domingo, 31 de outubro de 2021

Uma boa tarde de sábado - como se previa

 


Ontem, sábado, dia 30 de outubro, foi lançado o romance Quinto Império - Profecia de Perdição, de Manuel Maria, publicado pela Editora Lugar da Palavra, conforme convite há muito divulgado.

A capa, muito elogiada, de Ana Bessa.

João Carlos Brito (Editor); Vítor Oliveira (Apresentador); Manuel Maria (Autor) e o representante da Junta de Freguesia de Paranhos, aqui nas suas palavras de boas-vindas.


Vítor Oliveira, professor, formador, blogger (tem o blogue Carruagem 23), na apresentação do livro e da sua leitura do romance. Atendendo ao interesse e profundidade da sua comunicação, foi sugerido que fosse publicada.

 

O autor - homem de palavras e de palavra, como referiu o Editor -, comunicando as várias dimensões do seu trabalho para a realização desta obra que teve o apoio do Ministério da Cultura e que agora chegava aos leitores.


A fila de pessoas para os autógrafos foi longa e demorada. Havia amigos que se reencontravam, abraçavam, recordavam tempos passados, falavam de projetos, da família a aumentar, etc. O autor tinha sempre palavras gentis para cada pessoa que se aproximava para ter o livro autografado.


 
 
Manuel Maria sempre com grande atenção aos outros, afeto, alegria, gosto pelas palavras ditas, lidas e escritas, gerando um ambiente amistoso em que os livros sobressaem como objetos artísticos realizados com rigor, seriedade, amor, atenção aos pormenores, para que os leitores possam desfrutar deles o melhor possível.

Digam lá se não houve bons motivos para uma boa tarde de sábado.  Quem conhece o autor já o previa.

Boa sorte, Manuel Maria.

Boas leituras.


O solitário da rua - os dias mais pequenos

 

Os dias pequenos talvez não sejam muito propícios aos solitários, como eu, o solitário da rua. As noites chegam cedo, fico mais tempo dentro de casa e com a luz acesa. Gosto de chegar da repartição e ir tratar das coisas do quintal ainda com a luz do dia. As ervas daninhas não me dão tréguas. Já apanhei as abóboras manteiga e protegi-as da chuva, embora me tenha habituado a ver abóboras ao sol e à chuva na casa dos meus avós.

Os dias pequenos talvez não sejam muito propícios aos solitários como eu, o solitário da rua, apesar de gostar do som da chuva a cair quando estou em casa. E em domingo caseiro ainda me sabe melhor, mas hoje a chuva é muita, a noite vai chegar mais cedo, desliguei a televisão para não ouvir falar mais uma vez de partidos políticos com muitas guerras dentro. Chove tanto nestes dias de finados que muitos mortos não serão visitados, ainda que as visitas devessem acontecer sobretudo em vida. Também eu, o solitário da rua, não fiz as visitas que poderia ter feito.

Os dias pequenos talvez não sejam muito propícios aos solitários como eu, o solitário da rua, porque fica-se mais ensimesmado, mais reflexivo e a vitamina da luz natural faz algum dano. Não sei por que razão às vezes penso que se fosse mais novo preferia viver num país do norte da Europa, daqueles em que, quando o sol aparece, as pessoas enchem as ruas como se fosse uma festa.

Os dias pequenos talvez não sejam muito propícios aos solitários como eu, o solitário da rua. E os dias grandes sê-lo-ão sempre, interrogo-me. Vou pensar nisso porque, como a noite vem mais cedo, tenho mais tempo. Mas, como amanhã se prevê sol, o melhor será não o desperdiçar.


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sábado, 30 de outubro de 2021

Três dias no 818

 

Ir passar três dias fora descansava-lhe a mente. E seria completamente diferente desta vez.  Provavelmente não sairia do hotel. Chegara até ali não para visitar a cidade, mas para ser babysitter do seu menino mais pequenino.

