domingo, 13 de agosto de 2023

Praça da Liberdade

 

Eram duas as tias. No verão, alugavam uma casa na Foz e iam uns dias para a praia. Diziam que o sol e o iodo lhes faziam bem e assim passavam melhor o inverno.

Como não usavam fato de banho, uma delas, a que tinha mais jeito para a costura, fazia, antes das férias, saias mais claras e frescas para si e para a irmã. As blusas eram as que usavam habitualmente, de popeline e de manga curta. As saias eram abaixo do joelho e com umas rachas de lado, que eram cosidas quando o outono começava a dar sinais.

Duas das sobrinhas foram um dia visitá-las. Vão ficar contentes, pensavam. E vão contar coisas engraçadas. É verão e a Foz não é a nossa aldeia. Para além disto, havia o mar que sempre as fascinava e que raramente viam tão perto. 

Saíram de manhã cedo de casa, foram de elétrico até ao Bolhão e apanharam outro elétrico até à Foz. Chegaram, contentes, quando o areal era ainda um pequenino e fresco deserto.

Como sabiam que as tias tinham o seu ritmo e não gostavam de surpresas nem correrias, as sobrinhas esperaram por elas no murinho próximo entre a rua e a praia. Nesses entretantos, viram muitas mulheres a tomar banho em combinação, sob o olhar cuidador do velho banheiro, agarradas a uma longa e grossa corda para aguentarem as ondas contra o corpo que não queriam destapar, mas cujos relevos a água acentuava.

Como as tias diziam que o ar do mar abre o apetite e para não dar despesa, as sobrinhas compraram pão fresco e bananas, que foram saboreando sentadas no murinho enquanto esperavam. O tempo não era de avisos prévios como é atualmente, porque nem toda a gente tinha telefone e do telemóvel nem sequer se falava.

Em breve, as tias apareceram, mas o encontro não foi efusivo como as sobrinhas esperavam, com alguma indiferença até. Como se não lhes agradasse a certa alteração dos seus rituais. Ainda assim, perguntaram se as sobrinhas queriam almoçar. Uma delas subiu de novo à casinha alugada para avisar a senhoria, que também fazia as refeições, para pôr mais dois pratos na mesa.

Sem mais delongas, desceram todas à praia e dirigiram-se à barraca de riscas azuis. As tias sentaram-se nas cadeirinhas pequenas também pintadas de azul e as sobrinhas na manta que ficava de noite num saco, com muitos outros sacos, à guarda do banheiro.

Entre palavras curtas, uma das tias tirou de uma cesta uma toalha de linho que andava a bordar, a outra começou a alinhavar umas peças de roupa e nem olharam quando se ouvia, bem próximo, o pregão: Olha a língua da sogra!

Depois do almoço, as tias foram descansar um pouco e as sobrinhas vieram cá para fora olhar mais longamente o mar. Falavam baixinho para não perturbar a sesta no quarto que era logo ali. 

Mais brando o calor, voltaram todas à praia até uma das tias dizer que estava cansada, dobrando o trabalho que tinha entre mãos. Levantaram-se, penduraram as cadeirinhas nos cabides das barracas, saíram da praia devagar sem grandes mimos nem conversas. E para mais as pernas e as costas já doíam e o jantar já devia estar quase pronto.

A frase mais comprida que as sobrinhas então ouviram foi: quando quiserem, apareçam.

Depois da despedida um tanto apressada, porque as tias sempre gostavam de comer cedo e à hora certa, as sobrinhas regressaram, não sem antes comprarem pão que comeram com as bananas sobrantes, já um pouco moles. 

Já na paragem, sorriram quando, ao longe, viram aparecer o elétrico onde à frente se lia: Praça da Liberdade.

 

sábado, 12 de agosto de 2023

A praia

 

A família chegou e montou a tenda de campismo, que sempre usava nos domingos de verão passados na mata junto à ria. 

Naquele tempo - em que o avô ia de fato, gravata e chapéu - não se ouvia falar de grandes incêndios.

Também não faziam fogueiras porque levavam comida para todo o dia. E nunca faltava a panela de pressão sempre cheia. Nem sei se o feijão era acompanhamento ou o prato principal.

Depois de almoço, dava quebreira que a sombra das árvores altas refrescava, mas não abrandava. E quase ninguém resistia a uma sesta. Aqui e ali um ressonar. Não ficava cadeira vazia, sobretudo as de encosto.

Uma adolescente - a mais jovem da família - ia pela primeira vez acompanhada pelo namorado.

Sentados lado a lado, olhavam à sua volta. Eram os únicos não tomados pelo sono. Podiam ir passear pela estrada fora, mas o calor era muito. Podiam atravessar a rua e estender-se na curta areia da ria, mas estaria muito quente e não poderiam tomar banho.

- E se fôssemos à praia? Há passagem aqui ao lado.

- É difícil. Há muitos arbustos que picam, outros arranham de tão secos.

- Vamos tentar. Somos magros e resistentes.

