segunda-feira, 30 de julho de 2012

A rua da minha aldeia

Maria Keil

Hoje passei a pé na rua comprida da minha aldeia, que leva às minhas raízes.

A rua da minha aldeia, na minha infância, era movimentada. As luzes, à noite, estavam acesas e ouviam-se sempre vozes na rua e nas casas.

Durante o dia, as mães vinham à janela e chamavam pelos filhos: ó Toninho, ó Albaninho... que andavam sempre a brincar na rua. 
Maria Keil
As mães da rua da minha aldeia tinham expressão de sacrificadas, ralhavam muito com os filhos, queriam tudo limpo e que eles não atirassem pedras nem dissessem asneiras.

Essas mulheres também se zangavam muito umas com as outras. Havia fortes discussões em plena rua e as crianças paravam as brincadeiras para assistir à dança dos braços e ouvir os insultos e palavrões.

Maria Keil
Agora, na rua da minha aldeia, muitas casas estão vazias. As portas e janelas estão fechadas e os vidros partidos. Muitas pessoas já morreram e as casas foram morrendo também. De algumas só ficaram pedras.

Uma das casas era de azulejo azul e a cor avistava-se ao longe. Foi restaurada mas perdeu o azul.
Maria Keil
A rua da minha aldeia já não parece a rua da minha aldeia mas, apesar disso, será sempre a rua da minha aldeia.


"Olha a banda do coreto..."




Na Casa da Música, no Porto, houve, este fim de semana, um Encontro de Bandas Filarmónicas.

As imagens e os sons fizeram-me recordar tempos antigos em que ouvia o meu avô e o meu pai a falarem com entusiasmo das bandas de música que abrilhantavam as festas e romarias.

Recordo a sorridente doçura da expressão "Vou ouvir uma pecinha".

Banda de Vila Flor

Banda Cabeceirense
Notas (mas não musicais):

Estas duas bandas eram constituídas, na sua maioria, por jovens.
Todos pareciam revelar um grande amor pela música e sentido de grupo.

O maestro da Banda de Vila Flor disse que o trabalho mostrava muito do que se faz no interior do país.

E, de certeza, que tudo é feito com grande entrega e dedicação, com pouquíssimas verbas, com atenção aos talentos de muitos...

Estes músicos nunca serão, por certo, capa de revista ou nunca ganharão um prémio Nobel, mas, sem essas bandas, muitas regiões seriam ainda mais desertas e distantes. E muito menos felizes.

domingo, 29 de julho de 2012

O solitário da rua

Wanderley Santana

Em manhã de domingo, queria ter saído logo pela manhã, mas foi ficando em casa. Apetecia-lhe ler jornais. E arrumar uns papéis que há muito estavam amontoados num canto da sala. Os semanários também ficavam, muitas vezes, de uns dias para os outros.

Num dos jornais que ficaram por ler, havia um artigo sobre Fernando Pessoa.

Não seria por acaso que o texto lhe vinha ter às mãos. Considerava este poeta um ser em que viviam (quase) todas as íntimas dimensões que povoam a vida humana: a solidão, o sonho, o amor, o sofrimento, o prazer, a saudade...

Como pôde um homem tão introvertido ter captado o pulsar tão diverso da alma humana? Se calhar, por isso mesmo.

Raio de talento que tantas vezes sobra e outras tantas tanta falta faz! E, em ambos os casos, tanta felicidade e infelicidade transporta!

Queria separar os jornais para os pôr no contentor da reciclagem, mas alguns ainda ficaram.

Mas por quê sentir necessidade de parar diante de páginas de um jornal atrasado?! E logo em manhã clara de domingo.

Era a sua forma de alcançar "um pouco mais de azul"?


O mar - cá dentro (de nós)

José Malhoa (1855/1933)

sábado, 28 de julho de 2012

Gosto de sábados assim

Aurélia de Sousa (1866-1922)

Com
 Sol mas não demasiado calor
 Tempo para fazer ou não fazer o que se quer
 Imagens (para mim, bonitas) para captar e partilhar
 Um filme que possa ver do princípio ao fim
 Um livro apetecível para ler ou até mesmo fechar
 Saúde e apaziguamento
 Boas notícias das pessoas que mais amo
 Carinho amigável dos que me estão próximos
 Um sítio onde possa caminhar
 A escrita de um pequeno post e outras coisas que me venham às mãos e à memória
 A possibilidade de ter mais tempo disponível 
...


