sexta-feira, 8 de agosto de 2014

DOMINGOS MIRA FLOR



10 – O convite
Domingos, apesar de não reconhecer o número, atendeu a chamada. Era Lurdes.
“Sim, Domingos, está tudo bem consigo? Não tinha a certeza se era este o seu número atual”.
“Nunca o alterei. Então, o que se passa?”
“Queria fazer-lhe um convite”.
“Pode dizer. Desculpe falar sem entusiasmo, mas não ando muito animado”.
“Por isso mesmo, acho que a minha proposta até lhe fará bem. O meu grupo vai realizar uma viagem a Montalegre, desta vez, na rota dos chás e das plantas aromáticas. Gostava que nos acompanhasse. É no próximo fim de semana”.
“Obrigada, Lurdes, mas não posso aceitar esse convite.
Lurdes insistiu, como era seu hábito, e Domingos acabou por dizer que a namorada era de uma aldeia de Montalegre, havia ido lá por uns dias, tinha muitos assuntos familiares a tratar, e não queria, por isso, incomodá-la e, muito menos, surpreendê-la.
E logo a insistência de Lurdes se fez notar.
“Domingos, será uma maneira de a rever. Ela ficará contente, de certeza.”
“Não, Lurdes, vou ter de recusar o convite”. Ela não gosta de surpresas”.
“Por que não a avisa, então? Ela não se interessa pelo tema?”
Que sim, até se interessava muito. Um canteiro de aromáticas tinha sido mesmo motivo de aproximação, mas, não, não podia aceitar.
Lurdes não desistia. Que seria uma maneira de celebrar o início do namoro. E também de conviver, porque Domingos lhe parecia murcho. Ora, não se ia refugiar em casa. Por amor de Deus. A vida era para ser vivida e não apenas pressentida. Vá lá, Domingos. E o grupo era ótimo e animado. Pelo ar, ele andava a precisar de animação. Queria que, quando a amiga chegasse, o visse acabrunhado? Veja lá.
Domingos sentia vontade de desligar, perante a insistência e teimosia do convite, encontrando uma solução.
“Desculpe, Lurdes, tenho de desligar. Estou à espera de uma chamada urgente”.
“Domingos, ficou com o meu número gravado. Ligue-me, se mudar de ideias e espero que mude. Se for a Montalegre, vai gostar, vai ver.”

Não iria sequer responder. Há uns dias que não falava com Flor. Sabia que ela andava muito ocupada. Não queria perturbar o seu ritmo, mas já tinha saudades.

(Continua, com Domingos a repensar a sua decisão).

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Sol de proximidade



DOMINGOS MIRA FLOR


          9 – Uma visita inesperada



Uns dias depois, bateram à porta de Domingos, que regressara minutos antes de um pequeno passeio a pé, enquanto a cidade renascia e ainda mostrava matinal humidade azul. Quem seria? Não costumava receber visitas. Com os vizinhos, falava quando se cruzava com eles, na rua. Seriam queixas por causa do gato, que voltava a fazer das dele? Abriu a porta da varanda e espreitou.
Deparou com um grupo grande. Uns de mochila, outros de carteira a tiracolo. Todos com ar de turistas que vão revistando e revisitando lugares históricos das cidades. Andavam na rota do Barroco. Caminhavam rumo à Igreja da Misericórdia.
Isto foi explicado por Lurdes que, ficando um pouco para trás, batera à porta de Domingos. Lembrava-se de, uma vez, ele lhe ter dito onde morava. De nada se tinha esquecido.
Domingos manteve-se na varanda.
“Como passei por aqui, lembrei-me de tocar”. Quer ir ter connosco aos Clérigos? A seguir à Misericórdia, visitaremos a Igreja. O padre Arménio será o nosso guia. Promete. Venha daí”.
Que não, obrigado pelo convite, tinha chegado há pouco. Ficaria para outra oportunidade. Gosto em vê-la. Boa visita. Então, adeus.
Antes de Domingos fechar a porta, olhou para a varanda de Flor. Sentiu quase pudor. Como encararia ela o reatar da amizade com Lurdes, sendo esta tão avassaladora? À tarde, mergulhou na leitura, no alfarrabista habitual, mas teve de voltar a ler, várias vezes, a mesma página. Estava desconcentrado.

(Continua, com Domingos, uns dias depois, a receber uma chamada, igualmente inesperada).