- A praia é grande, bonita e não há quase ninguém.

- Pode ser perigoso. Não é vigiada.

- Estaremos sós como numa ilha deserta. Valemo-nos um ao outro.

Olharam de novo a família. Toda a gente dormia. Apenas o pai se mexia por causa de uma mosca que lhe passeava no rosto.

Com ternura e força, deram a mão e entraram nos arbustos densos que os separavam da praia de areia larga, clara e limpa.

Aonde entraram maravilhados, sem pressas nem tormentos. E onde se deitaram ouvindo só o som do mar. E os sentidos que a livre maresia atiçava.

Quando regressaram ao 'acampamento' já todos estavam acordados e alguns jogavam à bola. A mãe, preocupada, olhava em todas as direções.

Duas cadeiras, bem juntas, estavam vazias. Sentaram-se e, passados apenas alguns instantes, adormeceram.

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Na esplanada

 

Éramos três. Amigas de longuíssima data. Sentadas numa esplanada em frente a uma estação de comboios, um lugar sempre mágico pelas partidas e chegadas. Pelos sonhos e realidades. Pelo ruído das malas que guardam ou guardaram momentos embelezados pelo prazer e esperança.

Com um café sobre a mesa, e, apesar de não haver cerejas, a conversa foi como elas. Maduras ou não. E longa.

E tomou o caminho dos amores da adolescência. A aproximação aconchegada no lugar na camioneta de e para o Porto. E o tocar tímido da mão rua fora. E o pedido de namoro. E o encontro sem dizer nada à mãe. E as palavras que aqueciam ou arrefeciam o momento. Tanta coisa.

Fomos ficando, recordando, rindo. O sol já esquentava, indiferente ao calor juvenil de histórias antigas.

Quando nos despedimos, desejámos boas férias, não sem antes combinarmos outro encontro noutra esplanada aberta ao sol de verão.

Não sei que temas virão à baila, mas assim tem mais piada, como tiveram hoje recordações juvenis que deram um calor risonho a uma manhã bonita de verão.

 

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Ó dona!

 

A minha irmã chamava-se Leonor e muitas vezes sou confundida com ela, o que será natural, porque tínhamos idades muito aproximadas e muitas semelhanças físicas. O mais estranho é que às vezes me chamam Leonor, mesmo pessoas que não a conheceram.

Há umas semanas, chamaram-me dona Manuela, depois compreendi porquê: há outra pessoa na família com esse nome. Para dona Olga, como também me chamaram há dias, é que não encontrei explicação. Achei graça e passei à frente. 

Já dona Dores, como acontece com frequência, aproxima-se mais e leva-me até a sorrir e a brincar com o nome que os meus pais e talvez padrinhos preferiram pôr-me traduzido e que, quando eu era menina e moça, de cabelo forte e preto e brincos de argolas, levava a que me perguntassem se eu era espanhola.

Ora, a confusão de nomes não me faz confusão. Às vezes é até divertido e não me faz perder a identidade. Do que não gosto mesmo nada é quando me chamam ó dona, como é hábito de algumas pessoas. Uma vez, um ex-vizinho dirigiu-se-me ó dona, a propósito de um assunto qualquer que tinha a ver com o quintal. Eu respondi-lhe, pondo a palavra no masculino e ele levou a mal!!!

Pronto, nesta tarde em que o meu computador marca 26 graus, mas no Sul e noutros países marcaria bem mais, lembrei-me deste fait divers, mas as altas temperaturas não o são, marcando que, afinal, somos donas e donos de muito pouco. E isso é um assunto cada vez mais sério.

 

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Jornada de juventude

 

Na minha infância, a minha mãe pertencia à Lac - Liga agrária católica - e muito cedo nos inscreveu, a mim e à minha irmã, na Pré-Jac e, depois, na Jac - juventude agrária católica (É curioso que ao meu irmão a minha mãe nunca filiou)! 

Tínhamos reuniões mensais no Salão Paroquial, ao domingo antes da missa e às vezes à tarde, dinamizadas pela presidente, que era eleita democraticamente por todas nós. A que mais me ficou na memória foi uma rapariga das poucas que seguiram os estudos e que era muito alegre e empenhada.

Teve a coragem de se opor às ideias de um padre, que considerava retrógrado. Parte do grupo seguiu-a, outra parte não e o 'cisma' motivou algumas desistências, como foi o meu caso. Não me recordo do que a levou a estar contra o padre, mas tenho pena de não ter tido a mesma coragem. A minha desistência, se calhar, foi o caminho mais fácil, mas foi o que aconteceu. É a vida. Faltavam ainda muitos anos para se ouvir o Papa repetir: 'Não tenhas medo! Não tenhas medo!'.

Recordo-me de outra presidente, uma rapariga muito convicta e muito doce e que hoje continua a ser uma mulher que muito admiro. Recordo-me de, numa atividade, ter sugerido que vendássemos os olhos por uns instantes para sentirmos o que é não ver. 

