Quando passo junto à casa da minha mãe, revejo-lhe as mãos que, em vida, não paravam de zelar, verbo muito frequente no seu vocabulário quotidiano. Vinha muitas vezes acompanhado de ‘minha casinha, meu lar’ porque a sua casa era o seu amado e desejado universo. Sempre lhe vi o grande apego à casa - o seu refúgio, o seu descanso, o seu alimento, o seu trabalho de que não se queixava, porque entendia-o como mandamento de Deus.
Agora, que já não está entre nós, sinto a falta da sua voz, da sua presença,
de ver os seus gatos no pátio, aquecendo-se em manta quente ou ronronando ao sol;
de olhar a mesa da cozinha sempre posta, onde nunca faltava pão, chá e biscoitos;
de ver chegar os pequenos jornais católicos, donde ela retirava lições e exemplos de vida que contava e louvava. E agora tenho pena de não ter tido mais paciência para ouvir os casos relatados que eu considerava húmidos de tanta água benta;
de ver a sua preocupação quando pressentia fruta caída no chão e era preciso aproveitar. Estava boa e fazia fartura, dizia ela. Mãe, se a deixarmos muito tempo na árvore, acaba também por cair e estragar-se, dizia eu;
de apreciar os trabalhos de mãos que fazia;
de a ver a cuidar das plantas logo de manhã muito cedo;
de ler os seus versos devotos e de passar alguns no computador, etc.
Porem, paulatinamente, a visão foi-lhe diminuindo, as pernas deixaram de lhe obedecer e a mente foi confundindo presente e passado.
- Filha, o teu pai está a demorar tanto.
- Mãe, o pai está no céu.
- Hoje passei toda a noite em casa das minhas irmãs, mas não sei como fui para lá nem como vim.
- Mãe, foi um sonho, agora descanse.
- Mas, filha, não abras a janela.
- Mãe, é dia e assim parece sempre noite.
- Os meus olhos e a minha cabeça não aguentam tanta luz.
- Mãe, se foi Deus que nos deu a Luz, então por que quer fechá-la assim?
E passou a dormir horas sem fim, com as janelas fechadas, como se preparasse o repouso final que chegou quatro anos antes de fazer 100 anos.
Tanta coisa me vem à cabeça quando passo à casa da minha mãe. Pensamentos e questionamentos para fora e para dentro de mim, onde culpa se mistura com legítimo cumprimento da vida.
Mãe, enquanto puder passar pela sua casa, indo mais depressa ou mais devagar, abrirei sempre as janelas da memória porque nela encontro flores de que preciso.
Não é por acaso que me dizem que estou a ficar parecida consigo.