Sem
Programa pré-definido
Problemas difíceis de resolver
Obrigação de fazer ou não fazer o que quer que seja
Culpabilidades que se vão instalando desde a infância
 ...

Nota - Apesar de as palavras terem ficado com esta disposição, não se querem assemelhar a um poema.
Talvez se pareçam mais com a lista das compras para o supermercado (por falar nisso, tenho mesmo de pôr no cesto apenas o que tinha escrito na lista). 
 Também é um bom propósito para um sábado com momentos calmos e, por que não, felizes.

Simples delicadeza


Londres - hoje

Tower Bridge

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Quando as férias começam


 
 Picasso

No início das férias, o tempo parece durar mais. Com menos horários a cumprir,  menos olhadelas para o relógio...

No tempo em que tudo parecia ser duradouro, havia regressos de férias com desejo de descanso...  para férias!

A crise trouxe coisas muito más, como reduções de salário, a supressão dos subsídios de Natal e de férias para muitos funcionários públicos... o fantasma do desemprego, a deslocação (quase) forçada de muitas pessoas em busca de trabalho...

Atualmente, os gastos são quase sempre mais ponderados. Porém, ainda há quem fique com dívidas para passar férias em locais turísticos distantes.

Como, no geral, os gastos têm de ser mais contidos, haverá a tendência a valorizar o que está mais perto de nós. E, muitas vezes, o que está próximo merece bem o nosso olhar e o nosso apreço.

Aqui, às portas do Porto, do rio e do mar, neste final de julho não muito quente, sento-me e escrevo estas palavras sobre as férias, pensando nas maravilhas que estão ao nosso alcance.

Em férias, as palavras parecem mais leves, calmas e claras  (sobretudo para quem as escreve). Tal como a maresia. Ou será uma maré de necessária esperança?

quarta-feira, 25 de julho de 2012

O solitário da rua

 Mário Eloy
 
Depois de sair da repartição, passou pelo supermercado. Logo à entrada, viu umas jovens com um bloco e caneta na mão. Uma delas aproximou-se dele com um sorriso forçosamente amável (era incrível, por mais que se desviasse, nunca escapava a estas entrevistas).
- Boa tarde. Posso fazer-lhe umas perguntas sobre o consumo de água?
- Tenho pouco tempo.
- Só o ocupo uns dois minutos. Primeiro e último nome...
- José Martins.
- Contacto...
- Só para os amigos.
- E e-mail tem?
- Sim, tenho.
- Pode fornecê-lo?
- Sim
- Idade
- 55
- Não parece.  Estado civil...
- É pessoal.
- Desculpe, não percebi.
- É pessoal.
- Estado civil. Se é solteiro, casado, viúvo...
- Eu sei o que é o estado civil, mas é pessoal.
- Eu aqui, então, não posso pôr nada.
- Como quiser.
- Número de pessoas com quem vive.
- Depende.
- Depende?
- Sim, depende.
- Mais ou menos.
- É difícil dizer.
- Assim também é difícil continuar a entrevista para lhe oferecermos uma garrafa de água.
- Não faz mal. Bom trabalho.

No regresso a casa, pensou o que aconteceria àquela jovem se fosse  mal sucedida em todas as entrevistas. Seria mais um número para o desemprego. 

Quando abriu o portão, logo ouviu os cães. Quando lhes deu água, pensou que tinham sorte.