A vida foi-lhe muito dura, roubando-lhe os seres que ela, naturalmente, mais amava, mas continua com o seu sorriso bonito, generoso e brando. E a interessar-se pelos outros. Há tempos, ouvi-a dizer que, pelo menos ao fim de semana ia tomar café onde sabia que encontrava pessoas conhecidas. Um dia, ouviu que o café de casa era bem melhor e ela logo respondeu: é bom o café tomado, mas é melhor quando é falado.

No tempo em que eu pertencia à ação católica, fazíamos reflexões interessantes, como, por exemplo, sobre problemas do mundo, ainda que geograficamente distantes, já numa perspetiva global e solidária. Hoje, nem sei se existem a Jac, a Jec, a Joc, a Juc... Atualmente, tais divisões - de género, de ocupação, etc. - não fazem qualquer sentido. Felizmente.

De outras presidentes não me recordo. Não devem ter feito nada de relevante, no meu entender, ou então, eu não estava devidamente atenta.

Tudo isto me veio à cabeça quando, perto do mar, ia acompanhando, de vez em quando, aquele alegre mar de jovens na JMJ. 

Voltando à filiação na Jac, na minha juventude, não dou por perdido esse tempo e algumas coisas me ficaram. 

Ah, também havia festas anuais com teatro, danças, etc. Dessas não me ficaram as recordações que eu desejaria. Os irmãos - rapazes - tinham liberdade maior. Isso, é claro, também me ficou.

 

quarta-feira, 26 de julho de 2023

A avó que queria parar o tempo

 

Raramente abria os álbuns, em papel de fotografia, que, durante anos, foi organizando. Com datas, legendas e tudo.

Não o fazia porque lhe faz impressão a velocidade da passagem do tempo. E as diferenças a que ninguém escapa. 

Olha, tão jovem. E magra. E bonita até. E o cabelo tão forte e lindo. E todos vivos. E alegres.

Com o digital, as fotos foram ficando no telemóvel. Ia apagando algumas, de outras gostava muito e guardava-as. No momento, olhava-as e voltava a olhá-las. Dos netos sobretudo.

Passados uns meses, já havia diferenças. Hoje eram bebés, no dia seguinte brincavam ou corriam.

Hoje as carinhas eram redondinhas, umas maçãzinhas. Pouco tempo depois, maçãzinhas adelgaçadas porque mais crescidas.

E as fotos guardadas iam-lhe aparecendo com frequência, mesmo sem as procurar.

O tempo, avassalador, não dava tréguas. Era bom ver os netos a crescer, lindos e saudáveis - uma bênção -  mas assustava de tão veloz.

Não queria que o tempo parasse, mas, por magia ou fosse lá pelo que fosse, gostava que abrandasse de vez em quando, que sossegasse.

Sabia que exagerava na sua pretensão de querer parar o tempo por um tempo, o que não reduzia, porém, essa vontade.

Sobretudo quando lhe apareciam fotos com tantas diferenças, apesar de o tempo entre elas ser escasso.

Sabia que quase nada dominava e, em absoluto, o tempo, tal como toda a gente.

Mas, mesmo assim, era uma avó que gostava, de vez em quando, de parar o tempo. O seu, esse, podia continuar assim.

 

sexta-feira, 21 de julho de 2023

O valor da Educação. Deles e de toda a gente.

 

Já tenho dito várias vezes aqui que gosto de ouvir podcasts, sempre que posso. É um modo de conhecer melhor pessoas e temas, contactar com diferentes visões do mundo e formar melhor a opinião.

Recentemente, ouvi dois episódios do podcast 'Geração 70', dinamizado por Bernardo Ferrão, jornalista da SIC, nascido nos anos setenta, tal como os seus convidados.
Nos  dois episódios que ouvi, foram entrevistados Marisa Matias, do BE, e Henrique Raposo, colunista do Expresso.
Apesar de naturais diferenças, como as ideológicas, houve pelo menos um traço de união: ambos nasceram e viveram na pobreza durante a infância e ambos tiveram pais que os estimularam a prosseguir estudos.
Embora cada uma das duas famílias vivesse com muito poucos recursos, ela numa pequena aldeia de Coimbra; ele num bairro operário da grande Lisboa, querer que os filhos tivessem um futuro melhor foi projeto de que os pais nunca desistiram, apesar das dificuldades financeiras.
Embora não tivessem estudado, os pais dos dois entrevistados sabiam do valor primordial da Educação na vida humana e não abriram mão desse direito para os seus filhos.
Assim, não se limitaram a querer que colaborassem na sobrevivência da família, mas  apostaram na capacidade dos filhos para singrar na vida pela  Educação e estudos.
Achei fantásticas as narrativas, com verdade e sem rodeios. 
Os dois entrevistados poderão ter sido atingidos por um golpe de sorte, mas o mérito de serem figuras conhecidas pelo seu trabalho intelectual e  útil à comunidade/humanidade reafirma o poder da Educação. 
Excelente recompensa também para os pais pela obra humana que ajudaram a construir. Tantas vezes com sacrifícios mas sempre com atenção e amor.


quinta-feira, 20 de julho de 2023

Há rios e rios!

