domingo, 26 de março de 2023

Há Céu e Céu!

 

O piano

 

Ontem, a menina, nos seus bonitos sete anos, deu o seu primeiro recital de piano. Os pais, orgulhosos, filmaram e partilharam, felizes, o vídeo da pequena pianista, no seu vestido de saia rodada florida e de grinalda rosada bem visível no cabelo. No início da atuação, a professora de piano, sempre atenta aos pormenores, veio dar um retoque na postura e logo se afastou, discreta, para não perturbar o momento para o qual também tinha carinhosamente trabalhado.

Concentrada e ágil, a menina cumpriu bem a bela missão e, no final, foi  aplaudida.

Em casa, toca piano diariamente, com a ajuda insistente do pai, mas também diariamente diz que não gosta de tocar piano.

Ficou, porém, feliz com o seu primeiro recital. E disse, com a sua voz meiga e olhar azul: - Gostei muito de atuar.

 

 

A conversão

 

Há muito que não ouvia a palavra conversão. Hoje, na TSF, passaram excertos de uma entrevista a Alice Vieira, dizendo-se que a escritora se tinha convertido à religião católica, graças à sua grande amizade com José Tolentino Mendonça.

Esta será uma boa notícia para os católicos nestes dias em que a igreja passa por tantos problemas devido a comportamentos tão censuráveis: dos abusadores de crianças e de quem encobriu os crimes durante tanto tempo, abusando também dos seus poderes e não cumprindo o que é tantas vezes pregado de mãos erguidas e olhos postos no céu.

Felizmente há padres e bispos que vivem a sua vida sacerdotal de forma exemplar não esquecendo que todos os seres humanos, e não só, merecem respeito. Esses vão trabalhando muitas vezes em silêncio para a alegria comum e nunca para o sofrimento de inocentes.

 

A Maria do Céu

Nunca foi minha aluna, mas os professores da turma falavam dela. Era estudante do secundário, muito aplicada, muito comunicativa, gostava de participar em diferentes atividades da escola e queria ser advogada. Trabalharia muito para o conseguir, porque os pais tinham de fazer grandes sacrifícios para poderem pagar os estudos. Apoiavam-na em tudo para que conseguisse ser o que sonhava. E louvavam os professores que também a ajudavam. A vida sorria como o céu na terra.

      Maria era também muito bonita e saudável. Só que surgiu um pequeno problema cardíaco, de pouca monta, mas que exigia uma intervenção cirúrgica. Uma coisa rápida e simples, dizia o médico. Em breve, poderia retomar as aulas e a sua vida de jovem promissora. 

      Porém, no hospital, durante a operação, que seria pequena e corriqueira, as coisas correram mal. Muito mal. Como ninguém imaginou. Uns aparelhos não foram devidamente ligados e utilizados. Com esta anomalia, a Maria ficou paralisada e dependente a cem por cento. Para sempre. O hospital não reconheceu o erro, o assunto vai-se arrastando em tribunal, as ajudas são só algumas, a mãe, a principal e permanente cuidadora, faz tudo o que lhe é possível, com os fracos recursos de que dispõe, mas Céu só o vê no nome da sua menina e na maior alegria que seria ouvir uma palavra dita por ela, o que não acontece desde que saiu do hospital há mais de cinco anos.

Quando  entrou para a sala de operações, a Maria levava todos os sonhos de uma jovem que queria viver feliz e ser advogada; quando de lá saiu, o céu dos sonhos tinha-lhe desabado, não deixando sequer antever uma nuvem de esperança.


quinta-feira, 23 de março de 2023

Uma manhã feliz no meio de fadas também reais

 

A convite da professora bibliotecária Carmen Santos, do Agrupamento de Escolas de António Nobre, no Porto, eu e a Cristina Pinto, a ilustradora de As fadas do bosque das cores e das estórias (Editorial Novembro), fomos quarta-feira, dia 22 de março, à escola do primeiro ciclo de Montebello apresentar este nosso livro.

Dispostos numa mesa a árvore da amizade, as sete fadas, o livro, os marcadores, pequenas fadinhas, papel para ilustração, etc, uma professora disse com um largo sorriso e uma voz bem sonora sobre o grupo que estava para chegar:

- A minha turma é um espetáculo! 

