sábado, 28 de julho de 2012
sexta-feira, 27 de julho de 2012
Quando as férias começam
Picasso
No tempo em que tudo parecia ser duradouro, havia regressos de férias com desejo de descanso... para férias!
A crise trouxe coisas muito más, como reduções de salário, a supressão dos subsídios de Natal e de férias para muitos funcionários públicos... o fantasma do desemprego, a deslocação (quase) forçada de muitas pessoas em busca de trabalho...
Atualmente, os gastos são quase sempre mais ponderados. Porém, ainda há quem fique com dívidas para passar férias em locais turísticos distantes.
Como, no geral, os gastos têm de ser mais contidos, haverá a tendência a valorizar o que está mais perto de nós. E, muitas vezes, o que está próximo merece bem o nosso olhar e o nosso apreço.
Aqui, às portas do Porto, do rio e do mar, neste final de julho não muito quente, sento-me e escrevo estas palavras sobre as férias, pensando nas maravilhas que estão ao nosso alcance.
Em férias, as palavras parecem mais leves, calmas e claras (sobretudo para quem as escreve). Tal como a maresia. Ou será uma maré de necessária esperança?
quarta-feira, 25 de julho de 2012
O solitário da rua
Mário Eloy
- Boa tarde. Posso fazer-lhe umas perguntas sobre o consumo de água?
- Tenho pouco tempo.
- Só o ocupo uns dois minutos. Primeiro e último nome...
- José Martins.
- Contacto...
- Só para os amigos.
- E e-mail tem?
- Sim, tenho.
- Pode fornecê-lo?
- Sim
- Idade
- 55
- Não parece. Estado civil...
- É pessoal.
- Desculpe, não percebi.
- É pessoal.
- Estado civil. Se é solteiro, casado, viúvo...
- Eu sei o que é o estado civil, mas é pessoal.
- Eu aqui, então, não posso pôr nada.
- Como quiser.
- Número de pessoas com quem vive.
- Depende.
- Depende?
- Sim, depende.
- Mais ou menos.
- É difícil dizer.
- Assim também é difícil continuar a entrevista para lhe oferecermos uma garrafa de água.
- Não faz mal. Bom trabalho.
No regresso a casa, pensou o que aconteceria àquela jovem se fosse mal sucedida em todas as entrevistas. Seria mais um número para o desemprego.
Quando abriu o portão, logo ouviu os cães. Quando lhes deu água, pensou que tinham sorte.
Um lugar chamado verão
Paula Rego
A
minha filha está sossegada, ao meu lado, no banco da frente, até que,
por fim, suspira e diz com a lógica poética de uma criança: “Isto
recorda-me aquele lugar em que eu gosto sempre de pensar.”
Barbara Kingsolver
Enquanto
relia um romance, eis-me chegado ao ponto em que a personagem
principal do livro, de doze anos de idade, acorda “ao som de algo que
era bem mais importante do que os pássaros ou o restolhar das folhas
novas… o som que indicava que o verão tinha oficialmente começado…” Era o
som primeiro dos corta-relvas.
Pus de lado o livro e deixei a minha mente vaguear através dos meus verões pré-adolescentes há muito, muito tempo…
Quando
eu era miúdo, dias de verão queriam dizer beisebol. Levantava-me cedo,
deixava cair umas gotas de óleo no bolso macio e preto da minha luva,
colocava o taco num tubo cilíndrico e oco de metal que eu tinha
provisoriamente ajustado ao quadro da minha bicicleta e, depois,
pedalava até algum monte de erva recentemente cortada e banhada pelo
sol para então fazer umas rebatidas simples, roubar umas bases e correr
atrás das bolas ainda no ar, até que o céu ficasse cor de índigo.
Nas
manhãs mais quentes podiam encontrar-me no cais da baixa da cidade,
com o meu isco de minhoca a tentar provocar algum lúcio ou salmão, com
os pés baloiçando ao dependuro, a ler o Tarzan e alguns livros de
aventuras.
Mas
a melhor parte dos verões da minha infância eram aquelas duas semanas
de agosto que eu passava nas montanhas com a minha irmã, a minha mãe e o
meu novo padrasto, numa cabana que ele próprio tinha construído. Neste
mundo de verão, o sol nascia atrás de uma ravina, passava
languidamente por cima da cabana abrigada da luz e deslizava por detrás
de uma cordilheira arborizada, deixando às estrelas o comando absoluto
daquele céu azul tinta das montanhas.