 

Li recentemente o romance de Isabel Rio Novo Rio do Esquecimento, obra finalista do Prémio Leya 2015.Na capa, leem-se palavras elogiosas de Mário Cláudio e, na contracapa, de Nuno Júdice. A história passa-se no Porto, no século XIX, sendo descritas ruas miseráveis ou burguesas; casas pobres ou abastadas, estas por grandes riquezas trazidas do Brasil.As doenças da época, as transformações arquitetónicas e sociais da cidade também entram neste Rio de muitas lembranças e esquecimentos, em que várias famílias se encontram e desencontram. Na história, não falta o homem belo e sedutor, raparigas  pobres e as que detêm fortuna, mulheres sibilinas e ardilosas, paixões, ambições, vinganças, traições... 

Para além de uma escrita robusta, são apresentados factos e, depois, retomados sendo justificados comportamentos e sentimentos. 

É uma narrativa com notória influência de Agustina Bessa Luís ou Camilo Castelo Branco. Os diálogos, que sempre ajudam a avançar a história, são quase inexistentes, mas a história (158 páginas) prende o leitor.

Gostei do entrelaçar das diferentes ações mas, sobretudo, do que se aprende com o livro, nomeadamente sobre o Porto de meados do século XIX. Também da  evocação de rios, uns metafóricos, outros reais, que o tempo conserva bem vivos e outros que vão caindo no esquecimento. 

 


 Isabel Rio Novo nasceu no Porto em 1972 e já tem uma vasta obra publicada.

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Num hospital de Londres

 

Como era dia de anos, um grupo do setor apareceu a cantar e com um miminho!

 

Ontem, num comentário, o JR perguntava-me se eu tinha sido bem tratada no hospital em Londres, aonde tive de ir de urgência, numa curta estadia na cidade.

Só posso dizer bem do modo com fui atendida e tratada. O hospital - UCL Hospital - é público e ainda recente.

Imagem da net

Esperei nem meia hora até chegar a minha vez, fui observada e logo submetida a exames de preparação para uma (pequena) cirurgia no mesmo dia.

Achei muito bons os profissionais. E simpáticos, o que também é muito importante, nestas circunstâncias. 

Pelos vistos, nesse hospital trabalham muitos portugueses. Só vi um, julgo que ajudante de enfermagem, - muito bem disposto e que era do Norte, tal como eu.

Passei dois dias no internamento, dos dez que tinha previsto passar em Londres com a família. O consolo de bastantes mimos ajudaram a parecer menor o azar! E a encontrar uma luzinhas boas e carinhosas.

 

Ah, muito importante: se viajarem, confirmem se o cartão europeu de saúde está atualizado. O meu, infelizmente, estava caducado. 

Posteriormente, por conselho do hospital, pedi um cartão de substituição provisório à nossa Segurança Social e, passadas algumas horas, já o tinha por e-mail. 

Não sei é se vai ser aceite pelo SNS. Se não for, terei de pagar as despesas do hospital.

 

Outra nota que também acho importante.

Em Londres, a ambulância só vai de imediato buscar os doentes em casos urgentíssimos como  AVC ou problemas cardíacos. Se o doente estiver consciente, demora para cima de uma hora, tendo de se encontrar outra opção.

 




terça-feira, 18 de julho de 2023

O rapaz das lágrimas

 

Já no aeroporto de Gatwick, cheguei à fila da TAP para regressar ao Porto. Do outro lado da fita separadora, vejo um jovem triste lendo e escrevendo no telemóvel. Parecia estar a receber uma má notícia. Cerrando os lábios, os olhos enchem-se de lágrimas, que tenta conter e disfarçar, limpando-as com gestos rápidos.  

Fito-o, mas logo desvio o olhar. Estou a ser indiscreta, penso para mim. Não resisto e volto a fixá-lo. Apetece-me sorrir-lhe para lhe mostrar solidariedade. 

Deixa-o em paz, Maria, não és a Madre Teresa de Calcutá. Ele prefere passar despercebido, continuo a dizer para mim.
Reparo que ele repara que o observo e desvia o olhar.
Mais uns passos e deixo de poder olhá-lo de frente pelo evoluir da fila.
Deve ter ficado aliviado, continuam a dizer-me os meus botões.
 
Já no avião, vejo o rapaz das lágrimas a entrar. E mais surpresa fiquei quando se sentou  precisamente a meu lado - ele do lado da janela, eu no lugar do meio.
Que coincidência, pensei eu.
Já de cinto apertado, ousei perguntar-lhe:
- Are you ok? 
Sorriu, respondeu que sim e acrescentou que ‘a friend’ tinha mudado de cidade. 
Sorri-lhe. 
 