Um lugar chamado verão


Paula Rego
 
A minha filha está sossegada, ao meu lado, no banco da frente, até que, por fim, suspira e diz com a lógica poética de uma criança: “Isto recorda-me aquele lugar em que eu gosto sempre de pensar.”
Barbara Kingsolver
Enquanto relia um romance, eis-me chegado ao ponto em que a personagem principal do livro, de doze anos de idade, acorda “ao som de algo que era bem mais importante do que os pássaros ou o restolhar das folhas novas… o som que indicava que o verão tinha oficialmente começado…” Era o som primeiro dos corta-relvas.
Pus de lado o livro e deixei a minha mente vaguear através dos meus verões pré-adolescentes há muito, muito tempo…
Quando eu era miúdo, dias de verão queriam dizer beisebol. Levantava-me cedo, deixava cair umas gotas de óleo no bolso macio e preto da minha luva, colocava o taco num tubo cilíndrico e oco de metal que eu tinha provisoriamente ajustado ao quadro da minha bicicleta e, depois, pedalava até algum monte de erva recentemente cortada e banhada pelo sol para então fazer umas rebatidas simples, roubar umas bases e correr atrás das bolas ainda no ar, até que o céu ficasse cor de índigo.
Nas manhãs mais quentes podiam encontrar-me no cais da baixa da cidade, com o meu isco de minhoca a tentar provocar algum lúcio ou salmão, com os pés baloiçando ao dependuro, a ler o Tarzan e alguns livros de aventuras.
Mas a melhor parte dos verões da minha infância eram aquelas duas semanas de agosto que eu passava nas montanhas com a minha irmã, a minha mãe e o meu novo padrasto, numa cabana que ele próprio tinha construído. Neste mundo de verão, o sol nascia atrás de uma ravina, passava languidamente por cima da cabana abrigada da luz e deslizava por detrás de uma cordilheira arborizada, deixando às estrelas o comando absoluto daquele céu azul tinta das montanhas.
Por detrás da cabana havia um riacho a que eu nunca tinha descoberto o fim. Calçando as minhas botas, eu andava na água saltitando por cima de pedras parcialmente submersas. O meu lugar favorito era um pequeno ramal ribeiro acima, a cerca de 1 Km de distância, onde a água se ramificava em três charcos profundos, escuros e bordejados por seixos. Era aí que as rãs viviam algumas, verdes como folhas, outras quase pretas e todas elas escorregadias e lustrosas. Eu apanhava-as e dava risadinhas quando elas se contorciam, coaxavam e arregalavam os olhos quando ficavam presas a algo. Às vezes, fazia-lhes caretas e arrastava-as através da água fazendo sons como um barco a motor. Por fim, arremessava-as de novo ao charco e logo tornava a tirá-las, na minha odisseia ribeiro acima, tentando apagar da mente a ideia da inevitável chegada de setembro.
O verão era, então, especial. Mais que uma estação, era um lugar.
Era um lugar onde se podiam fazer mergulhos infindáveis, tipo canhão ou parafuso, da prancha mais alta ou chapinhar sem qualquer propósito na grande “piscina” sem a obsessão do fator de proteção solar. Um lugar onde os olhos podiam seguir os movimentos daquela miúda que se sentara ao nosso lado, nas aulas, durante todo o ano – e que agora parecia tão diferente de fato de banho deslizando entre opalas e turquesas no grande charco, o longo cabelo ondulando atrás dela. Um lugar onde se podia sorrir à mãe de modo trocista através de um bigode de melancia, dormir no quintal das traseiras (antes dos dias em que o ar condicionado tornou as estações todas iguais) e lançar estrelinhas de fogo-de-artifício.
Nos verões do passado, quase tudo o que era bom passava-se no exterior.
Uma noite, quando estava fora de casa, ao frio da montanha, olhando as estrelas cadentes que, todas as noites, riscavam de fogo o céu, a minha mãe disse-me: “Pede um desejo, querido.”
Eu tentava, claro, mas era difícil pensar num. Tudo aquilo que eu poderia pedir estava ali bem à minha volta.


Doug Rennie
Jack Canfield; Mark Victor Hansen; Steve Zikman
Chicken soup for the nature lover’s soul
Florida, HCI, 2004
(Tradução e adaptação)

segunda-feira, 23 de julho de 2012

O solitário da rua



Uma noite, depois dos trabalhos habituais no quintal (a harmonia das plantas ajudava-o a construir a sua própria harmonia), sentou-se na sala, como de costume. 