- A professora também é, disse depois um miúdo.

A manhã prometia. Foram entrando dois grupos de alunos do segundo ano. Depois do intervalo, viriam mais duas turmas do quarto ano. 

Os quatro grupos eram formados por meninos e meninas nascidos em vários continentes e que ali estavam juntos a aprender e a viver os seus plenos direitos e deveres. Tal como os ramos da árvore que ali estava eram fortalecidos por troncos diferentes e próximos.


Já com os alunos e professores dentro da sala grande, nós, autora e ilustradora, contextualizámos a história, desta vez, com a ajuda de um 'bosque' de árvores penduradas, recortadas de jornais e revistas e, naturalmente, das sete fadas, bem visíveis nas suas diferentes cores.

Seguiu-se uma leitura de excertos do livro, feita por ambas de forma partilhada. Foi muito bom ver os meninos e meninas atentos ao texto e dizerem que tinham gostado.

E logo alguns bracitos se foram levantando para perguntas e respostas, nas quais foram referidos valores, lembrados também por eles próprios, como a amizade, a solidariedade, a união, o respeito pelo ambiente, etc.

E chegou o momento de os meninos desenharem a sua fada para depois ser pendurada, juntando-se às árvores do bosque, sobre o olhar orgulhoso dos seus autores.



Enquanto desenhavam, um menino perguntou:

- Posso desenhar um fado? 

Com o mesmo afeto, dissemos que sim, é claro.

A propósito, no corredor contíguo à sala, havia uma bela e útil colagem com junção de  afetos.

Em conversa com os professores que acompanhavam os seus alunos, falou-se das dificuldades atuais mas também das alegrias com os sucessos dos seus alunos, por exemplo, em língua portuguesa, uma vez que muitos provinham de países diferentes. 

Vimos trabalhos como os que uma professora tinha gravado com satisfação  no telemóvel, com retratos do poeta António Nobre, feitos na aula aproveitando restos de café. E também ouvimos de uma professora de voz meiga que muitos meninos e meninas gostam de ler e de ouvir histórias, o que trouxe ainda mais luz ao encontro.

À saída da escola, vários dos alunos que tinham estado connosco na atividade vieram abraçar-nos.

Para nós, foi mesmo uma manhã feliz no meio de fadas também reais. Oxalá que a alegria tenha sido partilhada.


Uma questão de preconceito ou um prazer de sábado à noite?

 

Num sábado à noite e num restaurante, com as mesas ocupadas por casais e pequenos grupos em sonora boa disposição, uma mulher de meia idade jantava sozinha. Sobre a mesa não faltava um copo alto de vinho reluzente. 

Eu estava com família e logo comentei que, se estivesse sozinha, não iria àquele tipo de restaurante. Talvez me ficasse por um café ou confeitaria. Ou comprava qualquer coisa para comer em casa ou no quarto de hotel, se fosse o caso.

Este acabou por ser um dos assuntos do jantar. Uma mulher estar sozinha num restaurante a saborear calma e legitimamente os prazeres da mesa é muito natural, referiu a minha filha. Por que não? 

Acho que, para ela, este era até um não-assunto. E ainda bem.

E eu, que vou tentando aprender e banir alguns preconceitos, dou comigo a reiterar  que tanto uma mulher como um homem o podem fazer em qualquer dia. Assim o queiram e possam. Por que não? E, embora não tenha dúvidas sobre isto, persistem em mim algumas dúvidas se eu o faria naquele contexto.

E as razões poderiam ser mais que muitas. Uma delas seria, também legitimamente, preferir ocupar o tempo de outra maneira. 

Ou seria sobretudo pelo velho e gasto receio de parecer o patinho feio?


segunda-feira, 20 de março de 2023

Voltar

 

Voltei a Bordéus uns trinta anos depois de lá ter estado num curso de formação. No percurso do autocarro do aeroporto até ao centro da cidade, ia vendo se reconhecia alguma coisa, mas de quase nada me lembrava. 

