domingo, 16 de agosto de 2020

"Intertexto"


Helena Almeida
Artista plástica
Lisboa - 1934/Sintra - 2018

 

"INTERTEXTO

Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo".

Bertolt Brecht 

Dramaturgo, poeta e encenador alemão -1898/1956

 

Obrigada, Isabel, pela partilha.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

"Ensinamento"

Sarah Afonso
(Lisboa, 1899/1983)  

Minha 
mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.

Não é 

A coisa mais fina do mundo é o sentimento. 
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:

"Coitado, até essa hora no serviço pesado".

Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água

quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.
 

                                   Adélia Prado (nasceu em Minas Gerais, em 1935)

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Há muito que não ouvia essa palavra

Hoje fui à feira de Gondomar com uma amiga. Já não me lembrava de ir à feira. De ir com máscara é que não me podia lembrar. 

E apreciei a capacidade de os feirantes ouvirem não sei quantas questões dos clientes quase ao mesmo tempo e também responderem quase em simultâneo. 

Uma vendedeira contou até uma peripécia da mãe que, tendo ficado viúva, não tirava um lenço preto da cabeça, nem mesmo em consulta no hospital.

Depois de olharmos todas aquelas cores e feitios aos olhos de todos expostos, entrámos numa barraca de tecidos, comandada por duas vendedeiras muito comunicativas e expeditas.

Uma delas, falando de um tecido que nos chamou à atenção, exclamou:

- É muito fidalguinho.

E recuei no tempo em que ouvia essa palavra com frequência. A mesma vendedeira, com boa tática de marketing, disse que se lembrava das clientes.

Na despedida, a amiga com quem eu estava, e que é muito bem disposta, disse:

- Se quiseres, vamos outra vez à feira comprar tecidos na próxima semana. A vendedeira até já me conhece e, para além disso, também sou fidalguinha!


quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Que esta escrita nunca se acabe!

 Belíssimo texto. Para além do bom humor, é uma lição de escrita criativa.

Obrigada, Idalina, por mais esta partilha.

“Recordo-me dos primeiros dias em que comecei a planear o primeiro livro da minha vida, esse romance que ia escrever nas águas-furtadas do sexto andar do número 5 da rue Saint-Benoît e que a partir do primeiro momento, desde que encontrei o argumento num livro de Unamuno, se intitulou La asesina ilustrada. Embora nesse tempo tivesse uma relação muito idiota com a morte, ou precisamente por isso, o romance propunha-se matar quem o lesse, matar o leitor segundos depois de ele o dar por terminado. Foi uma ideia inspirada pela leitura de Como SE Faz Um Romance, um ensaio de Unamuno que descobri numa banca de livros ao longo do Sena e que me tinha chamado a atenção devido ao título, pois pensei que falava do que eu precisamente não sabia fazer. Mas não, falava de tudo menos de como se escrevia um romance. No entanto, num parágrafo onde Unamuno especulava com livros que provocam a morte dos seus leitores, encontrei uma boa ideia para contar uma história.

Um dia, cruzei-me com Marguerite Duras na escada – eu subia para a minha chambre e ela descia para a rua – e mostrou-se subitamente interessada em saber com que coisas andava entretido. E eu, pretendendo armar-me em importante, disse-lhe que me propunha escrever um livro que provocasse a morte de todos os que o lessem. Marguerite ficou petrificada, sublimemente estupefacta. Quando conseguiu reagir, disse-me – ou julguei que me dizia, porque voltou a falar-me no seu francês superior – que matar o leitor, além de um despropósito, era praticamente impossível, a menos que, por exemplo, de dentro do livro saísse disparada uma veloz e afiada flecha envenenada que fosse direta ao coração do desprevenido leitor. Fiquei muito aborrecido e até cheguei a temer que me deixasse sem as águas-furtadas, temi que descobrir que eu era um principiante sem demasiado interesse a levara a isso. Mas não, Marguerite detetou simplesmente em mim uma descomunal confusão mental e quis ajudar-me. Acendeu pausadamente um cigarro, olhou-me meio compassivamente e acabou por me dizer que, se queria assassinar quem lesse o livro, o devia fazer com base num efeito textual. Disse isto e continuou a descer a escada deixando-me mais preocupado do que estava. Eu tinha entendido bem ou o seu francês superior tinha-me feito entender mal? Que era aquilo de efeito textual? Talvez se tivesse referido a um efeito literário que eu mesmo me deveria encarregar de construir dentro do texto para causar ao leitor a impressão de que as próprias letras do texto o iam matando. Talvez fosse isso. Mas, em todo o caso, como conseguir um efeito literário que pulverizasse o leitor de uma forma só textual?