No copo, o vinho tinto exalava um colorido e calmo aroma. Abriu o livro O tempo envelhece depressa, de Antonio Tabucchi, mas logo o fechou. 

Dirigiu-se à estante e pegou numa coletânea de poesia de Fernando Pessoa. Mais uma vez, veio até ele o poema Tabacaria do heterónimo Álvaro de Campos:

“Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo
…”

Não conseguiu prosseguir. Apeteceu-lhe chorar. Dentro de si, ouvia vozes antigas: um homem não chora!

Chora sim, por que não? E fala, e sente, e sofre, e ri, e ama, e desespera, e espera, e acredita, e desconfia…

De dia, a repartição acolhia o funcionário público exemplar; ao fim da tarde, a casa recebia o homem completo. Com as incompletudes que se lhe incrustaram à pele e à alma desde a infância.

E releu:

“Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo
…”

Encostou a cabeça no sofá e recordou as peripécias do dia. E viu-se com uma infinidade de pessoas a quem se aplicavam, também, aqueles versos.

Só os versos?


domingo, 22 de julho de 2012

Uma nostalgia feliz


Van Gogh


à Dolores, que se atreveu à renda, mas não ao poema

Há uma rendinha branquinha
Que fica linda, catita
Na saia rosa de chita
Da minha boneca de trapos.

Foi feita pela minha avó,
Neste moinho velhinho,
Onde agora eu me divido
No passado feito pó.

Nestas manhãs de silêncio,
Curadas em maresia,
Recordo as tardes alegres,
Em que ela rendas fazia.

Não eram só bonecas e netas
Que se alindavam em lavor,
Mas todas as roupas domingueiras
Para as visitas ao Senhor!

Também as roupas de cama,
As peças especiais
Para aqueles dias únicos,
Marcados por rituais,
Tinham seu toque de fada.

E agora, que guardo na arca,
Encostada à velha mó,
A bela boneca de trapos,
Rendilho a azul no papel
A infância rendilhada
Pelas mãos da minha avó!

IA, Porto, 22 de julho 2012

Nota - Obrigada, Isaura. Continua a rendilhar as palavras.

O solitário da rua

Era um funcionário público que, de dia, tinha toda a carga física e psicológica de um comum funcionário público.

Cumpria bem a sua missão: tinha os papéis organizados, sabia utilizar bem as novas tecnologias, atendia bem o público.

Não gostava que os utentes da repartição falassem muito alto, enquanto estavam à espera da sua vez. Também o irritava ouvir os toques estridentes do telemóvel e logo de seguida o "tôooo" habitual. Tentava controlar-se e todos diziam que era um homem calmo.

A hora mais feliz era a de saída. Não é que não gostasse de trabalhar na repartição, mas ir para casa ao fim da tarde era o momento alto do dia.

Quando tinha reuniões ou eventos à noite, sentia que um dia se colava ao outro sem o tempo de profunda liberdade de que sempre estava à espera e de que precisava para harmonizar a vida.

Chegava a casa, tirava a roupa que logo separava: ou para usar de novo ou para lavar. Vestia a roupa do campo, calçava as botas, punha o boné e saía para o exterior da casa.

Um dia, olhou-se ao espelho do móvel junto à porta e até lhe pareceu que a sua imagem era a de um belo homem, mas logo saiu para o trabalho diário no jardim e no quintal. Não tinha tempo a perder e daí a nada cairia a noite.

Os cães aproximavam-se sempre à espera de festas. E era preciso regar o feijão, as árvores de fruto, tirar as ervas às aromáticas...

No final do dia, depois do jantar, sentava-se a ler e a ouvir música.

Ao seu lado, um copo de vinho tinto. 
E uma fotografia com uma legenda desenhada e redonda: Para o homem mais belo da minha vida

Sorria e ia pôr o copo, vazio, na cozinha.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

"Delicadeza"


Uma jovem (Audrey Tautou - a inesquecível Amélie) vive só, dedicando-se inteiramente ao trabalho. O companheiro tinha morrido de forma trágica e repentina.

Anos mais tarde, conhece Markus (François Damiens), que trabalha no mesmo local. Ele é enorme, desajeitado, delicado, generoso, terno, boa pessoa, apaixonado por Nathalie...