É certo que, em trinta anos, uma cidade e os seus arredores mudam muito a sua configuração, tal como a memória vai perdendo imagens e sobrepondo outras. Porém, à chegada, quando vi a praça com o grande e imponente teatro de Bordéus, as suas colunas encimadas por musas e deusas, logo o reconheci. Há trinta anos não entrei lá e desta vez também não. 

Depois, reparei que existem outros teatros na cidade, com espetáculos muito variados, um deles de nome do grande dramaturgo Molière. Não sei se têm público ou não. Oxalá tenham.

Muita gente vi em ruas e pracinhas enchendo esplanadas, em alegre convívio de fim de semana, vivendo a maravilha da vida em liberdade.

Da próxima vez, pode ser que vá a um espetáculo num dos diferentes teatros de Bordéus. Não posso é esperar trinta anos.

 

quinta-feira, 16 de março de 2023

Ou será desejo de vencer?

 

A vencedora do recente festival da canção, Mimicat (raio de nome!), lembrou, em entrevistas que deu, as pessoas que cantam e que têm muita dificuldade em divulgar os seus trabalhos.
Achei bem ter referido isso e logo levei para o lado de quem gosta de escrever.
De muitas pessoas que, tal como eu, vão escrevendo algumas coisas com amor, com respeito pela língua portuguesa, mas que muito poucos conhecem. Aqueles, porém, continuam a fazê-lo porque sentem necessidade de escrever, com o sentimento de reduzir diferentes formas de caos, acreditando que assim podem embelezar a vida, a sua e a de outros, apesar da imensidão de páginas já escritas por tantos e tantos autores.
O lucro que tive com os poucos livros que escrevi e publiquei, também como muitos certamente, não passou da alegria de ver e partilhar um objeto bonito e honesto, escrito com persistência e paciência, valorizado por quem o ilustrou, pensando carinhosamente nos eventuais leitores.
O trabalho da escrita poderá ser, contudo, uma pequena pegada deixada na terra. Ou será uma forma mais recolhida de procurar vencer?
 


quarta-feira, 8 de março de 2023

É bom receber e oferecer flores, mas não só.

 

Melhor seria que não houvesse necessidade de lembrar o Dia Internacional da Mulher. Ofereceram-me flores e fiquei contente. Lembrei-me de mulheres que conheço e de outras que imagino e que nunca receberam flores. Que bom seria que todas as recebessem. E não só neste dia.

E logo me apareceram outras palavras e ideias que tentei alinhar abaixo. Tanta coisa que o mundo tem ainda de mudar.

No entretanto, os privilégios dos homens continuam a sobrepor-se aos direitos das mulheres, embora, felizmente e nos países democráticos, o caminho se vá abrindo. Persistem, porém, discrepâncias no trabalho, nos vencimentos, no acesso a cargos, em casa, na educação dos filhos, na arte, etc, etc, etc

Continuemos a caminhar que bem é preciso.

Bom Dia da Mulher para todas. E que todos o reconheçam. Assim, todas e todos seremos bem mais felizes.


 

Para além das flores,

que não haja humilhações nem maus-tratos.

Que ninguém se sinta superior nem inferior.

Que toda a gente possa estudar e saber cada vez mais (impossível não lembrar o que está a acontecer em escolas do Irão, em que raparigas são envenenadas).

Que o direito ao descanso e ao tempo livre exista sem discriminação.

Que o respeito mútuo exista dentro e fora de casa.

Que os elogios mimem quem está perto e não só quem está longe.

Que todo o trabalho seja valorizado e dignificado.

Que ...

Que ...

 

  


terça-feira, 7 de março de 2023

Tarde de domingo com um filme dentro

 

Fomos ao Alameda. Éramos apenas quatro pessoas na sala 5 do cinema. O filme escolhido foi Mascarade, de Nicolas Bedos. O cenário é a bela Riviera francesa. É lá onde as personagens se encontram, desencontram, fingem, são verdadeiras, entram em jogos de enganos e sedução e muitos etecetras de vidas luxuosas com muitas paixões e ainda mais frustrações. Mais concretamente: uma atriz vive com um jovem acompanhante. Este liga-se a uma rapariga manipuladora e ambiciosa que entra na casa da atriz e na vida de um homem, que, com ela, julga ter recuperado a juventude e felicidade perdidas, confrontando-se, porém, com desesperada solidão. Achei piada ao filme. Mas sou suspeita, porque gosto da língua francesa, de histórias contadas em filmes franceses, de paisagens desse país, etc.