Por
detrás da cabana havia um riacho a que eu nunca tinha descoberto o
fim. Calçando as minhas botas, eu andava na água saltitando por cima de
pedras parcialmente submersas. O meu lugar favorito era um pequeno
ramal ribeiro acima, a cerca de 1 Km de distância, onde a água se
ramificava em três charcos profundos, escuros e bordejados por seixos.
Era aí que as rãs viviam –
algumas, verdes como folhas, outras quase pretas e todas elas
escorregadias e lustrosas. Eu apanhava-as e dava risadinhas quando elas
se contorciam, coaxavam e arregalavam os olhos quando ficavam presas a
algo. Às vezes, fazia-lhes caretas e arrastava-as através da água
fazendo sons como um barco a motor. Por fim, arremessava-as de novo ao
charco e logo tornava a tirá-las, na minha odisseia ribeiro acima,
tentando apagar da mente a ideia da inevitável chegada de setembro.
O verão era, então, especial. Mais que uma estação, era um lugar.
Era
um lugar onde se podiam fazer mergulhos infindáveis, tipo canhão ou
parafuso, da prancha mais alta ou chapinhar sem qualquer propósito na
grande “piscina” sem a obsessão do fator de proteção solar. Um lugar
onde os olhos podiam seguir os movimentos daquela miúda que se sentara
ao nosso lado, nas aulas, durante todo o ano – e que agora parecia tão
diferente de fato de banho –
deslizando entre opalas e turquesas no grande charco, o longo cabelo
ondulando atrás dela. Um lugar onde se podia sorrir à mãe de modo
trocista através de um bigode de melancia, dormir no quintal das
traseiras (antes dos dias em que o ar condicionado tornou as estações
todas iguais) e lançar estrelinhas de fogo-de-artifício.
Nos verões do passado, quase tudo o que era bom passava-se no exterior.
Uma
noite, quando estava fora de casa, ao frio da montanha, olhando as
estrelas cadentes que, todas as noites, riscavam de fogo o céu, a minha
mãe disse-me: “Pede um desejo, querido.”
Eu tentava, claro, mas era difícil pensar num. Tudo aquilo que eu poderia pedir estava ali – bem à minha volta.
Doug Rennie
Jack Canfield; Mark Victor Hansen; Steve Zikman
Chicken soup for the nature lover’s soul
Florida, HCI, 2004
(Tradução e adaptação)
segunda-feira, 23 de julho de 2012
O solitário da rua
Uma noite, depois dos trabalhos habituais no quintal (a harmonia
das plantas ajudava-o a construir a sua própria harmonia), sentou-se na sala,
como de costume.
No copo, o vinho tinto exalava um colorido e calmo aroma.
Abriu o livro O tempo envelhece depressa,
de Antonio Tabucchi, mas logo o fechou.
Dirigiu-se à estante e pegou numa coletânea de poesia de
Fernando Pessoa. Mais uma vez, veio até ele o poema Tabacaria do heterónimo Álvaro de Campos:
“Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos
do mundo
…”
Não conseguiu prosseguir. Apeteceu-lhe
chorar. Dentro de si, ouvia vozes antigas: um homem não chora!
Chora sim, por que não? E fala, e sente,
e sofre, e ri, e ama, e desespera, e espera, e acredita, e desconfia…
De dia, a repartição acolhia o
funcionário público exemplar; ao fim da tarde, a casa recebia o homem completo. Com as incompletudes que se lhe incrustaram à pele e à alma desde a infância.
E releu:
“Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos
do mundo
…”
Encostou a cabeça no sofá e recordou as
peripécias do dia. E viu-se com uma infinidade de pessoas a quem se aplicavam, também, aqueles
versos.
Só os versos?
domingo, 22 de julho de 2012
Uma nostalgia feliz
Van Gogh
à Dolores, que se atreveu à renda, mas não ao poema
Há
uma rendinha branquinha
Que
fica linda, catita
Na
saia rosa de chita
Da
minha boneca de trapos.
Foi
feita pela minha avó,
Neste
moinho velhinho,
Onde
agora eu me divido
No
passado feito pó.
Nestas
manhãs de silêncio,
Curadas
em maresia,
Recordo
as tardes alegres,
Em
que ela rendas fazia.
