O dia tinha estado ameno, mas, com o cair da noite, as nuvens carregadas
começaram a ameaçar tempestade. António, um sem-abrigo, afastou o cartão em que
todas as noites dormia, assim como o cobertor escuro com que se cobria.
Se procurasse um supermercado, sempre podia entrar e proteger-se da forte
chuvada que não parecia demorar muito. Viu, então, ao fundo da rua, o anúncio
bem luminoso. Assim fez. Quando entrou, sentiu o quentinho de um espaço
abrigado, de gente lavada e que tinha alguém com quem falar.
O dia não lhe tinha corrido muito bem. Compraria um sumo de laranja, porque
o desenho do pacote fazia-lhe lembrar as laranjeiras da aldeia onde tinha
vivido a infância.
Ao aproximar-se da prateleira dos sumos, passou pelos chocolates e teve uma
ideia, ou melhor, uma tentação: meter seis chocolates ao bolso para oferecer na
noite de Natal a seis pessoas que olhassem para ele com carinho. De repente,
viu um funcionário e um adolescente junto dele. Um rapaz, tendo assistido à
tentativa de roubo, chamou o funcionário que disse secamente ao sem-abrigo:
tira os chocolates do bolso e volta a pô-los no lugar. E depressa.
António limitou-se a obedecer à ordem, porque já era velho e não podia
correr ou fugir. E o que mais lhe custou foi ser tratado por tu. Enquanto estava
a pôr os chocolates na prateleira, olhou para o rapaz que o tinha acusado.
Tinha ar de quem tinha tudo e não gostava de nada nem de ninguém.
O funcionário, com ar de falso Pai Natal, disse assim: não chamo a polícia
só por causa do espírito natalício. António voltou para o seu sítio habitual,
também sem o sumo que queria comprar. Felizmente, a chuva já não caía.
Umas horas depois, já deitado no seu cartão, reparou que a rua estava
deserta. De súbito, começou a ouvir alguém a correr. Levantou a cabeça para ver
o que se passava. Era uma rapariga. Vendo o sem-abrigo, parou e perguntou-lhe
se tinha visto um rapaz de cabelo claro, alto, magro, de blusão de couro…
Mostrava muita aflição e disse que o irmão tinha fugido de casa porque estava
farto de tudo e de todos, até dos pais que chegavam no dia seguinte para o
Natal.
Pela descrição, o sem-abrigo reconheceu o jovem que o tinha denunciado no
supermercado. Em poucas palavras, apontou-lhe o final da rua, onde ficava a
grande superfície.
A jovem retomou a corrida em busca do irmão. Encontrou-o sentado num dos
bancos do jardim. Os dois irmãos abraçaram-se e ela convenceu-o a voltar para
casa e a passar o Natal em família.
No regresso, passaram pelo local onde a rapariga tinha visto o sem-abrigo. Havia o cartão, o cobertor, o saco de plástico, mas António já lá não
estava.
Pois. é sempre bom reler este conto que já aqui chegou pela mão da nossa Mariana!
ResponderEliminarTão simples e bonito!
Estou à espera de mais uns "contitos" assim catitas!
beijinho e bom fim de semana!
IA
Obrigada, IAzinha.
ResponderEliminarSim, este conto (chamemos-lhe continho) foi escrito no ano passado, antes do concurso da OL da ESG - Vamos escrever um conto de Natal.
Há tantos momentos quotidianos que davam uma história! Mas lá aparece a voz do Grilo Verde: olha que tens trabalhos para corrigir, olha que tens coisas urgentes a tratar...
O escritor Mário Cláudio diz que quem não escreve (leia-se não tem
necessidade de escrever) diariamente não é escritor. Logo, não sou nem nunca o serei, mas que gostava de escrever mais, lá isso gostava.
Beijinhos para ti e para a Carolina, a tua mais recente personagem. Conhecida, é claro.
M.