A dança que desceu do filme

 

Uma das músicas do filme Mascarade é La Bambola, uma canção italiana do final dos anos sessenta e que, tal como muitas canções dessa época, desperta emoções  em quem viveu esses anos do século XX. Inesperada, ainda assim, e bonita, foi a reação do casal que tinha estado a ver o filme. Passava a ficha técnica, acompanhada dessa canção. Descidos os degraus, o casal começou a dançar, bem juntinhos. Como nos slows de antigamente nos bailes de garagem. Ambos pareciam felizes e sem máscaras. Não sei se pelo poder do cinema. Ou da música. Ou do amor. Ou de uma simples tarde de domingo com chuva e sem pressas.

 

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Sábado à tarde

 

Comprei há dias uns vasinhos com amores-perfeitos e pu-los num canteiro, sem os transplantar. O tempo era pouco e o desejo que a chuva voltasse era muito. Ela chegou, benfazeja, ontem à noite, foi ficando e não se despediu até hoje. Há pouco vi que os amores-perfeitos ainda estavam mais perfeitos nas suas pétalas vivas de veludo amarelo. Também graças à chuva, ainda que leve.

Abri a janela que dá para a casa vizinha. E que, por isso, raramente abro de par em par. Mas há uma laranjeira entre a minha casa e a outra casa que também tem janelas e quem lá mora, tal como eu, gostará que haja uma laranjeira alta de permeio. Diante mim, está o computador e, de vez em quando, volto-me para ver a luz da tarde e vejo-a semeada de laranjas. 

À minha esquerda, tenho um rádio ligado na antena 2. Lídia Jorge está a ser entrevistada. A voz do jornalista não me é familiar,  mas agrada-me o modo como conduz o diálogo em que a escritora fala de muita coisa e da mãe e do livro que lhe pediu antes de morrer. Retenho frases como 'A literatura é sempre uma carta de amor por alguma coisa, mesmo sendo cartas de raiva'. E também episódios da vida da mãe em que, no lar de idosos, em vez da reza repetida do terço, preferia ouvir histórias bíblicas. Ou de conversas em que perguntava à filha por que não preferia fins felizes para os seus livros.

O meu neto vem ter comigo com o seu linguajar variado e monossilábico. Sento-o ao meu colo. Põe os dedinhos nas teclas do computador e começam a aparecer letras e mais letras em filinha. Volta para a sala onde estava com o pai e o silêncio volta também à luz aberta do quarto que tem a janela, donde se veem as laranjas da casa vizinha. 

Talvez amanhã  transplante os amores-perfeitos. Talvez amanhã tenha outros momentos simples e perfeitos como estes. Oxalá. Ainda que com a consciência de que o mundo, esse, não.        


terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Os amuos e um saco que se julgava roto

 

Desde pequeno que se habituara aos amuos. Da mãe, do padrasto, dos irmãos. Os amuos punham-no triste e indefeso. Querer falar e obter apenas respostas frias de não mais que uma ou duas palavras era pesado.

Desde muito novo, dava consigo a pensar nestes momentos de incomunicação prolongada, que, de repente, irrompiam na família e estragavam toda a alegria que era quase sempre breve. Os amuos, por sua vez, eram longos. Chegavam a durar dias e abriam feridas de culpabilidade que demoravam a curar.

Às vezes, bastava uma palavra mais transviada, uma recusa em fazer qualquer coisa, um desacordo momentâneo para logo a face da outra pessoa se fechar como castigo, tantas vezes misturado com acusações que irrompiam de todos os tempos e lugares.

Não, quando fosse adulto não seria assim. Em vez de amuo, recorreria ao diálogo. Sem ruídos acusadores nem silêncios fechados à chave, como estava habituado.

