Chuva no Litoral (1977) Paterson Ewen |
Sem estrondo
Conheciam o ritual desde muito pequenos. Os quatro
irmãos punham o sapatinho na beira da chaminé, na cozinha, depois da ceia de
Natal e iam dormir, não sem olhar algumas vezes para trás, confirmando que os
sapatinhos estavam a jeito para receber os presentes.
Logo de manhãzinha, vinham a correr ver o que o
menino Jesus lhes tinha oferecido. Às
vezes, diziam que as prendas tinham sido trazidas pelo Pai Natal, mas a mãe não
concordava porque o achava demasiado
pagão para entrar em sua casa naquela noite sagrada.
Em anos mais prósperos, os meninos encontravam um
brinquedo ou um livro; em Natais de menos fartura, umas pequenas guloseimas,
porque era preciso poupar e arrecadar como a formiguinha e nada de entusiasmos
e esbanjamentos, como era próprio da cigarra.
O tempo ia passando, os meninos crescendo e os
presentes apareciam nos sapatos conforme necessidades muito práticas. Ou era um
casaco, ou um pijama, ou um gorro para o frio... Os meninos ficavam até a
pensar como é que o Pai Natal adivinhava as carências de cada um. Nesses momentos,
a mãe intervinha dizendo que tinham a prova de que era o menino Jesus, filho de
Deus, que trazia as prendas no Natal, porque
tudo via, tudo sabia e tinha capacidades infinitas.
Os meninos continuavam a achar estranha a vinda
noturna de um ser divino ou terrestre para depor presentes nos sapatos, entrando pela chaminé,
sem ninguém os ver nem ouvir. Quanto mais os meninos cresciam, mais lhes
custava a compreender este mistério.
Chegou então o Natal em que as meninas (eram duas
raparigas e dois rapazes) tinham pedido um guarda-chuva ao menino Jesus ou ao
Pai Natal, porque as dúvidas também cresciam ou se, o que era mais certo, a
prenda vinha de muito mais perto, sem haver necessidade de descida dos Céus à
Terra ou da longa e gélida viagem de trenó. Achavam até estranho que o velhinho
de barbas brancas nunca tivesse apanhado uma pneumonia ou partido uma perna nas
subidas ou descidas.
Rosa, a mais perspicaz, dizia a Maria, mais nova e
mais crente nas delícias da imaginação, que era impossível um ou outro trazer
tantas prendas, embora soubesse que muitos meninos nada recebiam. A irmã,
porém, continuava a afirmar que tinha visto uma vez o menino Jesus na chaminé a
pôr as prendinhas nos sapatos usados de borracha e que os cabelinhos eram
encaracolados e clarinhos. Rosa respondia que só podia ter sido um sonho. O
André e o Manuel, os irmãos, ligavam mais à realidade e o importante era
receberem os brinquedos que tinham pedido, sobretudo bolas e camiões.
Chegou a noite da consoada. Os pratos de festa foram
tirados do armário, lavados e postos a escorrer com a travessa cavalinho onde
seriam servidas as batatas, o bacalhau e as hortaliças. Para as rabanadas, a
aletria e o leite-creme também tinham sido retirados os pratos grandes, com um
fiinho dourado à volta, do armário. Mesmo vazios, pareciam já cheirar a açúcar
e a canela.
Que presente receberiam naquela noite? Rosa e Maria
sabiam que cada uma precisava de um guarda-chuva. Seria essa a prenda que iam
encontrar no sapatinho?
Veio a hora da ceia. A família sentou-se à mesa. O
cão Dunas ficou enroscado e a dormitar na cozinha, perto do fogão, para receber
algum do seu calor, porque lá fora o vento gelava.
Enquanto a mãe colocava o prato das rabanadas no
centro da mesa, ouviu-se um pequeno estrondo. Talvez fosse a ventania que
tivesse atirado alguma planta ao chão. Continuaram, porém, a saborear os prazeres ainda quentinhos da
mesa. Mais tarde, quando o vento amainasse, via-se se havia estragos.
E foi quando o Dunas apareceu na sala, puxando, ora
um ora outro, dois pequenos guarda-chuvas em tons diferentes de cor-de-rosa. A
mãe ficou com um quente rubor nas faces e só dizia:
- Maldito cão que foi atrás da porta da cozinha!
E Rosa, a mais espevitada, disse abraçando o cão:
- Daqui em diante, vou chamar-te Dunas, o Pai Natal.
Nesse momento, Maria olhou a mãe, com meiguice,
querendo assegurar que nunca lhe dariam o nome de Menino Jesus.
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