Passado algum tempo, já no ar, ele dormia a bom dormir com o rosto apoiado na camisola que encostou à janela, por onde eu via o céu azul-avermelhado de fim de dia.
Como o assento do lado do corredor estava vazio, mudei-me para lá. 
Assim, ele tinha mais espaço para esticar as pernas compridas e, mais confortavelmente, continuar a dormir. E, só ele sabe, talvez a sonhar.


segunda-feira, 17 de julho de 2023

Manhã de 6ª f. passada

 
A manhã vai a meio,
a chuva continuada faz-se ouvir na vidraça
e também de vez em quando um avião
que segue em linha para Heathrow.
Sobre a mesa,
a caneca com café quente 
e o pratinho de panquecas 
de farinha de grão de bico,
gostosas e cheirosas,
oferecidas pela vizinha judia.
Também o livro com marcador 
no meio da história 
e um croissant num saquinho para
quando a menina chegar da escola.
Como é 6a f, ela sai às três da tarde.
Quando chegar a casa,
tirará o capacete cor de rosa 
que sempre usa
quando vai e vem de scooter,
percorrendo o parque, onde rosas e mais rosas se abrem,
e logo depois a rua comprida e multicultural,
onde há lojas e mais lojas
de todos os alfabetos e origens,
de todas as utilidades,
de muitas inutilidades,
de sabores, cheiros e odores.
 
Um sem abrigo vive o dia numa esquina,
olhando sempre para ambos os lados,
como à espera de um godot qualquer.
Depois de levar a filha à escola, 
e para ganhar tempo,
porque poucas horas depois
são horas de ir buscá-la,
a mãe acelera o trabalho no computador;
a avó respira o sossego da casa,
olhando as árvores quietas lá fora,
por onde passa uma chuva miúda,
deixando gotas em suspenso,
e pergunta-se se merece
esta calma alegria,
sentindo em si 
pingar pingos frios
de persistentes culpabilidades antigas,
que vai tentando abandonar 
por caminhos dos dias.
E os dias agora vividos
são de menos mobilidade
pela operação urgente
ao apêndice,
um dia depois da chegada a Londres;
sem poder entrar mais na cidade
que também aprendeu a amar,
talvez por lá viver uma das duas mais belas partes
que nasceram de si.
Ah! E a orquídea da casa,
com as raízes antigas em vaso/baldinho que já brincou na praia,
continua, no seu silêncio tranquilo, a florir.
 

 

quarta-feira, 12 de julho de 2023

O jardim

 
Ainda um pouco insegura pela operação recente, ela saiu de casa e foi caminhar um pouco na rua, bastante sossegada. O sol aparecia de vez em quando e uma brisa ligeira fazia dançar e tilintar as folhas das velhas e altas árvores.
Olhar para o jardim mais simples e bonito da rua - de tão florido e tão bem tratado - era o seu alvo. Por causa do internamento, ja lá não passava há dias.
O passeio era largo e plano. Mais um motivo para seguir até ao jardim das cores encantadas, como lhe chamava, e onde viviam rosas, hortênsias, sardinheiras, lavanda e outras incontáveis variedades,
Quando lá chegou, deparou com uma pequena placa bem visível:
‘Quem levou as minhas plantas gostava que lhe fizessem o mesmo?’
Cumprido que estava o objetivo, deu a volta e regressou a casa a pensar nas plantas roubadas.. Onde morariam agora?
Teriam, como os animais, saudades dos afagos e bons cuidados da dona? 
E de quem passava e as olhava com afeto - fosse de passo seguro ou fragilizado?.



segunda-feira, 3 de julho de 2023

À espera de vez no hospital

 

- Parece ter saúde.

- Graças a Deus. E vou fazer setenta anos.

- Mas toma medicamentos, com certeza.

- Uuuuui! Muitos, mas nada de especial, a não ser um que tenho de tomar.

- A gente toma todos os medicamentos porque tem de tomar.

- Uns mais do que outros. Falo de um que tomo para a ansiedade, mas não é por mim.

- Então?

- É por causa do meu neto.

- O rapaz é difícil?

- Uuuuui! Eu digo neto, mas até me custa dizer porque para ser avô de um neto assim, eu preferia não ser.

- Imagino o seu problema. 

- Não imagina, não, só quem sabe ou passa por elas.

Adeus e muita saúde. Já vou à minha vida. A minha mulher vem aí da consulta e se me ouve a falar disto, diz-me logo que eu não devo falar destas coisas. 

Agora diga-me se sou ou não sou obrigado a tomar o remédio da ansiedade!

 

sábado, 1 de julho de 2023

Momentos refrescantes também pelas dúvidas

 

O carro em movimento marca 30 graus. Muito calor. Sei, porém, que 30 graus noutros locais seria temperatura quase amena. 

Estrada fora, oiço, interessada, o podcast 'Fala com ela', com o padre Anselmo Borges. Agrada-me o discurso do entrevistado: que inclui questionamentos e dúvidas. Diz crer em Deus, mas sabe que há razões para crer e razões para não crer. Gostei da sua inteligente abertura ao mundo e ao pensamento do outro. E do seu espírito crítico: põe em causa, por exemplo, o interesse das Jornadas Mundiais da Juventude que, diz, para muitos terão mais interesse turístico do que religioso.

