Esta pequena estória de Natal nasceu
do nascimento da minha neta, Sofia.
A médica chamava-se Sabina, era indiana, tinha uma longa trança...
Muito sabia Sabina já antes de entrar na
escola primária.
E o que sabia Sabina muito se devia aos pais
que, ao longo da vida, muito tinham aprendido, tendo muita paciência para lhe
explicarem o mundo que via crescer à sua volta, enquanto ela crescia também.
Deles nunca Sabina tinha ouvido:
- Está calada, porque não percebes nada do
assunto.
Pelo contrário, gostavam de perguntar, de
responder e que Sabina também perguntasse e respondesse. Sempre lhe diziam que
os adultos sabem muitas coisas, mas acrescentavam que as crianças vão igualmente acumulando
montinhos de ideias e de conhecimentos que, juntos, se agigantam como uma
montanha dos Himalaias.
E foi assim que Sabina se habituou a olhar, a
questionar, a observar, sendo sempre uma das melhores alunas da escola.. Gostava
muito de aprender, de saber mais, mas não pretendia ser a melhor de todos. Numas
áreas seria, noutras não - como sempre lhe tinham dito os pais.
Sabina nascera em Jaipur, cidade - à qual
muitos associam a cor rosa - da Índia, que
faz fronteira com o Paquistão, Nepal, Bangladesh.... Estas e muitas outras
coisas já muito cedo Sabina sabia.
A jovem crescia sábia e serenamente, com a
sua trança que juntava, ondeando-o, o farto cabelo escuro. Tal como era hábito
de muitas outras meninas e mulheres indianas.
Quando Sabina acabou o ensino secundário,
quis inscrever-se numa Universidade inglesa. Pretendia saber mais, ter acesso a
outras experiências e conhecimentos. E viajou até Londres com as poupanças dos
pais para a formação da filha. Sempre deles ouvira que a Educação é o melhor
investimento.
Sabina partiu da sua cidade de Jaipur num dia
do mês de outubro em que se festejava o Diwali - festa de todas as luzes e a
que muitos Cristãos chamam o Natal indiano.
Rumo ao aeroporto, Sabina, em silêncio,
olhava, com os seus olhos aveludados e negros, as ruas ladeadas de barraquinhas
com vistosas iguarias, os cestos de malmequeres amarelos, o sari brilhante da
mãe e o fato claro e largo de linho do
pai. Escutava o frenético apitar dos carros, o som ronceiro dos motociclos, o
pedalar arrastado e contínuo dos magros condutores de riquexó, a vozearia
alegre dos transeuntes que ziguezagueavam, com ousada confiança, através do
caos colorido dos lugares.
Os familiares e amigos achavam estranho que
Sabina abandonasse a cidade em plena celebração da festa de todas as luzes e de
todos os cintilantes fogos de artifício. Sabina concluíra que a decisão não era
errada porque todos os dias se iluminam de novas luzes e não apenas nas datas indicados
no calendário. Para além disso, as aulas iriam começar na UCL Medical School e Sabina queria a todas assistir desde o
início.
Horas depois, chegava a Londres - cidade onde,
aos seus olhos, iam chovendo todas as culturas e etnias. Sabina viera só, mas
instalou-se, com outros estudantes, numa rua de nome Pandora. A cidade seria,
pois, uma enorme caixa que, pouco a pouco, Sabina abriria para conhecer melhor
o que ela continha.
Todas as manhãs, Sabina apanhava o metro para
a Universidade, saindo na estação de Euston - onde sempre se ouve música
clássica. Na travessia até à rua, concentrava-se naquele belo ritual de início de
muitas manhãs e de regresso a casa, tantas vezes cansado.
Sabina
ia-se adaptando à nova cidade, embora se lembrasse muitas vezes da família, dos
amigos, do sol, da luz, dos cheiros e sabores da casa dos pais, das cores
intensas das ruas e mercados de Jaipur... Essas eram razões para não cortar a
trança. Ligava-a à sua cidade natal e ao seu país que, devagar, revia em muitos
momentos, embora o seu propósito de concluir o curso nunca esmorecesse.
Se Camões a tivesse conhecido, também lhe
teria dedicado, por certo, alguns dos seus versos
"Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha";
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha";
De Londres, enorme e húmida caixa de Pandora,
foi tirando algumas boas amizades, o amor, a licenciatura... E ia, amorosamente,
enviando para a Índia muitas imagens do
seu quotidiano através do Skype. Sobretudo para os pais.
Um dia, Sabina pôde anunciar-lhes que ia
entrar na especialidade que escolhera: Ginecologia-obstetrícia.
Assim, muitos hojes passaram, muitas estações
de metro calcorreou, muitas bibliotecas e cafés frequentou, muitas experiências
viu realizadas, muitas teorias ouviu dentro e fora das salas de aula...
Contudo, a trança continuava, longa e escura,
mimando as costas morenas de Sabina. Sempre.
Os Diwalis foram-se comemorando - com todas
as luzes a celebrar a vitória do bem sobre o mal, durante sucessivos dias
festivos. Os Natais foram igualmente vividos.
Até que chegou o dia em que Sabina assistiu, sozinha como especialista, ao primeiro parto no UCL Hospital of London..
Era final de uma madrugada. De outubro, por
sinal. Um bebé demorava a nascer. Por mais que a parteira, pacientemente, insistisse
(keep going, keep going...) para que os movimentos da jovem mãe o embalassem,
chamando-o à luz do dia, mesmo assim, o nascimento tardava.
Para resolver o problema, entrou na sala de
partos uma médica: a doutora Sabina. Aproximou-se serenamente da parturiente,
sorriu, analisou, com calma, a situação e,
recorrendo aos cuidados certos, foi dizendo:
- Em breve, o bebé verá a luz do dia.
Palavras ditas, ouviu-se o desejado chorinho vigoroso. Para todos, uma nova luz que Sabina ajudara a
nascer.
"Presença serena
Que a tormenta amansa";
E, logo a seguir, Sabina colocou a menina
recém-nascida no seio da mãe, lembrando-se dos seus pais e de todas as luzes
que lhe tinham transmitido até então.
Quando os suspiros sofridos da mãe deram
lugar aos sorrisos das sublimadas ou já quase esquecidas dores, saiu do quarto,
entrou, silenciosamente, no gabinete e telefonou aos pais. Estavam a celebrar a
festa do Diwali. E mais Luz ainda sentiram quando Sabina partilhou a alegria de
ter acompanhado, pela primeira vez e como médica de serviço, o nascimento
daquele ser tão pequenino e tão completo, que abraçava saudavelmente a luz do
dia, procurando alimento e aconchego.
A manhã abria-se, então, à luz de um dia claro
desse mês de outubro, coincidindo com a festa das luzes no país natal de
Sabina. E com a sua vinda para Londres
havia já alguns anos.
Uma nova vida começava. Sabina tornar-se-ia
ainda mais sábia, por isso, ainda mais serena.
Com o tempo, uns fios brancos começaram a
clarear a trança que continuava densa e longa. Eram luzes dos seus Diwalis - ou
Natais - que celebrava através de cada bebé que ajudava a nascer e, por isso, a
encontrar a luz.
Como se
olhasse uma trança de estrelas que, reconhecia, a tinham guiado desde a
infância.
Nota
Este conto foi publicado, neste mês de dezembro,
na coletânea
Lugares e Palavras de Natal
da Editora Lugar da Palavra
FELIZ NATAL!