Não
eram só bonecas e netas
Que
se alindavam em lavor,
Mas
todas as roupas domingueiras
Para
as visitas ao Senhor!
Também
as roupas de cama,
As
peças especiais
Para
aqueles dias únicos,
Marcados
por rituais,
Tinham
seu toque de fada.
E
agora, que guardo na arca,
Encostada
à velha mó,
A
bela boneca de trapos,
Rendilho
a azul no papel
A
infância rendilhada
Pelas
mãos da minha avó!
IA, Porto, 22 de julho 2012
Nota - Obrigada, Isaura. Continua a rendilhar as palavras.
O solitário da rua
Era um funcionário público que, de dia, tinha toda a carga física e psicológica de um comum funcionário público.
Cumpria bem a sua missão: tinha os papéis organizados, sabia utilizar bem as novas tecnologias, atendia bem o público.
Não gostava que os utentes da repartição falassem muito alto, enquanto estavam à espera da sua vez. Também o irritava ouvir os toques estridentes do telemóvel e logo de seguida o "tôooo" habitual. Tentava controlar-se e todos diziam que era um homem calmo.
A hora mais feliz era a de saída. Não é que não gostasse de trabalhar na repartição, mas ir para casa ao fim da tarde era o momento alto do dia.
Quando tinha reuniões ou eventos à noite, sentia que um dia se colava ao outro sem o tempo de profunda liberdade de que sempre estava à espera e de que precisava para harmonizar a vida.
Chegava a casa, tirava a roupa que logo separava: ou para usar de novo ou para lavar. Vestia a roupa do campo, calçava as botas, punha o boné e saía para o exterior da casa.
Um dia, olhou-se ao espelho do móvel junto à porta e até lhe pareceu que a sua imagem era a de um belo homem, mas logo saiu para o trabalho diário no jardim e no quintal. Não tinha tempo a perder e daí a nada cairia a noite.
Os cães aproximavam-se sempre à espera de festas. E era preciso regar o feijão, as árvores de fruto, tirar as ervas às aromáticas...
No final do dia, depois do jantar, sentava-se a ler e a ouvir música.
Ao seu lado, um copo de vinho tinto.
E uma fotografia com uma legenda desenhada e redonda: Para o homem mais belo da minha vida
Sorria e ia pôr o copo, vazio, na cozinha.
sexta-feira, 20 de julho de 2012
"Delicadeza"
Uma jovem (Audrey Tautou - a inesquecível Amélie) vive só, dedicando-se inteiramente ao trabalho. O companheiro tinha morrido de forma trágica e repentina.
Anos mais tarde, conhece Markus (François Damiens), que trabalha no mesmo local. Ele é enorme, desajeitado, delicado, generoso, terno, boa pessoa, apaixonado por Nathalie...
Os dois, depois de várias peripécias, resolvem mudar de vida num dia de chuva intensa que os recebe no regressa às origens.
No final do filme, as pessoas (na sala do Arrábida, onde não havia muita gente) não se levantaram logo. A música final continuava a ser bonita e convidava a ficar mais um bocadinho.
A história tinha feito sorrir, reparar em pequenos gestos humanos que são sinais do amor e de seus contrários.
Ah, e o filme mostra pequenas ruas de Paris, cafés envidraçados, o piscar das luzes na Torre Eiffel...
Apesar de real e terreno, o filme revela uma amorosa e doce "Delicadeza" sempre bem-vinda.
O diário de Mariana
Querido diário,
20 de julho 2012
No próximo ano, já não devo ter a
setora C. Para além de ser sempre fixe com toda a gente, via-se mesmo que gostava
de dar aulas e de fazer atividades na escola.
Eu conheço vários alunos que quiseram tirar o mesmo curso que ela, porque ela motivava mesmo. Dava valor ao que dizíamos, achava importante o que fazíamos, ensinava a fazer melhor quando tínhamos dificuldades...
Eu conheço vários alunos que quiseram tirar o mesmo curso que ela, porque ela motivava mesmo. Dava valor ao que dizíamos, achava importante o que fazíamos, ensinava a fazer melhor quando tínhamos dificuldades...
Sei lá, tanta coisa altamente de
que me lembro. E agora tem de concorrer e se calhar vai mesmo para outra escola. Eu
acho isso horrível. E ela uma vez disse que estava na escola há mais de vinte anos.
