para parar e comer alguma coisa. A mãe concordou e Samira saiu para o pátio.
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O ar estava seco e fresco. O outono tingira as folhas das árvores de amarelo e laranja e uma forte brisa soprava-as para o chão. Tentou olhar para o céu que, apesar do tempo frio, estava luminoso e soalheiro, mas descobriu que não conseguia abrir os olhos porque a luz os feria e, assim, protegeu-os com as mãos. Passando os dedos pela cara, sentiu uma dor nas articulações e, quando tentou endireitar-se, sentiu uma pontada aguda nas costas. A consequência de estar horas curvada sobre o kargah, numa sala escura, era que já não conseguia estar direita, e, como tinha estado a tecer desde manhã cedo, era a primeira vez que via a luz do dia.
Samira encaminhou-se lentamente para a cozinha, dirigindo-se ao cesto do pão. Pegou num pão que a mãe cozera no tanoor e pôs a chaleira ao lume. Todos os dias, por volta do meio-dia, voltava à cozinha, fazia chá verde, pegava em duas chávenas, no açúcar e no pão, e levava-os para a sala de tecelagem. Era o almoço delas. A mãe só
cozinhava à noite quando o marido chegava a casa; não interrompia a tecelagem durante o dia para fazer de comer para os filhos. Além disso, era mais barato preparar apenas uma refeição por dia.
Samira sentou-se junto a uma pequena janela onde a irmã mais nova estava a dormir no gahwara (berço). Serviu chá para a mãe e para si, adicionando muito açúcar, e começou a comer o pão. Adorava o chá e o pão. Pouco depois, a mãe pediu-lhe que fosse ver a irmã. Como há muito que ela não se mexia, Samira ajoelhou-se ao lado do gahwara e estudou atentamente a bebé.
— Está tudo bem, mãe. Está simplesmente a dormir.
— Não percebo porque é que ela não acordou. Está a dormir desde as nove da manhã e já é quase uma da tarde.
Samira gracejou, dizendo que a irmã talvez estivesse tão cansada como elas, e depois perguntou:
— Mãe, quando ela for mais velha, também vais pô-la a tecer tapetes?
— Claro, ela não é diferente de nós. É mulher e tem de aprender a tecer, senão nenhum homem se casa com ela.
Samira sabia o que ela queria dizer. A mãe e as mulheres da terra tinham-lhe dito muitas vezes que, para arranjar um marido decente, uma jovem turquemena tinha de saber tecer tapetes. A maioria das raparigas na aldeia aprendiam a tecer em casa, aos sete ou oito anos, com as mães, as irmãs, as tias ou as avós. Entretanto, os homens da família arranjavam comerciantes para comprar os tapetes ou procuravam mercados onde podiam vendê-los aos clientes. Alguns dos rapazes andavam na escola, mas não todos, e algumas famílias ensinavam até os filhos a tecer. Mas o irmão de Samira não tecia tapetes. Único rapaz da família, era especialmente valioso e a mãe sabia que tecer tapetes fazia mal à saúde — muitas mulheres e crianças contraíam doenças dos pulmões por trabalharem, dia após dia, num ambiente tão cheio de pó. Por outro lado, a mãe queria que ele frequentasse a escola para, um dia, ser médico e poder tratar as dores nas costas e nos dedos que afligiam mãe e filha.
Enquanto comia o pão, Samira virou-se para a mãe e perguntou:
— Mãe, achas que os meus cinco dedos são como cinco luzes?
A mãe sorriu e, dirigindo-se à filha, pegou-lhe na mão. Olhou para os pequenos dedos de Samira.
— Minha querida filha, os teus dedos ainda não são cinco luzes mas para lá caminham. Queres saber quando se tornam luzes?
— Quero, mãe, por favor — disse Samira entusiasmada. — Diz-me como e quando
se vão tornar cinco chiragh.
— Minha querida princesinha, será no dia em que eu te mandar levantar cedo para ires para o kargah e tu obedeceres imediatamente. Será no dia em que deixares de te queixar que o teu irmão anda na escola e tu não. Será no dia em que deixares de protestar que os teus dedos estão cansados e que não queres tecer tapetes. E, finalmente, no dia em que teceres um tapete de seis metros sozinha sem te queixares, os teus dedos tornar-se-ão cinco chiragh!
