sexta-feira, 9 de março de 2018

A recessão aguça o engenho?

Pollock - The Flame

Num dia muito frio do ano passado, eu estava em Paris, fui ao museu da Orangerie e vi a exposição de pintura americana dos anos 1930.
Num dos painéis de uma das salas, podia ver-se que foi no dia 29 de outubro de 1929 que a Bolsa de Nova York colapsou, arrastando os Estados Unidos para uma crise tanto económica como de dignidade.
A exposição organizava-se por temas, tais como: Contrastes americanos: poderio industrial e retorno à terra; a cidade espetáculo; a história revisitada; pesadelos e realidade; para uma arte moderna americana. Para ilustrar estes temas, eram expostas obras de autores como Grant Wood, Charles Sheeller, Arthur Dove, Helen Lundeberg, Pollock, Hopper...
Essa crise, começada no outono de 1929, era bem evidente em quadros com rostos de grande secura e austeridade, evidenciando carências também alimentares. Excertos de filmes e painéis ajudavam a compreender melhor as consequências de uma recessão.
Também a crise portuguesa dos últimos anos, para além dos prejuízos causados, abriu novos caminhos suportados pela imaginação e criatividade. Mas o melhor será não haver réplicas de tão grande terramoto. 

quinta-feira, 8 de março de 2018

"Mulher é desdobrável"

Menez - Figura, 1989

Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
-- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Adélia Prado

quarta-feira, 7 de março de 2018

Visita(s) ao Porto


Já tenho feito algumas visitas ao Porto, dinamizadas pela Câmara Municipal, pela Casa do Infante, etc. Ontem, olhando a Muralha Fernandina, mandada construir por D. Afonso IV, no século XIV, lembrei-me de um desses percursos. E o que mais me ficou na lembrança foi a vista para o rio do alto das largas muralhas, das quais ainda restam altos torreões, ameias, pedras autografadas, casas encostadas aos grossos e seguros muros, etc.
Lembrei-me de ter visto também um denso laranjal num vasto pomar junto do torreão das traseiras da igreja de Sta Clara, bem perto do tabuleiro superior da ponte Luís I. Os citrinos deviam destinar-se, na época, ao consumo dos religiosos das imediações. 
  Enquanto subíamos e descíamos a escadaria junto a uma das muralhas, um homem novo disse que emigrara já menos jovem do que muitos  portugueses, que vivia em Haia e que, sempre que vinha ao Porto, fazia visitas guiadas para conhecer mais sobre a sua cidade; um homem tinha um site sobre o Porto com fotografias que tirava apenas quando dava passeios sozinho, uma vez que só assim podia fixar melhor os pormenores; uma mulher de meia idade  fotografava tudo e mais alguma coisa, fazendo perguntas para as quais já tinha sido sempre dada a resposta; uma jovem tirava apontamentos sem falar nunca com ninguém; um homem de barba grisalha e forte dizia que o Porto era a sua cara completa e a mulher (que não estava presente) era a sua cara metade; a senhora mais idosa do grupo tudo ouvia com atenção  e nunca ficava para trás; um homem alto e de ar solitário sorria se olhavam para ele, mantendo-se  sempre na cauda do grupo; um casal fazia poses, fotografava-se e falava alto enquanto o guia dava explicações; uma mulher de voz grave ia explicando o que sabia aos amigos, sobrepondo-se ao guia...
      De facto, para além dos passeios a pé, dos factos históricos que se conhecem, há pequenas histórias engraçadas que completam as paisagens que, mesmo vistas milhares de vezes, parecem sempre bonitas.