Com o tempo, vieram os sorrisos empáticos do amor. Uma nova vida começou. Na primeira casa onde viveram foram muito felizes. Na segunda, já começaram a aparecer situações mais desavindas, sobretudo depois da chegada do bebé.

Começou a amuar por muitas e variadas razões que o contrariavam. Ela, porém, continuava a falar e a viver os seus dias.

Embora pensasse que os amuos de antigamente tinham caído em saco roto, afinal estavam bem presos a si e era ele próprio que o desatava.

Ela, porém, não deixava que os sons dos seus dias se interrompessem. E assim o saco em que ele transportava os amuos foi-se esvaziando. Por inutilidade.

 

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Para quem quiser ficar mais ao corrente das Correntes D'Escritas

 

Vi agora no blogue 'Horas Extraordinárias' de Maria do Rosário Pedreira este link para aceder às últimas Correntes d'Escritas.

Maria do Rosário Pedreira venceu também o Prémio Literário Casino da Póvoa, com o livro de poesia O meu corpo humano.  


 https://www.cm-pvarzim.pt/territorio/povoa-cultural/pelouro-cultural/areas-de-accao/correntes-d-escritas/correntes-descritas-2023/

domingo, 19 de fevereiro de 2023

Ontem foi para mim um dia bom

 


As Correntes D'Escritas já contam com mais de vinte edições. Ontem, sábado, fui lá, pela primeira vez, ao Cine-Teatro Garrett, na Póvoa de Varzim.

A grande figura homenageada este ano foi Ana Luísa Amaral, para além de Nélida Piñon e Luís Sepúlveda. As comunicações na sala principal eram subordinadas a um verso da Poeta que nos deixou no ano passado e que também nos deixou uma grande obra. 

Para além dos seus poemas que os oradores liam ou referiam, também ouvimos falar das suas compotas, das quais gostosamente partilhava receitas, dos sabores inesquecíveis da carne assada com batatas que cozinhava com esmero para os amigos, do amor pela vida e pelos prazeres que ela  proporciona, etc.

 

'Ler e escrever é resistir - lê-se na capa

 

Ontem à tarde, nas CORRENTES D'ESCRITAS, depois de almoço, enquanto que na 'sala de ensaios' eram apresentados livros, na 'sala de atos' era apresentada a revista virtual e gratuita Palavrar.

Foram lidos textos da revista cujo tema era a Paz. E gostei muito da leitura - nalguns casos, feita pelos autores - porque foi sem pressas nem correrias e quem lia e quem ouvia parecia saborear os sentidos das palavras e o que elas contavam.

 

No texto constante da apresentação da revista, pode ler-se, para além de outras coisas:

'Caracterizada pela diversidade de rubricas e assuntos (História da literatura, escrita criativa, escrita motivacional, revisão e edição de textos, crítica literária), a «PALAVRAR — Ler e escrever é resistir» partilhará crónicas, contos, histórias infantis e poesia, de autores desconhecidos e de vozes conhecidas no panorama literário nacional.Será leve e próxima dos leitores, mas não superficial. Funcionará como plataforma de difusão de novas vozes literárias, alargando o pouco espaço atualmente existente em Portugal com esse propósito.

Conheça a nova revista literária portuguesa (...)'.


segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Bom dia dos (e)namorados

 

Aurélia de Sousa (1866-1922)

'ILUSIONISMOS'


Lurdes Castro - 1975



'Repara, meu amor: são duas da manhã

e eu ainda aqui a começar

(na minha hora que tem sido a hora

onde poemas são e se entrelaçam)


São duas da manhã e sem luar:

não sei atravessar-te pelo vidro

e criar-te metáfora de brilho


São duas da manhã e o céu

tão escuro como carvão-carvão:

onde vou inventar pequenos seixos

para fazer fogueira que te escorra?


Estamos dentro da noite que é mais noite

e que é que eu trago para te acordar?