Quando chegava à aula, vinha
sempre bem disposta. Eu, um dia, ganhei coragem e disse assim:
- Ó setora, você não tem
problemas como toda a gente? Parece que anda sempre tão feliz!
E ela disse assim, sempre com um sorriso
alegre:
-Ó Mariana, o você, neste caso, não condiz nada
contigo. Já te esqueceste do que vos expliquei sobre as formas de tratamento?
- Desculpe, setora, mas esqueci-me. Vejo-a
sempre contente e até fico curiosa.
- Claro, Mariana, que tenho
problemas, mas gosto tanto de dar aulas que até os esqueço enquanto estou na
escola.
Com isto, eu achei-a mais fixe
ainda. Até me vêm as lágrimas aos olhos quando penso nisso. Eu não quero fazer
de conta que sou o Calimero, mas acho que há coisas muito injustas. Por exemplo, a minha cadela foi atropelada e o condutor andou sempre. Às vezes, somos tão mal educados. Parece que ninguém se quer chatear e quer lá saber dos outros. Eu falo da Castanha porque ela já faz parte de nós, apesar de fazer estragos nas plantas, mas é por ser muito nova ainda.
Isto da setora C. poder sair da
escola só por ser menos graduada não me sai da cabeça. É menos graduada mas
estudou para ter um curso da Faculdade e tirou-o honestamente. Não é como aqueles políticos
que fazem batota para terem cursos sem frequentarem as aulas, sem fazerem
exames nem nada e ficam, ficam nos lugares como se tivessem pilhas duracel! Não há
direito!
Não me conformo. Acho que somos
todos um bocado totós. Eu falo por mim, mas acho que não sou só eu. E depois
eles abusam e de que maneira. Acho que devia haver mais justiça.
Muitos abracinhos, querido diário.
Mariana
"Cães como nós"
Ontem à noite, a minha cadela (a Castanha), vendo o portão a
entreabrir-se, saiu para a rua. Passou um carro e atropelou-a. Foi forte o
impacto e o estrondo, apesar de a Castanha não ser grande.
Caída em plena rua, logo corri para a recolher, enquanto o
condutor seguia o seu percurso.
Parto do princípio que se fosse uma pessoa, o condutor
pararia, mas esta atitude de (aparente) indiferença deixa dúvidas.
Felizmente julgo que poderei continuar a ter a companhia da Castanha, porque está a recuperar, mas apetece-me dizer que estes procedimentos parecem "cães como eles".
quinta-feira, 19 de julho de 2012
"Convidatória"
Alguém começou a utilizar a nova palavra: "convidatória". E passou a dar resultado para reuniões não obrigatórias.
A palavra "convocatória" soava a obrigação, a necessidade de redação de uma ata, ao respeito mais formal de uma ordem de trabalhos.
"Convidatória" lembrava mais liberdade, participação voluntária, preparação do trabalho de maneira mais gostosa, igualmente atempada e criativa.
De forma espontânea, o grupo foi aumentando e o trabalho realizado para o próximo ano letivo foi produzido de forma mais alegre e eficaz.
Felizmente, para além das pessoas, as palavras que se criam também podem ser motivadoras!
Humberto e a macieira
Nos
arredores de uma pequena cidade viveu em tempos um homem. Chamava-se
Humberto. Humberto era um homem simpático, de olhos bondosos e uns
óculos muito pequeninos pousados no nariz. Os seus caracóis castanhos
pareciam a lã de uma ovelha. Morava numa casa velha e torta que se
escondia tímida, quase envergonhada, por detrás de um belo jardim. No
jardim, num prado verde e florido, havia uma macieira.
Todas
as manhãs, quando se levantava, Humberto maravilhava-se com a beleza
da sua árvore. Ao fim da tarde, quando regressava do trabalho,
sentava-se durante horas a ver os pássaros na copa da macieira. Na
verdade, devemos dizer que não é nada aborrecido estar a observar uma
árvore. Algumas são verdadeiras artistas da mudança.
Na primavera,
vestem-se de mantos floridos e estendem os ramos para o calor, enquanto
as abelhas laboriosas as procuram em busca de alimento. No verão,
oferecem a sua sombra, enquanto o sol brilha com tanta intensidade que
faz as pessoas andarem de rostos afogueados. No outono, o vento forte
brinca sem descanso com as folhas amarelas, vermelhas e castanhas e
espalha-as pelos prados e ruas, até que o inverno vista a paisagem de
um manto branco.