Após uma semana de duras interrogações e sombras negras que para meu desespero se abatiam sobre o meu trabalho literário, voltei a cruzar-me com Marguerite na escada. Desta vez, ela subia – como em tantos imóveis de Paris, não havia elevador – para o terceiro andar, onde ficava a sua casa. E eu descia do sexto, da minha modesta chambre, em direção à rua. Manejando novamente o seu francês superior, Marguerite perguntou-me, ou pareceu-me entender que me perguntava, se já tinha conseguido matar os meus leitores. Ao contrário do nosso anterior encontro, desta vez decidi não me armar em importante, quer dizer, não cair no ridículo, e procurar não ser só humilde como aproveitar qualquer lição que ela me pudesse transmitir. Contei-lhe, atabalhoadamente, com o meu francês inferior, ou se se quiser confuso, as dificuldades com que me debatia para conseguir pôr o meu romance em pé. Procurei explicar-lhe que, seguindo o seu conselho, já só queria provocar a morte do leitor praticando o crime no espaço estrito da escrita. «Mas é muito difícil de conseguir, uma vez que me encontro nele», acrescentei.

Então vi que, se eu não a entendia muito, tão-pouco ela me entendia a mim. Fez-se um sério silêncio. Então, procurando acabar com a tensão, tentei resumir-lhe o que se passava comigo, balbuciei sincopadamente isto: «Um conselho, é do que preciso, ajuda para o meu romance.» Desta vez Marguerite entendeu perfeitamente. «Ah, um conselho», disse, e convidou-me a sentar-me ali no hall (como se estivesse muito cansado), apagou lentamente o cigarro e pô-lo no cinzeiro da entrada e dirigiu-se, um tanto misteriosamente, para o seu escritório, donde voltou passado um minuto com uma folha de papel que parecia uma receita médica e continha umas instruções que podiam – disse-me, ou julguei entender que me dizia – ser-me úteis para escrever romances. Peguei na folha e dirigi-me para a rua. Li as instruções que continha pouco depois, já na rue Saint-Benoît, e senti que de repente desabava sobre mim todo o peso do mundo, ainda hoje recordo o pânico enorme – calafrio, para ser mais exato – que senti ao lê-las:

1. Problemas de estrutura. 2. Unidade e harmonia. 3. Enredo e história. 4. O fatot tempo. 5. Efeitos textuais. 6. Verosimilhança. 7. Técnica narrativa. 8. Personagens. 9. Diálogo. 10. Cenários. 11. Estilo. 12. Experiência. 13. Registo linguístico.”

 

Vila-Matas, Enrique, Paris Nunca Se Acaba, 2003, Editorial Teorema, Lisboa

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Cinco flores


A pandemia limita muito as viagens.
Este ano, não estarei com a Clarinha no seu 5º aniversário.
Já lhe fiz um postal com cinco flores. No interior, dei-lhe os parabéns em letra redondinha.
E desenhei mais flores.
Ah, e também pintei corações.


Não foi só ontem

 

Ontem, fui a uma caixa multibanco para pagar várias contas. Quando me preparava para introduzir o cartão, verifiquei que atrás de mim estava uma jovem. Como sabia que ia demorar algum tempo, voltei-me e perguntei-lhe:

- É só para levantar dinheiro?

- É, respondeu.

Eu disse-lhe então:

- Pode passar, porque vou demorar algum tempo.

A jovem passou, fez a operação que pretendia e foi à sua vida. Mas nem sequer um obrigada.

Na estrada, passam-se coisas semelhantes: dá-se passagem, mesmo tendo prioridade, e alguns condutores avançam e nem um olhar. E nem um levantar de mão de agradecimento.

Para não falar de quando se segura na porta para a pessoa que vem atrás passar e não se ouve sequer uma palavra. 