Venha o verão!



quarta-feira, 6 de agosto de 2014

DOMINGOS MIRA FLOR



8 – Quando Domingos entrou em casa, foi logo procurar o telemóvel. Abriu-o. Duas chamadas e uma mensagem de Flor. Que tinha chegado bem. Que o pai, ao vê-la, tinha ficado feliz. Que lhe dissesse o que se passava com ele porque não respondia.
Domingos logo marcou o número.
“Sim? Flor, desculpa por não ter atendido nem respondido à mensagem.”
“ Porquê? Não ouviste?”
“Fui fazer uma caminhada e demorei mais tempo do que contava”.
“Foste até à eternidade?!”
“Não estejas zangada, Flor. Fui às Antas”.
“Havia algum motivo especial para lá ires? Nunca lá fomos nem mostraste vontade de ir.
“Precisava de caminhar, Flor. Quando regressas?”
“Ainda não sei, porque encontrei muita coisa à minha espera”.
“Fazes-me tanta falta, Flor”.
“O meu pai diz o mesmo e quero vê-lo um pouco mais feliz. Amanhã, falamos de novo. Pode ser? Estão a bater à porta”.
“Até amanhã, Flor. Deixa-me só dizer-te uma coisa que poucas vezes disse ao longo da minha vida: amo-te, Flor”.
“Até amanhã, Domingos. Tenho mesmo de ir abrir a porta”.

(Continua, com Domingos olhando os quintais vizinhos e ouvindo o eco das suas últimas palavras).


FÉ, nas árvores




DOMINGOS MIRA FLOR



7 – Um reencontro

Chegou cansado à Praça Velasquez. A caminhada havia sido muito longa. Com Flor, não se teria atrevido a ir tão longe. Ela gostava de andar, mas, dizia, não lhe serviam botas de sete léguas. Nesses instantes, ele sorria e dizia carinhosamente: “Podemos ficar por mais perto, Flor. Logo que ande contigo, ando com Deus”.
A praça fez-lhe lembrar tempos idos em que ia ao estádio das Antas com o pai. Punha o cachecol do FCP e a tarde de domingo era de festa, sobretudo em jogos de cantada e partilhada vitória. No regresso, passavam todo o tempo a falar do jogo, das cegueiras do árbitro, dos insultos dos rivais, das hipóteses de ganharem o campeonato… Eram tardes exaltantes que moldavam dias felizes.
Como os que vivera nos últimos tempos com Flor. Os da infância tinham passado; os recentes, não sabia se iriam ser retomados.
Deu uma volta ao jardim, olhando em redor, detendo-se nas diferenças que encontrava na praça. Entrou no café Bom Dia e pediu uma água. Como outras pessoas que estavam sós, sentou-se voltado para a porta, olhando as velhas árvores.
Na esplanada do exterior do café, um grupo de mulheres trocava impressões ruidosamente. Olhou-as. Parecia estar a ver um filme a que tinham cortado o som, antepondo um vidro entre o espectador e a ação. Eram professoras, de certeza. De repente, uma evidenciou-se perante o seu olhar. Não era possível. Tinha envelhecido, mas não perdera o sorriso simpático. Era Lurdes, a amiga que conhecera na livraria Latina, na rua Santa Catarina, há muito anos. Ficaram amigos por algum tempo, mas, enveredando por caminhos mais solitários, Domingos deixara de a ver.
Olhando-a, lembrou-se de Flor. Mesmo que Lurdes o visse, não ficaria a conversar, embora soubesse que ela era faladora e curiosa. O dia era-lhe pesado para palavras leves que não queria proferir.
Mas como o olhar é livre, o de Lurdes voou sobre as mesas e cruzou-se com o seu. Logo se levantou para o vir cumprimentar.
“Então, o que é feito de si? Há tanto tempo! Que boa coincidência! Também costuma vir aqui? Nunca o vi por cá!”
Que não, há muito que cá não vinha. Tinha lá chegado quase por acaso, porque precisava de caminhar e espairecer. Sabia que caminhar lhe fazia bem. Agora, tinha de ir. Ainda era longo o percurso até casa, embora fosse sempre a descer.
“Gostei muito de a ver”.
“E eu também de o voltar a encontrar. Venho sempre aqui à quarta-feira de manhã. Apareça. Temos muitos assuntos para pôr em dia”.

(Continua, com Domingos a lembrar-se que se tinha esquecido do telemóvel, na mesinha junto à varanda).