Chego a casa pelas 4 h. Como hoje é sábado, ligo o rádio na antena 2; sou fã do programa 'A força das coisas'.

Entre músicas que sossegam e refrescam a tarde, como de Schubert, ouvem-se poemas da Prémio Nobel da Literatura  de 1996, a polaca Wislawa Szymborska, ditos por ela própria e também traduzidos em português.

Não conhecia. Vou à net e encontro o poema que aqui partilho. E que me incentivou a procurar outros textos desta poeta cujo centenário de nascimento é este ano celebrado.

Releio o poema 'A vida na hora', onde não faltam dúvidas nesta  'cena sem ensaio', como é a maior parte dos nossos dias. Como este sábado quente com momentos refrescantes, também pelas dúvidas. Felizmente.

Bom Fim de Semana!


A vida na hora

A vida na hora.
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.

Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.

De que trata a peça
devo adivinhar já em cena.

Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humilhante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.

Não dá para retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como o casaco às pressas abotoado
eis os efeitos deploráveis desta urgência.

Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes
ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não
conheço.
Isso é justo — pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).

É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.
E o que quer que eu faça
vai-se transformar para sempre naquilo que fiz.

 

Wisława Szymborska, Poemas

Wisława Szymborska - Biography | Artist | Culture.pl 

sexta-feira, 30 de junho de 2023

Desperdiçamos até o sol

 

Fiz análises clínicas e a vitamina D está muito abaixo do que devia estar. E podia estar. Porque, felizmente, no nosso país temos sol em abundância. Porque, felizmente, tenho espaço exterior onde posso circular. Porque, felizmente, onde vivo é quase aldeia (se é que se pode dizer assim) e tenho passeios onde posso caminhar, apesar de nem sempre estarem nas melhores condições. 

Em casa, já levei um 'sermão': tens de caminhar mais e apanhar mais sol.

E, desta vez, fiquei com vontade de me disciplinar um pouco mais, caminhar e apanhar sol, embora moderadamente porque, na pele que me cobre, sou mulher do sul, apesar de, por nascimento, ser mulher do norte.

Tenho de sair mais da famigerada zona de conforto que é a minha casa.

Para começar, como hoje não tenho o neto, vou lá fora varrer folhas caídas pelo vento. E apanhar ameixas. E tirar algumas ervas às plantas, etc.

E fazer festas à Castanha. Também a meiguice dela tenho de aprender a não desperdiçar.

Um dia bem vitaminado para todos.

 

terça-feira, 27 de junho de 2023

Coração e avenca

 

As duas plantas viviam lado a lado. Há algum tempo. Pela fresca, bebiam a água que lhe davam do regador já antigo, que parecia já saber como regar: no pé da planta e devagar.

Quis a natureza - ou Deus, não sei - que as duas plantas tivessem formas diferentes e buscassem espaços também diversos.

A planta dos corações reproduzia-se na vertical buscando a terra; a avenca elevava-se no ar, e para os lados, como ancas de mulher.

E assim viviam, cumprindo, à sua maneira, a função de verdejar a prateleira onde moravam.

Um dia - por acaso, hoje - foram encontrados a abraçarem-se. O coração - vamos chamar-lhe assim porque não lhe conheço o nome - que reproduzia novos corações na vertical, tinha estendido um dos seus braços à avenca vizinha. Pareciam felizes no momento.

E quem regava as plantas desejou parar o vento para que ele não as separasse. 

 

domingo, 25 de junho de 2023

Por dentro da vidraça

 

O calor era muito dentro de casa. Tornava-se insuportável.

O estreito corredor entre a porta de casa e o passeio da rua tinha sombra, mas o ar quente parecia agarrado às duas paredes.  Optou por sair. Abriu o portão e conseguiu passar, mesmo sem a ajuda da mulher. Cá fora, e respirando ar mais fresco, pôs o encosto da cadeira para trás e os pés mais altos.

Sentia o alívio de respirar melhor e não transpirar tanto como dentro de casa. Ficou ali um bom bocado, de cabeça levantada como se apenas o céu lhe interessasse.

Um menino estava com a avó por dentro da vidraça da casa em frente. Quando foram para dentro, o menino disse adeus ao nhô nhô, que, para ele, queria dizer senhor.  Não respondeu ao aceno porque o olhar dele não estava nessa direção. Ou talvez dormitasse, aproveitando o consolo da brisa mais fresca.

O menino voltou a dizer adeus por dentro da vidraça.

A avó voltou a pensar naquele homem grande e bonito, prisioneiro de uma cadeira de rodas. Que pena ter tido o acidente. E também saber que lhe chamam o aleijadinho.

 

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Ó meu rico S. João...