Diz-se que o silêncio é de oiro, mas, nestes casos, uma simples palavra é bem mais valiosa. E não custa nada.

 

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

domingo, 9 de agosto de 2020

Pequeno diário à beira-mar


Partida e chegada. Junto roupa para levar para a semana de férias. Não, não é preciso casaco. Tem estado muito calor.  Preciso é de frescura.
Chego depois de passar junto ao mar, onde vejo muitas ondinhas a que chamamos carneirinhos.
No parque de estacionamento estão poucos carros.
Há vento norte. Vejo também pelos arbustos.
Quando saio do carro, sinto a falta de um casaco.
E em tempo de covid há menos abraços.
Sempre aqueceriam um bocadinho mais.

No dia seguinte. Vou ver a praia da parte da tarde. O parque de estacionamento, ao lado do passadiço, está ainda mais deserto. Chega uma caravana com matrícula espanhola.
É a única, embora no verão costume haver muitas mais.
Na praia, não há ninguém. Apenas mar enfurecido.
Apenas vento.
Apenas sargaço negro que as ondas arrastaram e que deixam desenhos  ondeados na areia molhada.
Volto para casa.
Amanhã levo o telemóvel.


Num momento de decisão. Tinha decidido passar a semana sem ligar a televisão nem abrir o computador.
Mesmo assim, pus o computador na bagagem. Junto de um livro.
Não abri, como tinha decidido, o computador.
Usei o telemóvel!!!!!


Num outro dia. Enquanto caminhava, ia olhando as algas negras da praia e ia-me lembrando da mulher muito velha e corcovada que, antigamente, apanhava feixes de algas e os transportava praia fora.
Andava sempre vestida de preto, era franzina e não falava com ninguém.
Vivia perto da praia, mas só as algas lhe traziam a maresia.

Quase sempre ao final do dia. Já não sabia se era hábito se era paixão. Quando fechava o quiosque, pegava no tripé e na máquina fotográfica. Era o momento mais desejado do dia. Fotografava o mar, o pôr-do-sol e as gaivotas. Amava aquela praia e conhecia-a ao pormenor. Um dia, perguntei-lhe se tinha fotografado muito. Respondeu que sim, mas sem dar qualquer ênfase à resposta. Compreendi. Também as gaivotas não precisam de dizer que gostam de voar.

Mindelo - manhã de ontem

 

sexta-feira, 31 de julho de 2020

Pintores e poetas mostram bem que ninguém é uma ilha


Beatriz Brum
- nasceu em 1993, em Ponta Delgada


Coisa Amar

Contar-te longamente as perigosas
coisas do mar. Contar-te o amor ardente
e as ilhas que só há no verbo amar.
Contar-te longamente longamente.

Amor ardente. Amor ardente. E mar.
Contar-te longamente as misteriosas
maravilhas do verbo navegar.
E mar. Amar: as coisas perigosas.

Contar-te longamente que já foi
num tempo doce coisa amar. E mar.
Contar-te longamente como doi

desembarcar nas ilhas misteriosas.
Contar-te o mar ardente e o verbo amar.
E longamente as coisas perigosas.

Manuel Alegre



Urbano Resendes
- nasceu em 1959, na ilha de S. Miguel


Mar, metade da minha alma é feita de maresia
Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,
Que há no vasto clamor da maré cheia,
Que nunca nenhum bem me satisfez.
E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia
Mais fortes se levantam outra vez,
Que após cada queda caminho para a vida,
Por uma nova ilusão entontecida.

E se vou dizendo aos astros o meu mal
É porque também tu revoltado e teatral
Fazes soar a tua dor pelas alturas.
E se antes de tudo odeio e fujo
O que é impuro, profano e sujo,
É só porque as tuas ondas são puras.

Sophia de Mello Breyner


quarta-feira, 29 de julho de 2020

Nove ilhas, outras tantas pronúncias


Hoje, uma amiga enviou-me este vídeo sobre os falares das ilhas dos Açores.
Gostei muito e quis também partilhá-lo.
Vale a pena ouvir as diferentes pronúncias das nove ilhas, comunicadas de forma tão expressiva e bem humorada.
Com este vídeo, fiquei ainda com mais vontade de voltar aos Açores.
Só que, no momento atual, não se sabe é quando. 
Felizmente, os livros, a música, os meios de comunicação ajudam a viajar.

