quarta-feira, 2 de março de 2016

O livro, o guarda-chuva e e o chocolate



Durante duas semanas, quase não vi a luz do dia, apenas a espreitava quando  Helena abria a carteira.
Ela anda sempre com um livro e, desta vez, coube-me a mim acompanhá-la. Só que entrei na vida dela em má altura. Quero dizer: quando entrei na sua carteira. Como passo a vida às escuras, fechado, sem quase nada para dar nem receber, oiço conversas de Helena.
- Ando a ler um livro de José Rodrigues Miguéis. Tem um conto fabuloso.
E, precisamente no momento em que ia mostrar o livro, a campainha tocou e Helena foi para a aula, porque é professora e não gosta de se atrasar. Nem que seja por uma boa causa, como é falar de um livro. E, neste caso, um bom livro. Pareço vaidoso, mas estou só a elogiar quem me pensou, quem me escreveu, quem me deu vida, podendo, assim, embelezar a vida dos outros.
O tempo em que tenho mais luz é quando Helena está a dar as aulas. Ela chega à sala, pousa a carteira e deixa-a ficar aberta. Como a mesa é junto à janela, eu olho para cima e vejo as nuvens, a palmeira do jardim, as árvores com as folhas pintadas do vermelho de outono… Uma vez até vi um arco-íris, numa aula em que os alunos estavam a fazer teste e mal se ouviam.
Uns dias depois, ouvi Helena dizer:
- Com tantos testes para corrigir nem há tempo para ler.
E eu logo pensei: pronto, já sei, mais uns dias nesta escuridão. É como se viajasse no porão de um avião, no meio de malas e outras mercadorias, sem ver os passageiros. O que vejo à minha volta é uma agenda, uma fatura da água, um chocolate que já vai a meio, um porta-moedas…




 

Um dia, Helena entrou na Escola à pressa, porque já tinha tocado para dentro, e pôs o guarda-chuva molhado dentro da carteira, indo encostar-se mesmo ao meu rosto, isto é, à minha capa. Enregelei, senti alguma raiva e apetecia-me gritar:
- Helena, atiras o guarda-chuva para dentro da carteira e esqueces-te de quem está aqui! Eu podia dizer “do que” está aqui, mas acho que posso dizer “quem”, porque sinto-me humano, falo da vida mais profunda das pessoas, ajudo-as a pensar, a sentirem-se valorizadas… Mas a minha voz não se ouve do mesmo modo.. Eu falo em silêncio e só para quem me lê ou escuta através da voz de alguém.
Nesse dia de inverno, mas de muito calor na sala de aula, Helena pousou a carteira, sem a abrir. O guarda-chuva humedecia o meu corpo, isto é, as minhas páginas e o chocolate, que já estava a meio, começou a derreter e sujou-me todo.
A aula parecia interminável. Eu queria que Helena me tirasse daquele mundo de cheiros húmidos e viscosos. Ouvia perguntas, respostas, Helena a recordar que se diz “folhear” e não “desfolhar” um livro. E eu a pensar: estou feito, vou ser desfolhado sem haver tempo para ser folheado!
Nisto, tocou para fora. Que alívio, pensei, Helena iria libertar-me? Porém, permaneci fechado até à noite. Quando me viu naquele estado, parecia, docemente, pedir-me desculpa. Se eu pudesse falar, diria:
- Não te preocupes, Helena, eu sei que, apesar de tudo, como livro que sou, para ti sou melhor do que chocolate.
          
         

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Impossível não falar de Saudade

José Malhoa

Do filme "Fados" de Carlos Saura
Autor: Souza do Casacão sobre um tema popular
Intérprete: Catarina Moura

Sem saudosismos!


Those were the days
Once upon a time there was a tavern
Where we used to raise a glass or two
Remember how we laughed away the hours
And think of all the great things we would do
Those were the days my friend
We thought they'd never end
We'd sing and dance forever and a day
We'd live the life we choose
We'd fight and never lose
For we were young and sure to have our way.
La la la la...
Then the busy years went rushing by us
We lost our starry notions on the way
If by chance I'd see you in the tavern
We'd smile at one another and we'd say
Those were the days my friend
We thought they'd never end
We'd sing and dance forever and a day
We'd live the life we choose
We'd fight and never lose
Those were the days, oh yes those were the days
La la la la...
Just tonight I stood before the tavern
Nothing seemed the way it used to be
In the glass I saw a strange reflection
Was that lonely woman really me
Those were the days my friend
We thought they'd never end
We'd sing and dance forever and a day
We'd live the life we choose
We'd fight and never lose
Those were the days, oh yes those were the days
La la la la...
Through the door there came familiar laughter
I saw your face and heard you call my name
Oh my friend we're older but no wiser
For in our hearts the dreams are still the same
Those were the days my friend
We thought they'd never end
We'd sing and dance forever and a day
We'd live the life we choose
We'd fight and never lose
Those were the days, oh yes those were the days.
La la la la...
Songwriters
GENE RASKIN
 

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Falaram-me do Uruguai e fiquei com curiosidade