Samira não achou muita graça à resposta e foi sentar-se diante do kargah, recomeçando a tecer. Movia-se com rapidez e depois começou a cortar os fios com a lâmina. A mãe levantou-se para ver como estava a bebé antes de retomar o seu lugar ao lado de Samira e examinar a secção que ela acabara de tecer.
— Para com isso! Para, Samira. Olha para o que estás a fazer.
Samira parou imediatamente,
— Que é que eu fiz? Estou a tecer como tu.
A mãe pegou na lâmina e cortou os pontos na peça que Samira acabara de tecer.
— Se não puxares o fio o suficiente, e não cortares na perfeição, nem copiares corretamente o padrão, destróis meses de trabalho.
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Samira começou a desfazer a secção que concluíra e deixou a mãe começar a tecer para então a copiar. Ambas iam tecendo rapidamente em silêncio. Ocasionalmente, o silêncio era quebrado pelo som dos martelos de tecelagem a calcarem uma fila de nós que tinham acabado de atar. Como a mãe estabelecia uma quota diária de trabalho, Samira não estava autorizada a levantar-se e a abandonar a sala, a não ser para ir à casa de banho ou à cozinha. A mãe estava perfeitamente ciente de que a filha arranjaria todas as desculpas que pudesse para escapar, mesmo que apenas por momentos. Samira era demasiado nova e era-lhe indiferente que o tojar ou qualquer outra pessoa apreciasse os seus tapetes. Tecer era um aborrecimento para ela e preferia estar lá fora a brincar com as suas amigas ou a fazer roupa para as bonecas. Há três anos que era obrigada a trabalhar constantemente sem ser autorizada a brincar. A mãe e o pai consideravam-na suficientemente adulta para ficar em casa a aperfeiçoar as suas competências.
— Mãe, se eu tecer mais depressa hoje, posso ir a casa da Shakila mais logo, brincar com as bonecas dela? — pediu.
— Olha para mim, Samira; desde manhã que me estás a aborrecer com desculpas e perguntas irritantes. Porque não te sentas simplesmente em silêncio a fazer o teu
trabalho? Cala-te e concentra-te!
Olhou então ansiosamente para a filha no gahwara.
— Tu dás-me cabo do juízo e a tua irmã ainda não acordou. Já está a dormir há demasiado tempo e eu estou a ficar preocupada.
A mãe de Samira não tirava os olhos do gahwara e acabou por parar de tecer e ir espreitar. Desapertou as cintas do berço, pegou na bebé ao colo e tocou-lhe no rosto, mandando em seguida a filha ir a correr buscar água. A bebé estava pálida e a sua respiração era muito lenta. Dava a impressão de que estava inconsciente e a mãe de Samira não conseguia reanimá-la. Samira apareceu com água numa pequena colher e a mãe tentou enfiar algumas gotas na boca da filha. Esta engoliu um pouco de água mas não abriu os olhos, e a ansiedade tomou conta da mãe de Samira. Precisava de ajuda e mandou Samira a casa dos vizinhos chamar Khala Shah Gul.
— Pede-lhe que cá venha. Diz-lhe que a tua irmã não acorda.
Embora estivesse preocupada com a irmã, Samira não podia senão experimentar uma sensação de liberdade por ter licença para sair por alguns momentos. Correndo para casa dos vizinhos, sentia-se excitada por ir chamar Khala Shah Gul.
— Não te distraias com as outras raparigas. Vai diretamente para lá e volta logo para casa — ouviu a mãe gritar.
Khala Shah Gul era uma das mulheres mais velhas da vizinhança e era parteira. Ela própria dera à luz doze filhos — agora quase todos casados e com filhos — e vivia próximo da família de Samira. Pertencia igualmente a uma família de tecelões de tapetes, mas era conhecida por dar conselhos às mães sobre como manter os bebés calados para poderem dedicar-se à tecelagem. Enquanto aguardava o regresso de Samira, a mãe ia embalando a menina no regaço, segurando-lhe nas mãozinhas, mas o seu corpo minúsculo não dava sinais de vida. Era como se estivesse embriagada. Ela começou a beijar as mãos e os pés da bebé.