Obrigada, Isabel.

P.S. No vídeo, apenas reconheço Luís Filipe Borges, açoriano.
Se foi ele que impulsionou este vídeo,  merece um aplauso.
E o Professor também.


terça-feira, 28 de julho de 2020

Irrita-me profundamente


Domingo à noite, quis ver o programa da SIC - julgo que repetido - de Ricardo Araújo Pereira, de reconhecido talento para a escrita e para a representação.
No momento em que liguei a televisão, o humorista segurava um martelo, prestes a destruir uma pequena estátua que tinha a seu lado.
Aludia, é claro, ao derrube de estátuas em diferentes países.
Independentemente dos motivos ideológicos, não gosto mesmo nada de cenas de humor em que se estragam coisas, fazendo disso espetáculo.
A meu ver, existem outros modos de exercer o legítimo direito à crítica.
Também Herman José - um génio do humor - já recorreu à mesma estratégia, demolindo, por exemplo, partes de cenários.
Também  não gosto de ver estragar alimentos, como às vezes acontece, com o intuito de provocar o riso.
No excerto do programa que vi este domingo, um pequeno fragmento da estátua pareceu atingir o humorista.
Mesmo assim, ele não perdeu a graça, mas também não fez perder a irritação.



segunda-feira, 27 de julho de 2020

Há palavras e palavras!



Sempre que posso, desde a fase mais aguda da Covid 19, gosto de arrumar coisas em casa: reorganizo livros, separo papéis e reúno outros, reciclo ou dou coisas que, com o tempo, se foram tornando inúteis e ocupam demasiado espaço, etc.

Ora, como acontece muitas vezes nestes casos, vêm-me ter à mão papéis que não me trazem boas recordações, outros que me causam nostalgia, outros que me comovem e que não quero perder...

Numa caixa, uma espécie de pequena arca onde vou guardando bons tesourinhos, encontrei uma folha de um jornal Expresso, dobrada em quatro, com um texto de José Tolentino Mendonça. Não devia ter tempo de o ler na altura e ficou à espera.

O título é "Farmácia da alma".
Reli o texto e deixem-me partilhar algumas frases de que gostei muito:

"Na contemporaneidade, descobrimo-nos sempre mais imersos numa cultura onde a palavra é sobreabundante, onde a todo o minuto se produzem milhões de palavras, com o risco de que o seu vamor empalideça";

"A palavra distingue-nos entre todas as outras criaturas, porque somos seres de palavra, nascemos com essa capacidade, vivemos através da palavra, conhecemos e damo-nos a conhecer através dela";

"Conta-se que os antigos faraós do Egito criavam bibliotecas nas cidades mais remotas do reino e sobre a entrada faziam escrever: 'Farmácia da alma'";

"A palavra é uma parte significativa da complexa arte de curar";

" A palavra oportuna pode ser, de facto, curativa."

Toda a crónica é muito interessante, mas... mais palavras para quê?


sábado, 25 de julho de 2020

O algodão também engana

Chien-min Chung/Getty Images

"Uma coligação de grupos de direitos humanos apela às grandes marcas de vestuário para deixarem de ser cúmplices na exploração da população Uighur

Uma em cada cinco peças de roupa com algodão no mercado internacional foi produzida com o envolvimento de trabalho forçado. A estimativa é feita pela Coligação para Acabar com o Trabalho Forçado na Região Uighur, um grupo de sindicatos e grupos da sociedade civil que lutam contra abusos nessa zona da China.
Os relatos sobre campos de concentração para a população Uighur em Xinjiang, acompanhados de notícias sobre maus-tratos diversos, incluindo a esterilização forçada de mulheres com o objetivo de reduzir a população Uighur, têm recentemente indignado o mundo.
(...) " 


In Expresso Curto de 24 julho 2020


sexta-feira, 24 de julho de 2020

Leituras partilhadas - Gostei logo do título da obra


Obrigada, Idalina, pela partilha de mais algumas leituras.
Estes excertos, para além do prazer do texto, são uma boa lição de escrita
e também de apreciação crítica.

Oxalá gostem. Eu gostei muito e vou tentar ler o livro.


Kirmen Uribe, O Dois Amigos, 2011, Planeta


Este primeiro excerto é o início do romance. No terceiro excerto, explica os passos que deu até chegar a ele.