terça-feira, 6 de março de 2018

Bavo Cantorij

Concertos vs desconcerto

    A Igreja da Nossa Senhora da Lapa, no Porto, atrai muitas pessoas, tanto para os atos de culto como para espetáculos musicais.
Há uns meses, assisti a um concerto com o Coro "Bavo cantorij" da Catedral de St Bavo, Haarlem, Holanda.
O coro, constituído por mais de duas dezenas de jovens, todos vestidos com longas túnicas vermelhas, cantaram peças sacras de Monteverdi, Chilcott, Scarlatti (impossível não me recordar de Mafra e do Memorial do Convento) e de muitos outros compositores.
A junção harmoniosa de tantas vozes juvenis difundia-se na igreja que estava cheia, apesar de o dia ter sido chuvoso.
Felizmente, há igrejas que vivem em prol da apaziguadora espiritualidade, também alcançada pela música, tão bem tocada e cantada nesse concerto. O som do monumental órgão de tubos ecoou na bela igreja, com os cantores sentados nas altas cadeiras que ladeiam o espaço junto dos degraus do altar-mor. O som denso da música e a cor rubra das vestes desenhavam belos quadros a compor o concerto. Depois desses, houve muitos mais. E muitos haverá com certeza porque a música é privilegiada naquela igreja.
Sempre me seduziram os concertos de música clássica em igrejas. Pela espiritualidade. Pelo silêncio largo (embora haja sempre um ou outro telemóvel distraído que, felizmente, nessa noite não se ouviu).  Pelo prazer encantatório da música que parece exalar dos rostos disponíveis e atentos.
Felizmente vão-se tornando também habituais os concertos para crianças, muitas vezes em igrejas. E os músicos, de diferentes idades, revelam alegria, motivando as crianças e incutindo hábitos de respeito, de concentração, de gosto pela música...
Perguntei muitas vezes aos meus alunos se imaginavam a vida sem música e logo me respondiam que não. Claro que a música a que se referiam seria bem mais frenética do que a escutada nas igrejas.
Julgo também que nunca esquecerei um sarau que ajudei a preparar numa escola onde trabalhei.
Dois jovens músicos, alunos da escola,  - um tocava violino e o outro flauta - encantaram o auditório que era heterogéneo: alunos, professores, funcionários e encarregados de educação. Tocavam com tal profunda verdade que todos se sentiram encantados e ficariam muito mais tempo a ouvi-los porque era notório que estava a ser boa e doce a sensação. 
A música ajudava a estabelecer a união entre todos, independentemente das idades, da formação e dos gostos de cada um.
     Sem música, o desconcerto do mundo tocaria ainda mais fundo dentro de nós.

segunda-feira, 5 de março de 2018

domingo, 4 de março de 2018

Al Mu'tamid, el poeta rey de al-Andalus

"A vida é uma presa, vai-te a ela" - disse o poeta

    Naquela noite, o Salão árabe do Palácio da Bolsa, no Porto, estava cheio. O Porto parece estar quase sempre em festa, o que é muito bom também.
Mais uma vez reparei que nas ruas cresce o número de turistas (apesar de há muito decrescer o número de moradores). E as casas vão sendo recuperadas, reavivando os belos tons dos azulejos: amarelos, azuis, ocres...
E, no programa, podia ler-se um poema do "mais brilhante poeta do Al-Andalus, no século XI, e que nasceu em Beja", tal como se podia ler no desdobrável do evento.

"Solta a alegria! Que fique desatada!
Esquece a ânsia que rói o coração.
Tanta doença foi assim curada!
A vida é uma presa, vai-te a ela!
Pois é bem curta a sua duração.

E mesmo que a tua vida acaso fosse
De mil anos plenos já composta
Mal se poderia dizer que fora longa.

Que seres triste não seja a tua aposta
Pois que o alaúde e fresco vinho
Te aguardam na beira do caminho.

Que os cuidados não sejam de ti donos
Se a taça for espada brilhante em tua mão.
Da sabedoria só colherás a turbação
Cravada no mais fundo do teu ser.
É que dentre todos, o mais sábio
É aquele que não cuida de saber."

Al-Mu'tamid, séc. XI, in Adalberto Alves, O Meu Coração É Árabe (1987)

E os músicos - portugueses, espanhóis e marroquinos, com as suas vozes torneadas e prodigiosas, transmitiam, de facto, uma forte mensagem de paz e de pluralidades que tem de prevalecer e não os conflitos políticos e religiosos que parecem estar cada vez mais presentes e próximos. 
Pensando mais na morte do que na vida, ao contrário do que seria de esperar.