Quando
Humberto se deitava debaixo da macieira, lembrava-se de como costumava
trepar por ela acima em criança. Muitas vezes se escondera nos seus
ramos, quando a mãe o chamava para almoçar e ele ainda não tinha
vontade de voltar para casa. Quando Humberto contemplava a sua árvore,
sentia uma alegria imensa. Acontecia também que as pessoas paravam
junto à cerca – uma mãe ou um pai com um filho, por exemplo. Por vezes
alguém exclamava:
― Olha, que bonita!
Mas a maioria das pessoas passava apressadamente. Parecia que havia muitas coisas urgentes a fazer naquela cidade tão pequena.
Assim
passaram os anos. Humberto ficou mais velho. A cara ficou coberta de
rugas. O cabelo ficou, primeiro grisalho, depois branco e, com o tempo,
desapareceu como as folhas no Outono. Só a barba continuava a crescer
luxuriante, cobrindo-lhe o queixo e descendo pelo pescoço até ao peito.
Humberto, contudo, continuava feliz, observando horas sem fim a árvore
e os pássaros. Se apanhava crianças atrevidas a roubar maçãs,
limitava-se a rir e gritava:
― Assim é que elas sabem bem, não é?
Os
miúdos, então, fugiam envergonhados. Um dia, contudo, aconteceu uma
coisa horrível. Era mais uma vez outono. O vento forte batia violento
nas janelas e fazia as folhas coloridas girar no ar. Das montanhas em
redor vieram nuvens carregadas de tempestade. Eram tão negras,
sinistras e assustadoras que as pessoas fugiram para casa. Humberto
também fechou a janela depois do primeiro trovão, mas ficou a ver o que
acontecia, abrigado atrás do vidro.
Logo
começaram a cair grossos pingos de chuva na janela. Depois, abateu-se
um chuveiro sobre a pequena cidade, como se alguém muito zangado
tivesse aberto a torneira. Entretanto, os relâmpagos riscaram o céu,
acompanhados de trovões cada vez mais fortes e ameaçadores. De repente,
o coração de Humberto ficou paralisado de susto. Diante dos seus
olhos, um raio riscou o céu e caiu sobre a macieira com um estrondo
tremendo. Ela estalou e gemeu enquanto o tronco se fendia em dois.
Depois, a chuva refrescou a ferida. A tempestade passou.
Ali
estava a árvore que fora tão bela. Oferecia um aspeto muito triste.
Ficara tão retorcida e nodosa como a casa. Uma visão estranha. O tronco
tinha uma cicatriz que ia até às raízes poderosas.
― Isso dói ― disse Humberto à árvore, dando-lhe uma palmadinha afetuosa.
A
árvore suspirou baixinho. E, se as pessoas soubessem que as árvores
também choram, talvez Humberto tivesse reparado nas gotas que havia na
casca da macieira.
A
primavera seguinte foi quente e cheia de sol. O canto dos pássaros era
uma maravilha. As flores cresciam por toda a parte. Só a árvore
continuava retorcida, nodosa e triste. Algumas folhas pequeninas tinham
nascido e havia algumas flores em redor das quais as abelhas se
atarefavam. Mas, embora se esforçasse, a pobre árvore já não tinha
forças para florir como no passado. Ainda tinha dores, quando o tempo
mudava ou o sol lhe queimava o tronco. Mas isso não era o pior.
Ultimamente, as pessoas paravam outra vez a olhar para ela. Sem
coração, miravam-na e chamavam-lhe “feia” e “nódoa”.
―
Aquilo devia ser cortado ― tinha dito uma mulher, e um homem
respondera que aquele era um bom local para um parque de estacionamento
ou, pelo menos, para um relvado agradável, se a árvore não estivesse
lá.
A
árvore ficava cada vez mais triste. As lágrimas corriam pelos novos
rebentos, tornando-os cada vez mais fracos. Humberto irritava-se com os
comentários das pessoas. Gostava da árvore tal como ela era. Observava
as aves a esvoaçar nos ramos e, à noitinha, dava-lhe palmadinhas no
tronco.