Olha: ponho esta lâmpada a fingir

de estrela mais polar do que a polar,

e, vês, o vidro em frente: não me vejas

enrolada a escrever: é espelho mágico


e agora eu era o verso mais perfeito

e tu a mais perfeita das palavras

e às duas da manhã trago-te: um céu,


são estrelas e mil luas, são seixos

mais galácticos que a luz, mais velozes

que a luz e no teu corpo, vês, a minha mão

 
é chão feito de luz e estrelas e do

carvão-carvão nasceu um sol e do meu

pé, repara nesse céu: fogueira interestelar


e o que eu tinha escondido atrás do Tempo

e Deus: um tempo a sério para tu entrares

em bola de cristal feita de espelhos'.

Ana Luísa Amaral

 

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

AMADEO

 

https://cinecartaz.publico.pt/filme/amadeo-409386

 


Antes que saísse do cartaz ou passasse para horários que não nos convêm, ontem, às 13.40, estávamos a entrar na sala 1 do Centro Comercial Alameda para ver o filme  AMADEO sobre Amadeo de Souza Cardoso, nascido em Manhufe, Amarante, em  1887, tendo vivido apenas 30 anos. Em Paris, onde conviveu e trabalhou com grandes pintores modernistas, conheceu Lucie por quem se apaixonou e com quem partilhou a sua vida e a sua obra.

Realizado por Vicente Alves do Ó, Amadeo é representado por Rafael Morais e Ana Lopes dá vida a Lucie: um belo e jovem par de atores que contribui, na minha opinião, para reafirmar a beleza que perpassa do filme pelas paisagens, cenários, roupas, etc. Ficou-me/nos esta ideia e também de calma pela entrada num ambiente sereno em que havia arte, para além dos trabalhos do pintor que eram mostrados. Alguns, muito poucos, aparecem a ser elaborados, mas eu gostaria de ver mais pintura de Amadeo, de ficar a saber mais.

Talvez o tempo dedicado à gripe pneumónica, que atingiu a família, pudesse ser reduzido, para desenvolver mais a dimensão do pintor, embora fosse pertinente a inclusão da epidemia para revelar o lado humano de todos que viviam naquela  bela casa.

A fotografia é excelente e o som também, o que ajuda os espetadores a participar melhor do que é contado, haja ou não um forte argumento. 

Depois do filme, já com a sala vazia, ficámos, no lugar, a comentar o que se tinha desenrolado diante dos nossos olhos. Ao fundo da sala, estava a senhora da limpeza à espera. Em breve, haveria outra sessão. Tal como na nossa, estaria pouca gente, por certo, mas haveria, com certeza, pessoas a ficar com vontade de conhecer mais sobre a vida e obra deste pintor, que também deu o nome ao belo museu que existe em Amarante.

 

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

A chave

 

Gostaria de saber dizer o que se sente quando se entrega a chave. A chave de uma casa onde se viveu longo tempo de juventude, ao qual se seguiu um tempo mais longo aonde se ia como se continuasse a ser a sua casa, embora já lá não morasse. A morar tinham ficado os pais e muitas coisas que faziam recordar outras coisas, umas boas, outras nem tanto.

Quando entregamos a chave é como se uma parte da vida vivida estivesse a marcar um ponto final, sabendo-se, naturalmente, que nada nem ninguém é eterno.Tentar contrariar esta realidade é puxar por sofrimentos que, se puderem ser evitados, tanto melhor.

Pela parte que me toca, gostava de encontrar uma chave, cada vez mais apaziguadora, para as muitas chaves que vamos entregando, de uma maneira ou de outra, ao longo da nossa vida. 

 

domingo, 5 de fevereiro de 2023

Compacto de domingo com mar ao fundo

Pela fresca, em manhã bastante fresca

Saí de casa cedo. Parte do meu domingo seria passado na 'minha' cidade com mar ao fundo. Antes das nove, a TSF passa o compacto de 'Postal do dia' de Luís Osório. Ouvi tudo com agrado. Estava sol e eu conduzia devagar. Não tão devagar, acho eu, que irritasse outros condutores. Àquela hora, também os havia poucos.

Lá chegada, vi que no espaço da feira semanal, havia uma feira de velharias. Devia ter peças engraçadas. Noutro tempo, não resistiria e compraria alguma coisa. Hoje, andei sempre, embora não deixasse de olhar.