sábado, 3 de março de 2018

Um livro em fim de semana de chuva



O dia está chuvoso, para além do vento, da trovoada... Amanhã, pelas previsões, não será muito diferente.
A leitura um pouco mais prolongada talvez venha a calhar.
E por que não Homens imprudentemente poéticos de Valter Hugo Mãe?
Poéticos são os ambientes, as personagens, os diálogos, os temas que emergem, sem ruído, de um Japão mágico e mítico que é o pano de fundo da obra. Temas como o amor, a morte, a perda, a miséria, a procura, a natureza, o medo, a esperança, a culpabilidade, a ternura irrompem de espaços e de tempos ancestrais que as palavras do narrador-autor põem amorosamente a nu, diante dos nossos olhos incautos e curiosos.
Há cenários de cerejeiras, pássaros e violetas, onde vejo seres inocentemente belos e humanos (como Matsu, a rapariga cega; a senhora Kame, "a mãe perto") a convocar candura, inocência, delicadeza. Mas também os homens os transmitem, como os vizinhos inimigos: Itaro, que faz leques com as canas de bambu que recolhe e Saburo que molda taças de barro.
Existe uma beleza onde coabita a delicadeza e a rudeza.
Registei algumas frases que me tocaram pelo seu sentido poético:
"A beleza carece de nenhum motivo, p.77; "(...) a menina dizia: para os cegos as flores são ainda coisas de ver. Mapeava-os pelos perfumes". p. 90; "As taças eram terra adulta.", p.107; "A memória era o resto da realidade", p. 141.
Na descrição dos ambientes, surgem casos de amálgama com laivos de Mia Couto: "Alguns peixes barulhavam na água" - p.79.
O  não uso da dupla negação também é notório: "Viu nada", p.113; "Tinha nenhum recipiente", p.141.
A ausência do ponto de interrogação também ocorre quando o contexto o dispensa, tal como foi prática de José Saramago; "O artesão gritou: quem é.", p.117.
No tempo em que VHM não usava maiúsculas, mesmo no seu nome, ouvi-o dizer a um auditório constituído por alunos e professores que, para se aplicarem outras regras, era necessário conhecer bem as que são convencionais. Repeti-o várias vezes nas minhas aulas, lembrando-me das palavras prudentes do autor desta obra Homens imprudentemente poéticos.

sexta-feira, 2 de março de 2018

Como hoje há clássico...

O gol
A esfera desce
do espaço
        veloz
ele a apara
no peito
e a pára
no ar
     depois
com o joelho
a dispõe a meia altura
onde
iluminada
a esfera
        espera
o chute que
     num relâmpago
a dispara
     na direção
     do nosso
     coração.
            Ferreira Gullar

quinta-feira, 1 de março de 2018

Muitos nomes dentro de uma canção

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Terna é a neve!

Nos arredores de Londres, a neve chegou acompanhada de muito frio. A mãe levou a menina à janela para ver a neve a cair e alguma da sua brancura já espalhada.
A menina, que já viu o Frozen vezes sem conta e as paisagens frias de neve intensa do filme, olhou o exterior da casa e disse para a mãe:
Mamã, esta neve é bebé!


sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

O Porto é divertido?


"O inquérito, realizado a 15.000 pessoas em todo o mundo, avalia as cidades com base na gastronomia, cultura, simpatia, acessibilidade de preços, felicidade e condições de vida. O Time Out City Life Index 2018 elaborou o ranking das cidades mais excitantes do mundo para se viver e visitar em 2018. No total, a lista é composta por 32 cidades." 

Nesta lista, o Porto surge em segundo lugar, a seguir a Chicago. Lisboa é a oitava.
Realmente, o Porto está na moda! 
Os preços e as rendas das casas continuarão mais facilmente a subir, o que, para muitos, não é lá muito divertido!

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Armar professores - mais uma Trumpalhada!

"Pois disse, não é erro, não há um erre a mais na palavra, Donald Trump não admite amar professores, “admite armar professores”. E não, não foi uma frase no meio de nada, foi mais de um minuto a falar sobre o assunto, em que o Presidente dos Estados Unidos precisou de levar uma cábula (apanhada pelo fotógrafos) para dizer a pais que perderam os filhos coisas como “eu ouço-vos”.

Mas o Presidente norte-americano não só ouviu, também falou. E falou numa sala com sobreviventes e familiares do tiroteio de há uma semana na escola secundária de Stoneman Douglas, em Parkland (Florida), onde Nikolas Cruz, um ex-aluno de 19 anos, entrou e disparou a eito. Morreram 17 pessoas.

“Se tivessem um professor armado, ele poderia acabar com o ataque muito depressa”, disse Trump, afirmando que as escolas poderiam armar 20% dos professores para travar “maníacos” que tentem atacá-los.

“Se o treinador tivesse uma arma no cacifo, não teriam de ter fugido, ele teria disparado sobre o atirador e seria o fim de tudo aquilo”, afirmou o presidente. “Para um maníaco - e porque todos eles são um cobardes - uma zona livre de armas é o mesmo que dizer ‘vamos lá atacá-los porque não vão disparar de volta’… [Dar armas a professores] é certamente algo que vai ser discutido”, garantiu. Trump pediu que quem concordava com a solução erguesse as mãos. Alguns levantaram. Outros não.

