sábado, 16 de fevereiro de 2013

A escola secreta de Nasreen


 


Uma história verdadeira do Afeganistão

A minha neta Nasreen vive comigo em Herat, uma antiga cidade do Afeganistão, onde outrora floresceram as artes, a música e a educação. Mas depois chegaram os soldados e tudo mudou. As artes, a música e a educação desapareceram. Nuvens negras pairam agora sobre a cidade.
A pobre Nasreen fica em casa todo o dia, porque as raparigas estão proibidas de frequentar a escola. Os talibãs não querem que as raparigas estudem, como eu e a mãe de Nasreen fizemos quando éramos crianças.
Uma noite, vieram eles e levaram o meu filho, sem qualquer explicação. Esperámos dias e noites pelo seu regresso. Cansada de esperar, a mãe de Nasreen pôs-se, finalmente, a caminho, à procura dele, embora fosse proibido às mulheres e raparigas andar sozinhas pela rua.
Muitas luas passaram à minha janela enquanto eu e Nasreen esperávamos. Nasreen nunca falava nem sorria. Ficava sentada, à espera que o pai e a mãe aparecessem.
Eu sabia que tinha de fazer algo.
Ouvi rumores sobre uma escola secreta para raparigas que ficava por detrás de um portão verde, num caminho perto da nossa casa. E queria muito que Nasreen frequentasse essa escola. Queria que ela conhecesse o mundo, que estudasse, como eu tinha feito. Queria que ela falasse de novo. Assim, um dia, Nasreen e eu apressamo-nos a chegar ao portão verde. Felizmente, nenhum talibã
nos viu. Bati ao de leve. A professora abriu o portão e corremos para dentro. Atravessamos o recreio da escola – uma sala numa casa particular cheia de raparigas. Nasreen sentou-se ao fundo da sala. Quando a deixei rezei: “Por favor Alá, abre-lhe os olhos para o mundo.” Nasreen não falou com as outras raparigas. Também não falou com a professora. E em casa manteve-se em silêncio.
Eu receava que os talibãs descobrissem a escola. Mas as raparigas eram espertas. Entravam e saíam a diferentes horas para não levantar suspeitas. E quando os soldados se aproximavam do portão, alguns rapazes desviavam a sua atenção. Ouvi falar de um talibã que bateu ameaçadoramente no portão, exigindo que o abrissem. Mas tudo o que encontrou foi uma sala cheia de raparigas a lerem o Corão, o que era permitido. As raparigas tinham escondido os seus trabalhos, enganando assim o soldado.
Uma das raparigas, Mina, sentava-se junto de Nasreen todos os dias. Mas nunca falavam uma com a outra. Enquanto as raparigas aprendiam, Nasreen vivia fechada em si mesma. A minha preocupação agravava-se. Quando a escola fechou para as longas férias de inverno, Nasreen e eu sentávamo-nos junto ao fogão. Alguns familiares poupavam comida e lenha para nos dar.
Mais do que nunca, tínhamos saudades da mãe de Nasreen e do meu filho. Alguma vez viríamos a saber o que tinha acontecido?
No dia em que Nasreen regressou à escola, Mina sussurrou-lhe ao ouvido:
— Tive saudades tuas.
— E eu também — respondeu-lhe Nasreen.
Com aquelas palavras, as primeiras desde que a mãe fora à procura do pai, Nasreen abriu o seu coração a Mina. E sorriu pela primeira vez desde que o pai fora levado à força. Pouco a pouco, dia após dia, Nasreen finalmente aprendeu a ler, a escrever, a somar e subtrair. Todas as noites mostrava-me o que descobrira naquele dia. Abriam-se, para Nasreen, as janelas naquela sala de aula. Conheceu e estudou os artistas, os escritores, os sábios e os místicos que, muito tempo antes, tinham tornado Herat importante.
Nasreen já não se sente só. O conhecimento que vai acumulando estará sempre com ela, como um bom amigo. Agora ela pode ver o céu azul para lá das nuvens escuras.
Quanto a mim, tenho a consciência tranquila. Continuo à espera do meu filho e da sua mulher. Mas os soldados nunca poderão fechar as janelas que se abriram para a minha neta.
Insha’ Allah
.
Nota da Autora
O Fundo Internacional para as Crianças, uma organização sem fins lucrativos que se dedica a ajudar crianças de todo o mundo, contactou-me para escrever um livro baseado numa história verdadeira. Senti-me imediatamente atraída por uma organização no Afeganistão que fundou e apoiou escolas secretas para raparigas durante a ocupação Talibã, entre 1996 e 2001. O fundador destas escolas — que pediu anonimato — partilhou comigo a história de Nasreen e da sua avó. O nome de Nasreen foi alterado.
Antes de os Talibãs controlarem o Afeganistão:
70% dos professores eram mulheres;
40% dos médicos eram mulheres;
50% dos estudantes de Cabul eram do sexo feminino.
Depois da ocupação Talibã:
as raparigas estavam proibidas de frequentar a escola ou a universidade;
as mulheres estavam proibidas de trabalhar fora de casa;
as mulheres estavam proibidas de sair de casa sem um familiar do sexo masculino;
as mulheres eram obrigadas a usar a burca que cobria toda a cabeça e o corpo, deixando apenas uma pequena abertura para os olhos;
não era permitido cantar, dançar ou lançar papagaios. As artes e a cultura foram banidas na terra natal do famoso poeta Rumi. As esculturas colossais de Bamiyan Buddhas, esculpidas na montanha, foram destruídas.
Tinham começado anos e anos de isolamento e de terror. Mas também havia atos de coragem de cidadãos que desafiavam, de muitas formas, o regime Talibã, incluindo o apoio a escolas secretas de raparigas. A sua coragem nunca vacilou.

Jeannete Winter
Nasreen’s Secret School – A true story from Afghanistan
New York, Beach Lane Books, 2009
(Tradução e adaptação)

2 comentários:

  1. Às vezes sou assaltada por uma sensação estranha de regresso a um passado triste, repressivo, fascista, de falta de igualdade de oportunidades, de equidade e de desprezo pela liberdade e reconhecimento da alteridade. E essa sensação enche-me de pânico e quase não consigo respirar. Tenho medo do que nos está a acontecer a todos, mas mais do que isso começo a perceber que fazemos parte de uma guerra e ninguém sabe quando nem como acabará. tal como a menina do texto, perdemos a palavra. Haja quem tenha a coragem de construir corredores de liberdade, apesar de relativa ( como fez a professora das raparigas e as próprias alunas).

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  2. Obrigada pelo comentário que exprime muitos dos receios de muitos de nós. Oxalá as palavras de todos também ajudem a marcar esses "corredores de liberdade", sem os quais o regresso ao passado será inevitável. Eu conheci esse "passado triste, repressivo" e a dificuldade de muitas meninas (e também meninos) estudarem, embora lhes fosse reconhecida inteligência.
    Obrigada, mais uma vez.
    M.

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