Os dois, depois de várias peripécias, resolvem mudar de vida num dia de chuva intensa que os recebe no regressa às origens.


No final do filme, as pessoas (na sala do Arrábida, onde não havia muita gente) não se levantaram logo. A música final continuava a ser bonita e convidava a ficar mais um bocadinho.

A história tinha feito sorrir, reparar em pequenos gestos humanos que são sinais do amor e de seus contrários. 

Ah, e o filme mostra pequenas ruas de Paris, cafés envidraçados, o piscar  das luzes na Torre Eiffel...

Apesar de real e terreno, o filme revela uma amorosa e doce "Delicadeza" sempre bem-vinda.


O diário de Mariana


Querido diário,
20 de julho 2012
No próximo ano, já não devo ter a setora C. Para além de ser sempre fixe com toda a gente, via-se mesmo que gostava de dar aulas e de fazer atividades na escola. 

Eu conheço vários alunos que quiseram tirar o mesmo curso que ela, porque ela motivava mesmo. Dava valor ao que dizíamos, achava importante o que fazíamos, ensinava a fazer melhor quando tínhamos dificuldades... 

Sei lá, tanta coisa altamente de que me lembro. E agora tem de concorrer e se calhar vai mesmo para outra escola. Eu acho isso horrível. E ela uma vez disse que estava na escola há mais de vinte anos.

Quando chegava à aula, vinha sempre bem disposta. Eu, um dia, ganhei coragem e disse assim:
- Ó setora, você não tem problemas como toda a gente? Parece que anda sempre tão feliz!
E ela disse assim, sempre com um sorriso alegre:
-Ó Mariana, o você, neste caso, não condiz nada contigo. Já te esqueceste do que vos expliquei sobre as formas de tratamento?
- Desculpe, setora, mas esqueci-me. Vejo-a sempre contente e até fico curiosa.
- Claro, Mariana, que tenho problemas, mas gosto tanto de dar aulas que até os esqueço enquanto estou na escola.

Com isto, eu achei-a mais fixe ainda. Até me vêm as lágrimas aos olhos quando penso nisso. Eu não quero fazer de conta que sou o Calimero, mas acho que há coisas muito injustas. Por exemplo, a minha cadela foi atropelada e o condutor andou sempre. Às vezes, somos tão mal educados. Parece que ninguém se quer chatear e quer lá saber dos outros. Eu falo da Castanha porque ela já faz parte de nós, apesar de fazer estragos nas plantas, mas é por ser muito nova ainda.

Isto da setora C. poder sair da escola só por ser menos graduada não me sai da cabeça. É menos graduada mas estudou para ter um curso da Faculdade e tirou-o honestamente. Não é como aqueles políticos que fazem batota para terem cursos sem frequentarem as aulas, sem fazerem exames nem nada e ficam, ficam nos lugares como se tivessem pilhas duracel! Não há direito!

Não me conformo. Acho que somos todos um bocado totós. Eu falo por mim, mas acho que não sou só eu. E depois eles abusam e de que maneira. Acho que devia haver mais justiça.

Muitos abracinhos, querido diário.

Mariana

"Cães como nós"

Ontem à noite, a minha cadela (a Castanha), vendo o portão a entreabrir-se, saiu para a rua. Passou um carro e atropelou-a. Foi forte o impacto e o estrondo, apesar de a Castanha não ser grande.

Caída em plena rua, logo corri para a recolher, enquanto o condutor seguia o seu percurso.
Parto do princípio que se fosse uma pessoa, o condutor pararia, mas esta atitude de (aparente) indiferença deixa dúvidas.

Felizmente julgo que poderei continuar a ter a companhia da Castanha, porque está a recuperar, mas apetece-me dizer que estes procedimentos parecem "cães como eles".




quinta-feira, 19 de julho de 2012

"Convidatória"

Alguém começou a utilizar a nova palavra: "convidatória". E passou a dar resultado para reuniões não obrigatórias.

A palavra "convocatória" soava a obrigação, a necessidade de  redação de uma ata, ao respeito mais formal de uma ordem de trabalhos.