― Fora daqui! ― gritava furioso, perseguindo com uma vassoura as pessoas pasmadas e surpreendidas.
No
entanto, não servia de nada. Apareciam sempre outras pessoas com
comentários desagradáveis. Um dia, montou na sua bicicleta ferrugenta.
Os vizinhos ficaram espantados com o sorriso que ostentava no rosto.
Algumas horas mais tarde, regressou carregado. Foi a correr ao barracão
buscar uma pá e começou a cavar energicamente junto ao tronco da
macieira. Só parou quando já tinha uma cova bem funda. Aí plantou uma
pequena macieira delicada, que mal lhe chegava à altura da barba.
“Assim, pelo menos, vamos ficar livres daquela árvore,” pensaram as
pessoas. Mas Humberto sorriu malicioso, cobriu as raízes da macieira com
terra, regou-a muito bem e foi arrumar a pá.
Passaram
muitos anos. Primaveras, verões, outonos e invernos, uns atrás dos
outros. Humberto transformara-se num velho curvado, que se sentava
satisfeito à janela. A pequena macieira crescera tanto e estava tão
carregada de frutos que Humberto não conseguia comê-los todos sozinho.
A velha árvore retorcida continuava no jardim. Protegida pelos ramos
da árvore jovem, vivia sossegada e contente.
Bastavam-lhe
as poucas folhas e rebentos que corajosamente produzia todas as
primaveras. Sorria secretamente sempre que uma criança roubava uma das
suas maçãs, que já há alguns anos eram enrugadas e pequenas. As pessoas
continuavam a passar apressadamente, tratando da sua vida. Já ninguém
ligava às duas árvores. Contudo, de vez em quando, alguém parava e
contemplava-as com satisfação.
Numa
tarde de outono, a árvore sentiu inesperadamente o toque familiar de
uma mão. O velho Humberto caminhara silenciosamente até ela e
murmurara-lhe qualquer coisa. A árvore acenara em resposta. Também
tinha sentido. O ar cheirava a neve. O inverno estava à porta. Era
tempo de repousar. Enquanto os primeiros flocos de neve dançavam na
janela e Humberto estava deitado na cama, a árvore, lá fora, também
adormeceu. E assim, dormindo sossegados, ambos sonhavam com a
primavera.
Bruno Hächler
Humberto e a Macieira
Porto, Ambar, 2000
quarta-feira, 18 de julho de 2012
"Sabes quanto vales?"
É constrangedor o que se está a passar em muitas escolas com a redução do pessoal docente. Julgo não errar se disser que são dezenas, por estabelecimento de ensino público, que deixam de ter lugar.
Vão sendo conhecidos casos de professores na casa dos quarenta-cinquenta anos que, de repente, se veem obrigados a concorrer para outras escolas. O que lhes é dito é que em caso de não haver vaga, regressarão à escola para outro tipo de trabalhos. O ministro diz que todos terão lugar, o que não diz é até quando.
Apesar de o mês de setembro já estar próximo, não se sabe que trabalhos vão executar os professores que ficarem com o horário zero. Pesa também o receio de, mais tarde ou mais cedo, o lugar poder ser extinto.
Claro que tal acontece em qualquer área profissional e a contenção de custos parece ser uma necessidade à qual não se pode fugir.
Para se poupar dinheiro, criam-se mega-agrupamentos de escolas, aumenta-se o número de alunos por turma, reduzindo-se os horários. No entanto, quase ao lado de muitas escolas públicas, existem estabelecimentos de ensino privados que são subsidiados pelo estado.
Essas escolas privadas selecionam os alunos e, mesmo assim, recebem dinheiros públicos.
Essas escolas privadas selecionam os alunos e, mesmo assim, recebem dinheiros públicos.
Então não há dinheiro para umas coisas e há para outras?
Para além destes factos, o critério de afastamento dos professores assenta apenas na sua graduação. A qualidade do trabalho realizado ao longo dos anos de nada parece valer.
Esta situação faz-me lembrar um programa televisivo brasileiro em que se repetia:
- "Sabes quanto vales"?
- "Vales zero"!
As novas gerações vão interrogar-se se vale a pena participar ativamente do Projeto Educativo de escola e do Plano de Atividades.
Já que valem zero, têm mais que fazer.
terça-feira, 17 de julho de 2012
Que calor!
Seurat
Os últimos dias têm sido de muito calor. Não só durante o dia, mas também à noite.