— Minha pequenina, acorda. Por amor da tua mãe, acorda. Porque é que ainda estás a dormir? A mamã está a ficar muito aflita. — Não parava de falar com a filha e de lhe fazer mimos. — Eu sei que quando choras eu quero que durmas, mas agora são horas do teu leite. Acorda, meu amor, acorda!
A bebé continuava a respirar lentamente, mas, de resto, não se mexia e a mãe estava cada vez mais ansiosa. Abriu a parte de cima do vestido, tirou um peito para fora e fê-lo roçar suavemente contra o rosto da menina. Gotejou leite do mamilo para a boca da bebé, mas ela não começou a sugar e o leite espalhou-se-lhe no rosto. Alguns minutos depois, Samira chegou com Khala Shah Gul e a mãe de Samira correu para ela.
— Khala, olha, a minha bebé não se mexe, não chora e não bebe o leite. Está a dormir há muitas horas. Estou com medo que lhe tenha acontecido alguma coisa. Que hei de fazer?
— Deixa-me examiná-la, mas tenho a certeza de que está bem.
A mãe de Samira passou a bebé a Khala Shah Gul e mandou Samira retomar a tecelagem enquanto ia fazer chá para a visitante. Samira voltou para o kargah e começou a puxar pelos fios, satisfeita por ter tido uma oportunidade de sair. Entretanto, Khala Shah Gul sentou-se com a bebé ao colo. Tocou nas faces da menina, verificou-lhe o pulso e reparou que a pele dela estava fria e a pulsação lenta e regular.
A mãe de Samira entrou novamente na sala com um tabuleiro com chávenas e um bule, que pousou no chão diante de Khala Shah Gul.
— Khala Shah Gul, a minha filhinha está bem? Sabes o que ela tem? Porque é que não acorda?
— Minha filha, a tua bebé não tem nada; está só profundamente adormecida. Pelo que vejo, deste-lhe simplesmente um pouco de ópio a mais.
A mãe de Samira tocou no cabelo da bebé.
— Mas, tia, não lhe dei assim tanto como isso. Só lhe dei a dose que sugeriste. Foi apenas uma semente.
Khala Shah Gul devolveu a menina à mãe.
— Pega nela, tenta dar-lhe de mamar e obriga-a a beber umas gotas de água. Assim que o efeito passar, ela acorda; não te preocupes.
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Khala Shah Gul tirou um pedaço de ópio do bolso do vestido, por baixo dos seios, e partiu uma pequena quantidade, do tamanho de uma semente de trigo, e estendeu-a na palma da mão.
— Amanhã, deves reduzir à quantidade de ópio que dás à tua bebé porque é evidente que ela não tem grande tolerância. Mas não te aflijas; ela há de habituar-se e em breve chegará a altura em que a choradeira dela não te deixará trabalhar mesmo que lhe dês um pedaço do tamanho de uma uva.
Khala Shah Gu1 riu-se e bebeu ruidosamente o chá. A mãe de Samira mandou esta cuidar dos sapatos de Khala e Samira colocou-os imediatamente diante da porta. A mulher mais velha olhou para Samira.
— Excelente, minha filha. Deus te abençoe. Além de saberes tecer tapetes, também sabes respeitar as pessoas mais velhas.
Depois de Khala Shah Gul partir, Samira fechou a porta e foi beijar a irmãzinha,
que ainda estava a dormir ao colo da mãe. Deu-lhe um beijo na face e tentou acordá-la, mas ela não se mexeu. A mãe pediu-lhe então que esvaziasse o bacio que estava sob um buraco no gahwara, e, como habitualmente, Samira obedeceu. A mãe mudou a roupa da bebé e tentou dar-lhe de mamar e, para sua grande alegria, a menina finalmente começou a mexer os lábios e a língua. A mãe de Samira beijou fervorosamente a testa da bebé.
— Obrigada, meu Deus! A minha menina está viva. Sou uma mãe com sorte.
Enquanto a bebé mamava, lágrimas de profundo alívio começaram a rolar pelo rosto da mãe. Era como se alguém lhe tivesse dado uma segunda oportunidade de viver.
— Mãe, porque estás a chorar? Que aconteceu? Está tudo bem? — perguntou Samira limpando-lhe as lágrimas.