"Convidatória" lembrava mais liberdade, participação voluntária, preparação do trabalho de maneira mais gostosa, igualmente atempada e criativa.

De forma espontânea, o grupo foi aumentando e o trabalho realizado para o próximo ano letivo foi produzido de forma mais alegre e eficaz.

Felizmente, para além das pessoas, as palavras que se criam também podem ser motivadoras!

Humberto e a macieira



Nos arredores de uma pequena cidade viveu em tempos um homem. Chamava-se Humberto. Humberto era um homem simpático, de olhos bondosos e uns óculos muito pequeninos pousados no nariz. Os seus caracóis castanhos pareciam a lã de uma ovelha. Morava numa casa velha e torta que se escondia tímida, quase envergonhada, por detrás de um belo jardim. No jardim, num prado verde e florido, havia uma macieira.

Todas as manhãs, quando se levantava, Humberto maravilhava-se com a beleza da sua árvore. Ao fim da tarde, quando regressava do trabalho, sentava-se durante horas a ver os pássaros na copa da macieira. Na verdade, devemos dizer que não é nada aborrecido estar a observar uma árvore. Algumas são verdadeiras artistas da mudança.


 Na primavera, vestem-se de mantos floridos e estendem os ramos para o calor, enquanto as abelhas laboriosas as procuram em busca de alimento. No verão, oferecem a sua sombra, enquanto o sol brilha com tanta intensidade que faz as pessoas andarem de rostos afogueados. No outono, o vento forte brinca sem descanso com as folhas amarelas, vermelhas e castanhas e espalha-as pelos prados e ruas, até que o inverno vista a paisagem de um manto branco.


Quando Humberto se deitava debaixo da macieira, lembrava-se de como costumava trepar por ela acima em criança. Muitas vezes se escondera nos seus ramos, quando a mãe o chamava para almoçar e ele ainda não tinha vontade de voltar para casa. Quando Humberto contemplava a sua árvore, sentia uma alegria imensa. Acontecia também que as pessoas paravam junto à cerca – uma mãe ou um pai com um filho, por exemplo. Por vezes alguém exclamava:
― Olha, que bonita!
Mas a maioria das pessoas passava apressadamente. Parecia que havia muitas coisas urgentes a fazer naquela cidade tão pequena.
Assim passaram os anos. Humberto ficou mais velho. A cara ficou coberta de rugas. O cabelo ficou, primeiro grisalho, depois branco e, com o tempo, desapareceu como as folhas no Outono. Só a barba continuava a crescer luxuriante, cobrindo-lhe o queixo e descendo pelo pescoço até ao peito. Humberto, contudo, continuava feliz, observando horas sem fim a árvore e os pássaros. Se apanhava crianças atrevidas a roubar maçãs, limitava-se a rir e gritava:
― Assim é que elas sabem bem, não é?


Os miúdos, então, fugiam envergonhados. Um dia, contudo, aconteceu uma coisa horrível. Era mais uma vez outono. O vento forte batia violento nas janelas e fazia as folhas coloridas girar no ar. Das montanhas em redor vieram nuvens carregadas de tempestade. Eram tão negras, sinistras e assustadoras que as pessoas fugiram para casa. Humberto também fechou a janela depois do primeiro trovão, mas ficou a ver o que acontecia, abrigado atrás do vidro.
Logo começaram a cair grossos pingos de chuva na janela. Depois, abateu-se um chuveiro sobre a pequena cidade, como se alguém muito zangado tivesse aberto a torneira. Entretanto, os relâmpagos riscaram o céu, acompanhados de trovões cada vez mais fortes e ameaçadores. De repente, o coração de Humberto ficou paralisado de susto. Diante dos seus olhos, um raio riscou o céu e caiu sobre a macieira com um estrondo tremendo. Ela estalou e gemeu enquanto o tronco se fendia em dois. Depois, a chuva refrescou a ferida. A tempestade passou.
Ali estava a árvore que fora tão bela. Oferecia um aspeto muito triste. Ficara tão retorcida e nodosa como a casa. Uma visão estranha. O tronco tinha uma cicatriz que ia até às raízes poderosas.
― Isso dói ― disse Humberto à árvore, dando-lhe uma palmadinha afetuosa.
A árvore suspirou baixinho. E, se as pessoas soubessem que as árvores também choram, talvez Humberto tivesse reparado nas gotas que havia na casca da macieira. 