"Os peixes e as árvores assemelham-se.
Assemelham-se nos anéis. Se fizéssemos um corte horizontal numa árvore, veríamos os seus anéis no tronco. Um anel por cada ano transcorrido: é assim que se sabe a idade da árvore. Os peixes também têm anéis, mas nas escamas. E, da mesma forma que acontece com as árvores, graças a eles sabemos quantos anos tem o animal.
Os peixes nunca deixam de crescer. Nós não, nós minguamos a partir da idade madura. O nosso crescimento detém-se e os ossos começam a juntar-se. O corpo encolhe. Os peixes, porém, crescem até morrer. Mais depressa quando são jovens e, a partir de certa idade, mais lentamente, mas sem nunca deixarem de crescer. E por isso têm anéis nas escamas.
O anel dos peixes é criado pelo Inverno. O Inverno é a altura em que o peixe come menos e a fome deixa uma marca escura nas suas escamas, porque o seu crescimento é menor durante esta época. Ao contrário do que acontece no Verão. Quando os peixes não passam fome, não permanece qualquer rasto nas suas escamas.
O anel dos peixes é microscópico, não se vê à primeira vista, mas está lá. Como se fosse uma ferida. Uma ferida que não sarou bem. E, como os anéis dos peixes, os momentos mais difíceis vão marcando as nossas vidas, até se converterem na medida do nosso tempo. Os dias felizes, pelo contrário, passam depressa, demasiado depressa e, em seguida, desvanecem-se.
Aquilo que para os peixes é o Inverno é a perda para as pessoas. As perdas delimitam o nosso tempo; o final de uma relação, a morte de um ser querido.
Cada perda é um anel escuro no nosso interior".
                                                                                                                 (pp. 15/16)




"O escritor precisa de protecção. Sobretudo no princípio. Deseja que lhe dêem confiança, ouvir dos outros que vai pelo bom caminho e que não se enganou no último cruzamento. O escritor precisa de protecção quando começa. Por isso, perguntei a opinião ao meu pai, quando publiquei a primeira coluna na imprensa, esperando receber a sua aprovação. Essas colunas eram as minhas primeiras publicações, naquele distante ano de 1998. Eram os meus inícios. Aquela primeira coluna, elaborei-a bastante e dediquei longas horas à sua redacção. Tentei que o estilo fosse o mais literário possível e saiu-me algo parecido com um breve conto. Com o tempo, aprendi que as colunas têm de ser colunas e os contos, contos. As colunas exigem uma condição que os contos não requerem: o imediato.
A resposta do meu pai foi deliberada. Não recebi o seu aplauso, mas, em compensação, respondeu-me através de uma história. Quando ele era pequeno, havia dois padres na aldeia. Cada um deles tinha a sua maneira própria de predicar a homilia. Um, Don Manuel, era próximo e as pessoas percebiam sem dificuldade o sermão que pronunciava. No entanto, o estilo do segundo cura, Don Jesús, era retórico. Não se percebia nada. Dirigia a sua homilia aos ricaços que se acomodavam nos bancos da frente da igreja. Pois bem, eu escrevia como esse cura, explicou-me o meu pai, como Don Jesús.
Sempre agradeci ao meu pai a sua franqueza. Por um lado, mostrou-me que a minha coluna era demasiado literária para um jornal. E, por outro, não deu sentenças, não proclamou «a coluna é boa», ou «é má». Socorreu-se de uma história para desenvolver o seu argumento, sem qualificações. E foi isso precisamente do que mais gostei, que um breve relato lhe bastasse para que eu compreendesse com clareza a sua lição. De facto, as histórias recolhem os matizes da realidade. E os matizes são o mais importante na vida".
                                                                                                      (pp. 43/44)



"Em Dezembro de 2002, escrevi a primeira frase do romance.
Queria uma frase com força para o princípio, como a do romance de Carson McCullers O Coração É Um Caçador Solitário. «Na cidade havia dois mudos e estavam sempre juntos.» Essa frase diz muito. Primeiro, que o romance trata de dois mudos, mas também indica a exclusão que sofrem e transparece a amizade que os une.
Ou a do romance A Campânula de Vidro, de Sylvia Plath".