 

A bela adormecida

Ainda tenho nos olhos a foto com o palco mágico de A Bela Adormecida, espetáculo aonde a Clarinha foi com os pais.

Com o belo bailado diante dos seus olhos e a música a envolvê-la, a menina ouvia, escutava, via, olhava...

O primeiro ato foi visto com olhos e ouvidos atentos do princípio ao fim; a meio do segundo, já encostava a cabecinha à mãe; no terceiro, aconchegou-se ao colo do pai. Daí a nada, adormeceu. Era uma verdadeira bela adormecida.

 

Vamos indo e vamos lendo

Apesar das suas mais de quinhentas páginas, já li o thriller quase todo Cem Anos de Perdão de João Tordo.

No dia 3 de fevereiro, o autor viria à Biblioteca Municipal de Gondomar para falar da sua obra e deste livro em particular, como havia sido anunciado na sessão anterior. Na minha cabeça, ficara a data registada e nem procurei confirmação.

Como não tive tempo de ler tudo antes da sessão, aproveitei uma longa sesta do meu neto e li bastantes páginas finais do livro. Nada de que Daniel Pennac não tenha previsto nos seus Direitos do Leitor. Estava ainda mais disponível para a sessão que seria daí a horas.

Embora não goste de sair à noite, era bom pensar que iria ao encontro dos 'Encontros com Escritores'. Telefonei a uma amiga e lá fomos, contentes e felizes, à hora marcada. Porém, à hora marcada, a Biblioteca estava ... fechada.

Ontem, liguei para a Biblioteca porque nada via no site. Sim, haverá a sessão, mas noutra altura. Será anunciada atempadamente. Sim, foi dito na sessão anterior, mas nada foi escrito posteriormente, como pode confirmar. Que pena terem vindo ao engano. As nossas desculpas.

Tal como havia registado a data, também registei: mais vale não acreditar logo na palavra dita e esperar pela palavra escrita. Enquanto isso, vamos indo e vamos lendo.

 

'O sol é histérico', disse ele

Se esta sessão (ainda) não se realizou, o encontro com Valter Hugo Mãe, no final de janeiro, teve lugar e foi muito bom. A sala estava cheia e havia gente jovem, o que nem sempre acontece nestas coisas.

A sessão começou, como habitualmente, com uma abordagem breve de algumas obras e temas trabalhados pelo autor, seguindo-se um diálogo mais específico sobre o livro escolhido, neste caso, Contra Mim, um livro quase todo escrito durante a pandemia e que resultou de crónicas/episódios  dessa altura e que o autor viria a unir e a articular. Valeu-lhe até o prémio da novela e romance da APE. A uma pergunta se o livro era uma romance, respondeu com graça e  espontaneidade em modo irónico: se ganhou o prémio do romance é porque era.

Uma coisa foi pelo autor confirmada: é autobiográfico e foi repetindo situações pessoais e familiares vividas e contadas no livro. Se morresse, disse ele, na pandemia, durante a qual 'parecia não haver futuro', o passado tinha valido a pena, tal como o arrumara no livro.

Quanto ao trabalho de escrita, disse realizá-lo virado para a parede e de janelas fechadas para não entrar luz exterior. E, apesar de viver perto do mar, em Caxinas, Vila do Conde, prefere as nuvens ao sol. E mais uma frase surpreendente se lhe ouviu: 'o sol é histérico'.

Sobre a utilidade da escrita, disse que escrever é um modo de dizer que gosta de ser útil e de continuar a ponderar o mundo melhor.

E esta ideia não é nada histérica. Como esperei deste domingo bom e de sol com um belo mar ao fundo.

 


 

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Às vezes é complicada a comunicação

 

Em verdade vos digo: também não sou exemplar quando converso com alguém, reconheço. Às vezes, interrompo, se calhar não dou tempo a que o assunto termine, etc., mas, embora ninguém seja bom juiz em causa própria, acho que há pior. Como quando se quer dizer alguma coisa que se considera ser importante para ambas as partes e logo ouvir um juízo de valor a falar mais alto e a cortar o que se quer comunicar.

