A história que tenho partilhado por estes dias não é propriamente de postal risonho e feliz de Dia dos Namorados. Mas, como também este Dia de S. Valentim pode ser vivido quando se quiser e puder, publico hoje a quarta e última parte do conto. Deixo - como gosto e espero - uma janela aberta, donde também se pode(rá) ver alguma esperança. Será?
Bom Dia dos Namorados!
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Dir-lhe-ia, então, que poderia passar uns dias comigo, mas que o prazo da estada seria limitado por mim. Como poderia verificar, o espaço onde eu vivia era muito pequeno para duas pessoas. Tínhamos ambos direito à felicidade e à liberdade. Eu poderia ajudá-lo a procurar algum outro sítio onde morar, porque conhecia a região. Se precisasse, emprestava-lhe algum dinheiro, embora eu tivesse pouco e a vida em Londres fosse muito cara. Poderia, portanto, recebê-lo, enquanto ele não encontrasse outro lugar para viver, se me prometesse que aceitava as minhas condições.
Como tinha a convicção de que viria mais tarde ou mais cedo, uma noite, pus-me a olhar a parede atrás do pequeno sofá e, com um lápis muito claro que está sempre na mesa pequena para sublinhar frases de livros, marquei o sítio onde poderia pendurar os dois quadros que Noé havia feito para me oferecer. Pelas medidas que me tinha enviado, talvez ficassem bem ali.
Nos dias seguintes, não tive quaisquer notícias de Noé. Fui até sossegando, convencendo-me de que talvez tivesse desistido da ideia de vir passar comigo uns tempos em Londres. Poderia ter-se reconciliado com a mulher. Porém, ao regressar a casa, num fim de tarde de chuva persistente e melancólica, fiquei perplexa com uma presença com a qual não contava. Para grande surpresa minha, Noé esperava-me à porta do prédio onde eu vivia. Viu-me, pegou na mala, ainda com os selos do avião, e subiu atrás de mim. Quis saber a razão de ter vindo sem avisar e, em surdina, respondeu-me de forma quase incompreensível. Depois de termos entrado, abriu a mala, tirou os dois pequenos quadros que pintara para me oferecer, passou-mos para as mãos, enquanto olhava a pequena parede atrás do sofá. Vendo as marcas do lápis, disse que eram um sinal de que eu o esperava. Foi quando o vi sorrir pela primeira vez após a chegada. Depois, pediu café que logo fui fazer. Que estava com pressa de sair, mas que pretendia deixar a mala, se eu não me importasse. Ausentou-se pouco depois, sem dizer o que ia fazer nem a que horas regressava. Esperei-o até tarde, mas não voltou. Nem nos dias nem nas noites seguintes.
Como não atendia o telemóvel nem dava notícias, comuniquei o seu desaparecimento à Polícia que quis ver e abrir a mala. Lá dentro, havia apenas recortes de jornais, que identifiquei como sendo noruegueses por já ter recebido tantas outras páginas (apesar de nunca as ter lido), um livro com o título Victoria, um caderno com páginas cheias de texto manuscrito, cujas palavras ninguém conseguiu decifrar, e uma reprodução do quadro de Edvard Munch: "Melancolia”.
Hoje, mais uma vez, irei à polícia. Terei de contar de novo a história, porque Noé desapareceu há já dez dias, sem deixar quaisquer sinais. Apenas a mala. Já perdi o trabalho numa casa, porque tive de faltar duas vezes seguidas para ir prestar declarações.
Perante o mistério e incómodo do seu desaparecimento, preferia chegar a casa e encontrar Noé à minha espera ou saber do seu paradeiro, para poder retomar a minha rotina diária, com a harmonia por que tanto anseio, e ajudá-lo, tentando afastar alguns remorsos que, de vez em quando, me atormentam.
A Polícia acreditou sempre em mim. Por isso, decidi fazer um pedido ao agente que está a tratar do caso: que fique com a mala e com a reprodução de Munch. Custa-me viver com tanta amargura.
Enquanto embrulhava o quadro para tentar livrar-me dele sem o danificar, vi que havia uma frase por trás, na moldura, que mal se notava e que, para além disso, era também indecifrável para mim: Takk for at du invitert meg hos deg! Deveria ser em norueguês, com toda a certeza. Qual seria o significado?
Ontem, tive a oportunidade de saber a tradução da frase através de uma nova cliente indicada pela empresa de limpezas onde trabalho: "Obrigado por me teres recebido em tua casa".
Quem ma traduziu foi uma senhora norueguesa que veio habitar a casa que passei a limpar.
Ela também tinha chegado a Londres havia precisamente dez dias.