Que calor! - É a expressão repetida.
E recordo os tempos de infância, ouvindo que não se devia dizer mal do tempo. O tempo era de aceitação e resignação.
Será diferente agora?
Queixamo-nos do calor, mas, se encontrarmos uma sombra, logo esquecemos a canícula.
Está calor. De repente, pode dar lugar ao frio. Também de bastante resignação.
Felizmente (ainda) podemos dizê-lo.
segunda-feira, 16 de julho de 2012
Sozinha na sala
A sala estava vazia. A porta, pesadíssima, fechou-se e eu sentei-me. Como coadjuvante, peguei na prova de exame, li os textos e comecei a responder às questões. Tal como os alunos do 12º ano que estavam nas diferentes salas da escola.
O texto principal era retirado do livro Memorial do Convento de José Saramago e, no excerto, lá estavam as relações entre homem e mulher, entre pais e filhos; os malefícios da guerra...
Outro texto abordava o "esvaziamento de palavras" como honra, fé, verdade, razão...
Até onde nos levará este vazio de tantos sentidos?
Na composição, os alunos tinham de apresentar uma reflexão sobre os papéis do homem e da mulher nos dias de hoje.
Imaginei que surgiriam bastantes banalidades, mas também argumentos e exemplos de quem está atento ao mundo e à importância de todos na construção da sociedade.
Pela janela, via as pessoas a entrarem no edifício escolar. Algumas delas a lecionar na escola. Nos seus ouvidos, ainda soaria o anúncio de que tinham de concorrer para outras escolas porque provavelmente não haveria vaga.
O aumento de alunos por turma iria reduzir o número de turmas e, por consequência, o número de horários.
Alguns professores falavam de um murro no estômago: depois de tanto tempo na escola, ter agora de sair?
E vinham à memória atividades realizadas por muitos desses docentes, que pareciam de nada valer, no momento da fria contagem de alunos e professores para encaixarem no menor número de horários para, assim, reduzir custos.
E vinham à memória atividades realizadas por muitos desses docentes, que pareciam de nada valer, no momento da fria contagem de alunos e professores para encaixarem no menor número de horários para, assim, reduzir custos.
E já tinha havido lágrimas, porque o concurso, a procura de vagas, o horário zero poderiam ser o prenúncio do fim precipitado de uma carreira.
E eu continuava sozinha na sala, agora já com o exame resolvido. Poderia ser necessária enquanto durasse a resolução da prova.
Uma amálgama de pensamentos, de sensações.
E, mais uma vez, pensei que, para além da maravilha que é aprender e ensinar, há muitos momentos em que cada pessoa se sente ou está sozinha na(s) sala(s).
domingo, 15 de julho de 2012
Um coche especial
Imagem da net
A mãe da menina era desenhadora de moda para
crianças e teve uma ideia especial. Porque a filha também era especial. Mas não era
só por ser sua filha, embora os nossos filhos sejam sempre especiais.
A menina era especial porque não
andava, não falava, apesar de já ter cinco anos. Também era especial porque era amada como muitas
princesas não são amadas. E por tudo o que os pais nela descobriam e era motivo de redobrado amor.
Quando a menina nasceu, perante o conhecimento dos pais acerca do problema que a tornaria uma menina cada vez mais especial, a mãe
decidiu ficar em casa para cuidar dela. Embora custasse entendê-lo e aceitá-lo, a menina seria dependente de outrem durante toda a sua vida; nunca seria capaz de ser autónoma e satisfazer as suas necessidades básicas.
A mãe da menina especial sempre tinha amado a
sua profissão, mas a filha precisava dela a tempo
inteiro. A opção foi deixar o trabalho fora de casa.
Continuou, porém, em casa, a desenhar e a
executar alguns modelos. E chegou a festa do Halloween.
Para além das roupas para a filha, a mãe
desenhou e executou um coche que encaixava na cadeirinha de rodas. Lá dentro, a menina especial parecia uma princesinha também especial.
A menina, no seu belo e claro coche, parecia feliz. Nesse dia, a ideia especial ajudou a que tudo corresse sobre rodas.
A menina, no seu coche, também especial, parecia uma linda princesa de Era uma vez...
A menina, no seu coche, também especial, parecia uma linda princesa de Era uma vez...
Imagem da net
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