Perdemos tanto tempo a não ouvir os outros e a falar sobretudo de nós próprios, como se só o altar de cada um fosse importante.


quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Muita coisa no mesmo saco

 

 

Sábado passado, fui a um workshop de costura, bem perto da minha casa. Éramos cinco mais a monitora que nos ia apoiando e ajudando nos cortes e na costura.

Quando de lá saímos, cada uma trazia o saco que tinha feito. A manhã tinha sido bem passada a construir, a falar, a rir, a aprender, a tomar cafezinho com palmiers, etc.

E impossível não me lembrar da minha adolescência em que a minha mãe nos mandava, a mim e à minha irmã, para a costura. Em pequena, tinha gostado de fazer roupa para as bonecas , mas para a nossa roupa não tinha jeito nem gostava. E até me sentia mal ao ver a outra rapariga, também aprendiz, que levava muito a sério a costura e punha questões sobre os pontos ou os alinhavos com muito esmero e seriedade.

E também me lembrei de uma almofada em patchwork que fiz numa retrosaria da rua das Flores, no Porto, já há alguns anos. Já tenho saudades de lá passar. Gosto muito das cores das retrosarias e das linhas e dos botões e dos tecidos e dos cestinhos com mil coisas pequenas e organizadas...

E como correu bem, já marcámos a próxima sessão para fazermos uma almofada com tecidos e rendas que tenhamos em casa. Depois mostro. E, com certeza, outras coisas me virão à memória, mesmo que não goste muito de meter tudo no mesmo saco.

 

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

As casas

 

 'Algumas casas são como animais no dorso dos quais subimos, deixamos de as frequentar com a impressão de nos haverem abandonado ou morrido'.

In Valter Hugo Mãe, Contra Mim, Porto Editora, 2020, p.32

 

Há dias, no velório da mãe de uma amiga, ela dizia-me: 'agora tenho de tomar conta da casa, somos também filhas das nossas casas'.

Embora partilhe desta ideia, quando posso, vou-me despojando de algumas coisas de que não preciso e que podem fazer mais jeito a alguém. Depois do falecimento da minha mãe, mais vontade tenho de o fazer. A minha mãe, talvez por ter vivido a escassez de bens essenciais durante a segunda guerra mundial, aproveitava tudo e achava que tudo podia fazer falta, sem deixar, contudo, de ser generosa.

Enquanto ela pôde, se alguma coisa se rasgava ou estragava, fosse o que fosse, logo a cosia ou consertava. E ponteava meias, coisa que as novas gerações nem sabem o que é. Nestes casos, quando a pessoa morre, são precisas muitas horas para separar o que pode ser útil a outros, respeitando o que fez parte de toda uma vida, e que resultou muitas vezes do trabalho amoroso, paciente e manual.

Estes contextos ainda acentuam mais o que penso há muito tempo: quero conservar sobretudo o que para mim e para a família mais chegada é importante, para não dar muito trabalho às minhas filhas quando eu morrer.

Contudo, como dizia essa minha amiga, também me sinto filha de casas que, de uma maneira ou outra, me foram abrigando ao longo da vida, embora com a distância que o tempo e um natural abandono mútuo vão ditando. Por exemplo, tenho ainda presente a casa - com a sua frondosa laranjeira - onde vivi a infância e parte da adolescência, a casa mais moderna - mas sempre com flores e verduras - onde vivi até casar, etc.

Ah, e a casa de lavoura das minhas tias, onde brincávamos muitas vezes perto de abundantes cebolas, batatas, alhos,  alfaias agrícolas, hortaliças acabadas de colher nos campos; no meio do austero afã para que todas as tarefas se cumprissem a tempo e horas, etc.

E a casa dos meus avós paternos, para onde eu e a minha irmã nos escapávamos sempre que podíamos, porque era apetecível pela sua alegre vozearia e estridentes gargalhadas.

Quando nos abeiramos de casas da nossa vida, ou nos lembramos delas, impossível não ouvir palavras ditas e ouvidas dentro ou fora das suas quatro paredes - ainda que estas estejam em ruínas ou só se ergam na nossa memória. Tal como acontece com os nossos pais, ainda que já nos tenham morrido.