— Minha querida filha, são lágrimas de felicidade. Olha, a tua irmã está a mamar. Estou muito feliz por ela estar sã e salva — respondeu, depois de lhe pousar um beijo na testa.
Samira também se sentia feliz. Voltou a pôr o bacio debaixo do gahwara e a mãe deitou a bebé no berço. Ela tinha agora os olhos abertos. Depois de o gahwara ser posicionado num canto, longe do kargah, para não apanhar pó, Samira levantou-se e serviu chá para a mãe.
— Deus te abençoe, Samira. Agora vamos tecer o mais rapidamente que pudermos para compensar o tempo perdido.
Embora Samira tivesse ficado preocupada com a irmã, sentia-se mais relaxada do que o habitual porque tivera muitas pausas na tecelagem e porque sabia que a mãe lhe dera menos atenção por causa da bebé.
— Mãe, porque é que a minha irmã dormiu durante tanto tempo? Que tipo de medicamento lhe deste?
— Foi a quantidade de ópio que lhe dei; foi mais do que o normal. Agora vou mostrar-te a quantidade que lhe vou dar todas as manhãs e tu tens de me ajudar a verificar que não é maior do que uma semente de trigo.
— Mas, mãe — perguntou Samira — porque é que tens de lho dar se isso a põe doente?
— Quando eras bebé, também te dava. Faz os bebés terem um sono descansado. Caso contrário, a tua irmãzinha estava constantemente a acordar e a perturbar a pobre mãe que tem de tecer um tapete enorme com a marota da irmã mais velha.
A mãe de Samira sorriu à filha mais velha e continuou a tecer, e esta soltou um
longo suspiro e fixou o kargah, pensando se iria passar o resto da vida diante do tear. Queria libertar-se dele, mas sabia que nunca poderia escapar. O seu futuro já lhe fora traçado e era um futuro a tecer, sempre a tecer e a tecer mais. E depois, quando a mãe, finalmente, declarasse que os cinco dedos da filha eram como cinco luzes, Samira tornar-se-ia noiva de um rapaz turquemeno e teria de tecer para ele e de olhar pelos filhos de ambos.
Levantou-se e ligou o rádio e, como estava a passar música, aumentou o volume. Disse à mãe que, se iam ter de passar a vida naquela sala escura, mais valia ouvirem as suas canções favoritas. Mãe e filha sorriram e continuaram a tecer.
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A mãe de Samira não é a única que dá ópio a um filho bebé. Descobri que é uma prática secular, entre as famílias que tecem tapetes, calar os filhos com ópio até terem dois ou três anos de idade. Convidámos um médico para falar no Afghan Woman's Hour sobre os perigos do ópio para a saúde de um bebé e ele disse-nos que é nocivo para o cérebro, crescimento e desenvolvimento a longo prazo. O médico disse ainda que uma das razões por que a dependência das drogas era tão generalizada no Afeganistão residia no facto de as pessoas se habituarem a elas desde bebés, e, em seguida, explicou que os bebés que berram e choram até lhes ser dado ópio já são dependentes.
Infelizmente, a mãe de Samira não tinha acesso a esta informação, mas um inquérito conduzido pelo World Service Trust da BBC sobre o Afghan Woman's Hour revelou que muitas ouvintes femininas compreendiam a situação dela. Descobrimos também que os ouvintes se sentiam gratos ao programa por lhes prestar esta informação, e que, por consequência, muitas mães disseram que iam deixar de dar ópio aos filhos. Mas sabia que não havia nada que pudesse fazer para aliviar o sofrimento de muitas mulheres que tecem os tapetes que adornam as nossas casas.
As competências e dedicação de pessoas como Samira e a mãe conferiram ao artesanato tradicional do Afeganistão uma reputação internacional. Mas a que preço?
Ninguém reconhece as adversidades que as mulheres sofrem para transformar fios de lã em obras de arte. E ninguém pensa nos bebés que são silenciados com ópio para que as mães possam tecer suficientemente depressa e, assim, satisfazer as exigências dos tojars e dos compradores.
Zarghuna Kargar
Mulheres afegãs - Histórias por detrás da burka
Porto, Ed. Albatroz, 2012
(Adaptação)