“Quantas crianças têm de ser baleadas?”, perguntou ao Presidente um pai de uma rapariga de 18 anos que foi assassinada. Um grupo de alunos juntara-se em frente à Casa Branca para protestar, exigindo que sejam tomadas medidas para controlar o uso de armas.

O New York Times mostra como a NRA, organização que faz lóbi pelo uso de armas, tem canais nas redes sociais altamente virais. E o Vox analisa dados que mostram a dimensão do problema americano, num trabalho assinado por um jornalista que escolhe o seguinte título para o seu artigo: “Eu faço a cobertura violência com armas há anos. As soluções não são um grande mistério”.

A Amnistia Internacional culpa Trump por um retrocesso mundial nos recursos humanos (no El Pais)."


Pedro Santos Guerreiro, In Expresso Curto de hoje 


quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Há tantas raposas na terra!

 
 Em muitas noites, nos arredores de Londres, é frequente ouvir as raposas que regougam, roncam, uivam, gritam.

 Paula Rego, numa entrevista, com o seu  encantamento infantil, confessou: "Em Londres, não saio à noite porque tenho medo das raposas" (talvez por, na calada da noite, saírem das tocas, nos parques, e procurarem alimento nas ruas onde encontram sacos de lixo acessíveis).
Na minha infância, em que o tempo era mais de castigo do que prémio, ouvia-se: "Se não estudares, tens uma raposa" (reprovação).
E, por falar em raposas, lembrei-me da fábula de Esopo "A raposa e o queijo".
Recordei-a:
Estava um corvo num ramo de uma árvore e, no bico, segurava um queijo. Passando uma raposa, logo desejou a iguaria que não estava ao seu alcance por se encontrar demasiado alta. Para tal, elogiou a voz do corvo, pedindo que cantasse. O corvo, ingenuamente seduzido, abriu a boca para começar o seu canto, deixando logo cair o queijo. A esperta raposa, tendo conseguido o que pretendia, fugiu veloz levando consigo o desejado pitéu.
Também sobre uma raposa é um conto de Teolinda Gersão, incluído no livro  A mulher que prendeu a chuva,  "O casaco de raposa vermelha".
Não esqueço esta narrativa que me fascinou, tendo, muito resumidamente, dela retido:
Uma bancária deseja intensamente comprar um casaco de pele de raposa vermelha que viu numa montra de uma loja. Faz todos os cálculos do dinheiro de que pode dispor e o desejo de adquirir o casaco torna-se obsessivo.
Chega, finalmente, o dia tão desejado em que vai buscar o casaco e, vestindo-o, começa a correr em direção à floresta, tal qual uma raposa verdadeira.
Paralelamente a estes pensamentos, surgem os pequenos livrinhos que o meu pai nos comprava na Feira do Livro do Porto e cujas personagens eram, recorrentemente, as raposas, as cegonhas e os lobos. Parece que me estou a ver sentada na soleira da porta segurando um desses livrinhos na mão.
Um dia, ouvi uma vizinha falar de outra vizinha chamando-lhe manhosa e vingativa e logo me lembrei de uma história em que a raposa convidou a cegonha para almoçar, servindo a comida em pratos rasos, uma vez que a cegonha lhe tinha oferecido um almoço em jarras altas onde só um longo bico caberia.
Mesmo de raposa. 

sábado, 17 de fevereiro de 2018

ANA MOURA - FADO LOUCURA

"Conscientemente escrevo..."

Poema do Futuro

Conscientemente escrevo e, consciente,
medito o meu destino.

No declive do tempo os anos correm,
deslizam como a água, até que um dia
um possível leitor pega num livro
e lê,
lê displicentemente,
por mero acaso, sem saber porquê.
Lê, e sorri.
Sorri da construção do verso que destoa
no seu diferente ouvido;
sorri dos termos que o poeta usou
onde os fungos do tempo deixaram cheiro a mofo;
e sorri, quase ri, do íntimo sentido,
do latejar antigo
daquele corpo imóvel, exumado
da vala do poema.

Na História Natural dos sentimentos
tudo se transformou.
O amor tem outras falas,
a dor outras arestas,
a esperança outros disfarces,
a raiva outros esgares.
Estendido sobre a página, exposto e descoberto,
exemplar curioso de um mundo ultrapassado,
é tudo quanto fica,
é tudo quanto resta
de um ser que entre outros seres
vagueou sobre a Terra.

António Gedeão, in 'Poemas Póstumos'