 

Ó meu rico S. João

Peço-te neste calor

Que refresques o ambiente

Nele pondo mais amor

E vem feliz se puderes

Sem mentira mas verdade

Queremos é bons exemplos

Sem blá blá nem falsidade

Dá ânimo a quem não tem

P’rà vida a todos sorrir

Sem ver tantos a chorar

Ou a terem de partir

Hoje não irei ao Porto 

Pra te ver a festejar

Mas comprei um manjerico

Para a casa perfumar!

domingo, 11 de junho de 2023

A oficina e o café

 

Nas manhãs de vários sábados, chegávamos à mesma hora ao café que fica bem perto de algumas de nós.

No início, era só uma, depois duas e, em breve, já éramos quatro ou cinco amigas, à mesa porque a mestra se nos juntou também. Era um gostoso aquecimento para umas horas a cortar, combinar, coser tecidos, vendo aparecer um objeto bonito e nosso.

Eram divertidas e criativas essas manhãs de sábado na oficina de costura. Escolhíamos os tecidos e, sempre com a ajuda da mestra - mais nova do que nós -, fizemos chapéus, sacos de várias formas, capas para caderno ou álbum, etc, etc, etc.

Com a sua peça acabada, cada uma de nós sentia a alegria de a ter produzido. Ou quase, melhor dizendo, porque a mestra lá acertava o corte e a cosedura, se o desacerto era grande.

Ontem foi a despedida dessas manhãs de sábado tão costurado como animado.

A mestra, que era uma boa mestra e também muito gentil, ofereceu-nos, nesta última sessão, pedaços de tecidos para continuarmos a fazer os nossos trabalhos em casa. Vistosos mimos a saírem de uma caixa de retalhos dobrados, desdobrando já novas ideias.

No próximo sábado, talvez a senhora do café repare na nossa ausência porque, desde o primeiro dia, ocupávamos sempre a mesma mesa. Ou talvez não, porque os cafés e pingos e meias de leite e galões e torradas e pães com queijo são peças que vai servindo todas as manhãs com pouco descanso. Sempre com um sorriso suave e natural. Também de mestra.

 

terça-feira, 6 de junho de 2023

MIMOS DE JUNHO - Antologia Poética 2023

 Reenvio o regulamento que também recebi. 

Que o mês de junho traga estes ou outros mimos.

 

"MIMOS DE JUNHO Antologia Poética 2023 A Mimos e Livros continua a celebrar a Poesia e quer comemorá-la consigo!  Vamos publicar nova Antologia Poética: MIMOS DE JUNHO.  Participe! Regulamento 1. O prazo de inscrição para participação na antologia MIMOS DE JUNHO e envio de textos decorre até 27 de junho de 2023. 2. Os textos devem ser enviados em suporte informático (tipo word) e remetidos para geral@mimoselivros.pt 3. Serão admitidos textos do género lírico (poemas e prosa poética). 4. Cada autor poderá participar apenas com um texto, que pode ocupar, no formato de poesia tradicional, até 30 linhas de verso (incluindo espaços de transição de estrofe e eventuais versos demasiadamente longos) ou, na prosa poética, um máximo de 1400 caracteres (espaços incluídos). 5. A ordem de publicação obedecerá a um critério a definir, posteriormente, pela organização. 6. Os autores podem utilizar pseudónimo, embora sejam obrigados a identificar-se e o seu nome ser incluído na breve biografia a constar do livro. 7. Os autores devem enviar uma curta nota biográfica, que será publicada, com um máximo de 500 caracteres, incluindo espaços. No caso de exceder o limite fixado, a organização reserva-se o direito de proceder às alterações que achar convenientes. 8. O tema dos textos é livre.  9. No caso de a organização entender que o número de participantes não é suficiente para a edição do livro, os textos serão publicados on.line no site da editora Lugar da Palavra, em www.lugardapalavra.pt e enviado um exemplar em formato pdf a todos os participantes. A organização é soberana na seleção dos textos a incluir na obra. 10. A organização e seleção dos textos para publicação pertencem à Mimos e Livros Edições, uma chancela da Lugar da Palavra Editora. Da decisão de seleção ou não do júri não haverá recurso. 11. Todos os textos serão alvo de revisão, com vista a apresentar um trabalho da maior qualidade possível, comprometendo-se, obviamente, a organização a nunca desvirtuar o original do autor. 12. Os participantes disponibilizam os seus textos exclusivamente para a presente publicação, sendo- lhes, obviamente reconhecido o seu direito de autor (pelo qual assumem essa responsabilidade), mas não serão pagos quaisquer direitos patrimoniais. Ou seja: o participante envia textos da sua autoria (se já publicados, com a respetiva autorização competente) e cede-os exclusivamente para o fim em questão, não resultando da sua publicação a obrigação da editora de pagamentos de direitos patrimoniais ao autor.13. Os participantes selecionados beneficiarão de vantagens na aquisição de Mimos de Fevereiro e obrigam-se a adquirir pelo menos um exemplar da obra. 14. A participação implica a aceitação de todos os termos do presente regulamento. 15. Será formado um Conselho Editorial, composto por três elementos, que terá por função pronunciar-se em relação à qualidade de alguns textos com vista à sua inclusão (ou não) na antologia. 16. Os casos omissos serão resolvidos pela organização." 

