O carro em movimento marca 30 graus. Muito calor. Sei, porém, que 30 graus noutros locais seria temperatura quase amena.
Estrada fora, oiço, interessada, o podcast 'Fala com ela', com o padre Anselmo Borges. Agrada-me o discurso do entrevistado: que inclui questionamentos e dúvidas. Diz crer em Deus, mas sabe que há razões para crer e razões para não crer. Gostei da sua inteligente abertura ao mundo e ao pensamento do outro. E do seu espírito crítico: põe em causa, por exemplo, o interesse das Jornadas Mundiais da Juventude que, diz, para muitos terão mais interesse turístico do que religioso.
Chego a casa pelas 4 h. Como hoje é sábado, ligo o rádio na antena 2; sou fã do programa 'A força das coisas'.
Entre músicas que sossegam e refrescam a tarde, como de Schubert, ouvem-se poemas da Prémio Nobel da Literatura de 1996, a polaca Wislawa Szymborska, ditos por ela própria e também traduzidos em português.
Não conhecia. Vou à net e encontro o poema que aqui partilho. E que me incentivou a procurar outros textos desta poeta cujo centenário de nascimento é este ano celebrado.
Releio o poema 'A vida na hora', onde não faltam dúvidas nesta 'cena sem ensaio', como é a maior parte dos nossos dias. Como este sábado quente com momentos refrescantes, também pelas dúvidas. Felizmente.
Bom Fim de Semana!
A vida na hora
A vida na hora.
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.
Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.
De que trata a peça
devo adivinhar já em cena.
Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humilhante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.
Não dá para retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como o casaco às pressas abotoado
eis os efeitos deploráveis desta urgência.
Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes
ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não
conheço.
Isso é justo — pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).
É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.
E o que quer que eu faça
vai-se transformar para sempre naquilo que fiz.
Wisława Szymborska, Poemas