Joaquín Torres Garcia - pintor uruguaio (1874-1949)
Tiempo sin Tiempo
Preciso tiempo necesito ese tiempo
que otros dejan abandonado
porque les sobra o ya no saben
que hacer con él
tiempo
en blanco
en rojo
en verde
hasta en castaño oscuro
no me importa el color
cándido tiempo
que yo no puedo abrir
y cerrar
como una puerta

tiempo para mirar un árbol un farol
para andar por el filo del descanso
para pensar qué bien hoy es invierno
para morir un poco
y nacer enseguida
y para darme cuenta
y para darme cuerda
preciso tiempo el necesario para
chapotear unas horas en la vida
y para investigar por qué estoy triste
y acostumbrarme a mi esqueleto antiguo

tiempo para esconderme
en el canto de un gallo
y para reaparecer
en un relincho
y para estar al día
para estar a la noche
tiempo sin recato y sin reloj

vale decir preciso
o sea necesito
digamos me hace falta
tiempo sin tiempo.


                Mario Benedetti

Poeta, escritor e ensaísta uruguaio (1920-2009)

domingo, 21 de fevereiro de 2016

HUMANOS - QUERO É VIVER


As meninas que morreram em Oeiras.
A menina que ficou sozinha num prédio de luxo, caiu sozinha, morreu sozinha.
A violência entre casais.
As agressões a velhos. 
Os roubos.
As mentiras.
As corrupções.
A poluição.
As mortes indevidas. 
Os sonhos cortados pela base. 
 (...)
 "Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme, e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?"
Os Lusíadas, Canto I

36 Hours in Porto, Portugal

sábado, 20 de fevereiro de 2016

A cadeira



Kandinsky

Ontem num Museu
Visitante (voltada para as três amigas também visitantes): 
- Esta cadeira é uma réplica de uma cadeira de Kandinsky.
As três amigas não conheciam e falaram do assunto e também de Kandinsky como pintor.
Foi quando uma das visitantes se aproximou de uma vigilante:
- Boa tarde! O nome Kandinsky diz-lhe alguma coisa? Sabe se foi ele o criador do modelo daquela cadeira?
A vigilante fez sinal negativo com a cabeça. Não, esse nome não lhe dizia nada.
Logo de seguida, por iniciativa própria, pegou no intercomunicador e perguntou para a receção:
- Colegas, sabem-me dizer o nome do autor da cadeira do corredor das esculturas?
Resposta, bem audível,  do outro lado:
- Não sei, mas há dessas cadeiras na Área do Norte Shopping,
As visitantes continuaram a visita depois de agradecerem e de darem uma boa gargalhada.


Kandinsky

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Até às lágrimas



GOTA DE ÁGUA

Eu, quando choro,
não choro eu.
Chora aquilo que nos homens
em todo o tempo sofreu.
As lágrimas são as minhas
mas o choro não é meu.


António Gedeão

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Um bom momento


PENTAX Image
Fernando Pessoa, numa rua da Bulgária

A turma fazia a correção do último teste de Português. Num dos textos para análise, era referido o poema "Tabacaria" de Fernando Pessoa.
A professora, com ar de enlevo e motivação, disse que gostava muito do início deste poema. E citou de cor:

"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo". 


A turma, habitualmente sossegada, aproveitava, no entanto, qualquer paragem ou abrandamento para conversas paralelas.
E assim aconteceu, mais uma vez.
A professora, então, disse: Acho que me vou sentar. Parece que não existo porque ninguém me ouve.
Foi quando uma voz do fundo da sala se elevou:
- Mas, professora, ... para além disso, tem em si todos os sonhos do mundo!
A professora sorriu, continuou a aula, enquanto pensava para si que fora, de facto, um bom momento.


terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Dobradinha em quatro

Catalina Alwin
Na escola, continuava uma campanha de solidariedade para ajudar uma aluna que ficara com graves sequelas após uma operação que, aparentemente, não traria quaisquer complicações. Sem ajudas exteriores, dificilmente os pais  poderiam fazer frente a todas as despesas.
A comunidade escolar mobilizou-se, graças a um grupo de professores.
Houve recolha de donativos, lanches, saraus, etc. e o objetivo era comum: angariar fundos para ajudar Maria, que deixara de ser autónoma.
E os olhos de muitos sorriam perante alguns jovens que tomavam iniciativas para ajudarem a colega de escola, de muitos até desconhecida. 
O tempo foi passando, muitos professores e alunos chegavam à escola pela primeira vez, outros tantos iam saindo. Algumas atividades, porém, persistiam porque muitos continuavam a acreditar no valor da solidariedade.

Assim, uma vez por mês, um rapaz, pré-universitário, excelente aluno, no final da aula, aproximava-se discretamente da diretora de turma e dizia: É para a Maria, abrindo a mão, sem alarde. A professora agradecia, reconhecendo a generosidade e acrescentando que, no intervalo seguinte, entregaria o donativo ao grupo dinamizador. O grupo iria também apreciar muito este gesto. E ele dizia: eu apenas gosto de ajudar, entregando a pequena nota. Dobradinha em quatro.
Felizmente (ainda) há jovens assim.