Voltei à cozinha

 

Passar dias e muitas horas com um neto de dois anos, não fazemos bem o que queremos nem temos algumas coisas no sítio onde queremos, embora a sua presença nos traga muitas e alegres recompensas.

Uma dessas coisas é o meu computador que gosto de usar na mesa da cozinha, mas que, com uma criança cheia de energia, não será o lugar mais conveniente. Por isso, ocupa habitualmente espaço mais quieto e menos frequentado.

Como esta semana tenho mais dias por minha conta, uma das coisas que voltou ao lugar, onde gosto de o encontrar, foi o meu computador. 

Assim, enquanto estou a cozinhar - hoje são favas do meu quintal - vou escrevendo. 

Deve cheirar bem na cozinha, mas não sei bem porque não recuperei o olfato que a pandemia ainda não me devolveu.

Porém, o computador na cozinha devolveu-me algum prazer. Embora também seja bom  voltar a levá-lo para onde estava, quando chegar o meu pequenino.

 

domingo, 4 de junho de 2023

Um domingo bom que passa devagar. Será?

 

O céu está enevoado e o domingo, calmo, por minha conta. Sem programa nem solicitações em final de semana, o que me sabe muito bem.

Tinha pensado ir cedo pela manhã à 'minha' cidade com o mar ao fundo, mas mudei de ideias. Ficaria em casa a organizar algumas coisas, o que me ajuda a arrumar também a mente e, finalmente, podia tirar as ervas daninhas de umas taças com catos. E regar as plantas que agora florescem dando aos canteiros um ar bem-vindo de beleza e de festa.

E vi que outras plantas precisam também de arranjo, que lhes amacie a terra para que a água não fique só à superfície ressequida. Será a próxima etapa. Talvez numa manhã ou fim de tarde em que não tenha pressa nem de olhar para o relógio muitas vezes.

Fiz o almoço e comi devagar. Talvez demasiado pão, mas não resisti à regueifa fresca que fui comprar à padaria. Ai saborosa tentação de domingo.

Durante o almoço, vi um programa de culinária, porque já me causa fastio o famigerado computador roubado ou desviado, o SIS que foi chamado e não se sabe ao certo por quem, etc

Agora, com a tarde a avançar, quero ler algumas páginas de um livro em que Fernando Pessoa é personagem. Poderei ler devagar porque a casa, silenciosa, chama e apetece.

Depois das cinco horas, joga o meu clube. Até à noite, poderei continuar a gerir calmamente o meu domingo, só que, durante o jogo, o tempo não passará tão tranquilo e devagar como até aqui. Não sei.´Prognósticos só no fim do jogo'!!!

Um belo e feliz domingo para todos! 

 


sábado, 3 de junho de 2023

Se eu pudesse recuar no tempo, não sei se queria voltar à infância

 

Felizmente há bastantes pessoas que falam da sua infância como um tempo feliz. Nesses casos de felicidade recordada, para além dos pais, quase sempre há um avô ou uma avó a amaciar os caminhos com amorosa candura.
Os meus avós maternos não os conheci. Morreram ainda novos, já com muitos cansaços e muitos filhos.
Os meus avós paternos, que tiveram também uma família numerosa, esses, felizmente, conheci-os. O meu avô era um homem grande e forte, muito ternurento, que alimentava as suas alegrias e histórias quotidianas vendo o futebol da terra e ouvindo bandas de música nas festas populares. Não falava muito da sua infância, mas tinha começado a trabalhar ainda menino.
A minha avó, porém, estava mais fechada ao amor e a meigas interações. O momento feliz do seu dia era quando ouvia o Tide, o folhetim da rádio. Esses momentos eram a hora do sonho e da vida a tornar-se leve. Ou o refúgio numa vida que gostava de viver mas que lhe fugia ou não tinha força de agarrar.
Enquanto eu ia crescendo, ia-me apercebendo de muitas pessoas à minha volta com muita inteligência, mas nas quais se pressentiam mágoas de não acederem à felicidade que conseguiriam atingir mais facilmente se tivessem, por exemplo, estudado ou sido apoiadas por figura boa e amaciadora dos seus caminhos.  
Como uma corrida de maratona que se deseja, mas para a qual não se tem apoio para treinar nem se arranja treinador.
Foram muitas pessoas de diferentes idades que fui conhecendo, dentro e fora da família, muitas delas a trabalhar desde crianças pequenas, e que se ressentiam, ao longo da vida, da falta de valorização e do roubo de direitos tão comum nessa época de enorme desamparo social.
Muitas dessas pessoas talvez gostassem de voltar à infância, mas por uma única e  complexa razão: com o que já sabem, poder viver um tempo mais feliz do que aquele que conheceram.