A primavera seguinte foi quente e cheia de sol. O canto dos pássaros era uma maravilha. As flores cresciam por toda a parte. Só a árvore continuava retorcida, nodosa e triste. Algumas folhas pequeninas tinham nascido e havia algumas flores em redor das quais as abelhas se atarefavam. Mas, embora se esforçasse, a pobre árvore já não tinha forças para florir como no passado. Ainda tinha dores, quando o tempo mudava ou o sol lhe queimava o tronco. Mas isso não era o pior. Ultimamente, as pessoas paravam outra vez a olhar para ela. Sem coração, miravam-na e chamavam-lhe “feia” e “nódoa”.
― Aquilo devia ser cortado ― tinha dito uma mulher, e um homem respondera que aquele era um bom local para um parque de estacionamento ou, pelo menos, para um relvado agradável, se a árvore não estivesse lá.
A árvore ficava cada vez mais triste. As lágrimas corriam pelos novos rebentos, tornando-os cada vez mais fracos. Humberto irritava-se com os comentários das pessoas. Gostava da árvore tal como ela era. Observava as aves a esvoaçar nos ramos e, à noitinha, dava-lhe palmadinhas no tronco.
― Fora daqui! ― gritava furioso, perseguindo com uma vassoura as pessoas pasmadas e surpreendidas.
No entanto, não servia de nada. Apareciam sempre outras pessoas com comentários desagradáveis. Um dia, montou na sua bicicleta ferrugenta. Os vizinhos ficaram espantados com o sorriso que ostentava no rosto. Algumas horas mais tarde, regressou carregado. Foi a correr ao barracão buscar uma pá e começou a cavar energicamente junto ao tronco da macieira. Só parou quando já tinha uma cova bem funda. Aí plantou uma pequena macieira delicada, que mal lhe chegava à altura da barba. “Assim, pelo menos, vamos ficar livres daquela árvore,” pensaram as pessoas. Mas Humberto sorriu malicioso, cobriu as raízes da macieira com terra, regou-a muito bem e foi arrumar a pá.


Passaram muitos anos. Primaveras, verões, outonos e invernos, uns atrás dos outros. Humberto transformara-se num velho curvado, que se sentava satisfeito à janela. A pequena macieira crescera tanto e estava tão carregada de frutos que Humberto não conseguia comê-los todos sozinho. A velha árvore retorcida continuava no jardim. Protegida pelos ramos da árvore jovem, vivia sossegada e contente.
Bastavam-lhe as poucas folhas e rebentos que corajosamente produzia todas as primaveras. Sorria secretamente sempre que uma criança roubava uma das suas maçãs, que já há alguns anos eram enrugadas e pequenas. As pessoas continuavam a passar apressadamente, tratando da sua vida. Já ninguém ligava às duas árvores. Contudo, de vez em quando, alguém parava e contemplava-as com satisfação.
Numa tarde de outono, a árvore sentiu inesperadamente o toque familiar de uma mão. O velho Humberto caminhara silenciosamente até ela e murmurara-lhe qualquer coisa. A árvore acenara em resposta. Também tinha sentido. O ar cheirava a neve. O inverno estava à porta. Era tempo de repousar. Enquanto os primeiros flocos de neve dançavam na janela e Humberto estava deitado na cama, a árvore, lá fora, também adormeceu. E assim, dormindo sossegados, ambos sonhavam com a primavera.
Bruno Hächler
Humberto e a Macieira
Porto, Ambar, 2000

quarta-feira, 18 de julho de 2012

"Sabes quanto vales?"

É constrangedor o que se está a passar em muitas escolas com a redução do pessoal docente. Julgo não errar se disser que são dezenas, por estabelecimento de ensino público, que deixam de ter lugar. 

Vão sendo conhecidos casos de professores na casa dos quarenta-cinquenta anos que, de repente, se veem obrigados a concorrer para outras escolas. O que lhes é dito é que em caso de não haver vaga, regressarão à escola para outro tipo de trabalhos. O ministro diz que todos terão lugar, o que não diz é até quando.

Apesar de o mês de setembro já estar próximo, não se sabe que trabalhos vão executar os professores que ficarem com o horário zero. Pesa também o receio de, mais tarde ou mais cedo, o lugar poder ser extinto.

Claro que tal acontece em qualquer área profissional e a contenção de custos parece ser uma necessidade à qual não se pode fugir.

Para se poupar dinheiro, criam-se mega-agrupamentos de escolas, aumenta-se o número de alunos por turma, reduzindo-se os horários. No entanto, quase ao lado de muitas escolas públicas, existem estabelecimentos de ensino privados que são subsidiados pelo estado.
Essas escolas privadas selecionam os alunos e, mesmo assim, recebem dinheiros públicos.
Então não há dinheiro para umas coisas e há para outras?

Para além destes factos, o critério de afastamento dos professores assenta apenas na sua graduação. A qualidade do trabalho realizado ao longo dos anos de nada parece valer.

Esta situação faz-me lembrar um programa televisivo brasileiro em que se repetia:
- "Sabes quanto vales"?
- "Vales zero"!

As novas gerações vão interrogar-se se vale a pena participar ativamente do Projeto Educativo de escola e do Plano de Atividades.

Já que valem zero, têm mais que fazer.


terça-feira, 17 de julho de 2012

Abertos à prova do tempo



Olhando contrastes naturais




Que calor!

Seurat

Os últimos dias têm sido de muito calor. Não só durante o dia, mas também à noite.
Que calor! - É a expressão repetida.

E recordo os tempos de infância, ouvindo que não se devia dizer mal do tempo. O tempo era de aceitação e resignação.

Será diferente agora?

Queixamo-nos do calor, mas, se encontrarmos uma sombra, logo esquecemos a canícula.

Está calor. De repente, pode dar lugar ao frio. Também de bastante resignação. 

Felizmente (ainda) podemos dizê-lo.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Sozinha na sala

Ângelo de Sousa

A sala estava vazia. A porta, pesadíssima, fechou-se e eu sentei-me. Como coadjuvante, peguei na prova de exame, li os textos e comecei a responder às questões. Tal como os alunos do 12º ano que estavam nas diferentes salas da escola.
O texto principal era retirado do livro Memorial do Convento de José Saramago e, no excerto, lá estavam as relações entre homem e mulher, entre pais e filhos; os malefícios da guerra...

Outro texto abordava o "esvaziamento de palavras" como honra, fé, verdade, razão...
Até onde nos levará este vazio de tantos sentidos?

Na composição, os alunos tinham de apresentar uma reflexão sobre os papéis do homem e da mulher nos dias de hoje.
Imaginei que surgiriam bastantes banalidades, mas também argumentos e exemplos de quem está atento ao mundo e à importância de todos na construção da sociedade.

Pela janela, via as pessoas a entrarem no edifício escolar. Algumas delas a lecionar na escola. Nos seus ouvidos, ainda soaria o anúncio de que tinham de concorrer para outras escolas porque provavelmente não haveria vaga.

O aumento de alunos por turma iria reduzir o número de turmas e, por consequência, o número de horários.

Alguns professores falavam de um murro no estômago: depois de tanto tempo na escola, ter agora de sair? 

E vinham à memória atividades realizadas por muitos desses docentes, que pareciam de nada valer, no momento da fria contagem de alunos e professores para encaixarem no menor número de horários para, assim, reduzir custos.

E já tinha havido lágrimas, porque o concurso, a procura de vagas, o horário zero poderiam ser o prenúncio do fim precipitado de uma carreira.

E eu continuava sozinha na sala, agora já com o exame resolvido. Poderia ser necessária enquanto durasse a resolução da prova.

Uma amálgama de pensamentos, de sensações.
E, mais uma vez, pensei que, para além da maravilha que é aprender e ensinar, há muitos momentos em que cada pessoa se sente ou está sozinha na(s) sala(s).