Quando chegaram, souberam o número do quarto: 818. 

Era grande, com vista, ao longe, para uma infinitude de automóveis em movimento em estradas e redondas encruzilhadas, para um mar de bairros e para um casario imenso de todos os tamanhos e alturas, porque Braga é uma cidade em grande expansão. Felizmente via-se muito, mas não se ouvia quase nada.

Depois de comer, o bebé adormeceu. Ela fechou um pouco mais a cortina e ficou a olhá-lo. Dormiria, com certeza, um  soninho tranquilo até a mamã voltar.

Ela ia-se apercebendo do evoluir da tarde pela cor do céu que se ia carregando.

Pegou no telemóvel e esboçou um post. Viria a apagá-lo no dia seguinte. Era lamechas para o seu gosto. Acontecia-lhe muito. Começava a escrever e as palavras escorriam com fartura. No dia seguinte, era mais o que modificava ou apagava do que o que aproveitava. E ainda bem, pensava. Salvo as devidas distâncias, se Marcelo não agisse enquanto pensa, às vezes seria bem melhor.

E assim passaram três dias. Diferentes e bons. À volta de fraldas, papinhas, brinquedos e sorrisos e mimos. 

Quando a filha chegava, feliz, podiam conversar e fazer o ponto de situação. Mãe, para ti é seca? Sei que gostas de ter o teu tempo. Claro que não, respondia ela, com sinceridade. Gostava de ser útil e podia estar todo o tempo com o seu menino.

E um dia, quando vieram almoçar, o átrio do hotel estava cheio de luz e ainda sem ninguém. Ela pensou que podia ser cenário para uma história, mas não sabia se iria concretizar. Talvez por incapacidade imaginativa, preferia as histórias vividas ou conhecidas.

O que sabia era que estava a gostar daqueles três dias num hotel, a maior parte do tempo passado no quarto. Daí três dias no 818.


 

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Desculpem!

 

Ela vivia a pedir desculpa. Pedia desculpa por se atrasar um bocadinho, por estar a interromper ou a ser chata, pelo trabalho não ter ficado perfeito, pelas palavras usadas não serem as mais adequadas, por ter-se calado quando devia ter falado, por ter falado quando o melhor era o silêncio…
Até nas idas ao cemitério pedia sempre desculpa aos seus mortos pelas falhas tidas com eles ao longo da vida.
Aos filhos pedia desculpa insistindo na ideia de não ter sido a mãe que teria desejado ser. Os filhos já se cansavam da repetição.
As vozes mais amigas diziam-na bonita, no seu corpo alto e de rebelde cabelo escuro, mas que tinha de acreditar mais em si e não estar sempre a menosprezar-se e a pedir desculpa.
Um dia, demorou um bocadinho mais a ver-se ao espelho. Viu-se a envelhecer e ficou a olhar o passado vazio de elogios. Não os ouvira nem de si própria.
Apesar de todas as lacunas, como o tempo era voraz, tinha mesmo de deixar de pedir desculpa tantas vezes. Exagerava, tinha consciência disso. Fazia-o com sinceridade, mas mais parecia um vício de alguém que se desvaloriza constantemente causando até  constrangimentos.
Saiu. Já na rua, encontrou uma amiga. Foram tomar um café. Na conversa veio à baila a obsessão do pai da amiga pelos cânones da religião que professava. As ideias que defendia eram as aprendidas no catecismo há muitas décadas. Sem nada tirar e sem nada pôr. Qualquer questionamento ou desvio de práticas logo ele considerava heresia e por isso punha ponto final ao diálogo, mesmo com os filhos que, com o tempo, foram deixando de ser praticantes.  Diziam precisar de outras águas e não viver só de água benta.
À noite, à mesa, ela contou a conversa tida com a amiga. Um dos filhos disse, convicto: compreendo. Às vezes também sinto vontade de nem sequer pedir desculpa a ninguém.
A mãe ouviu e não pediu desculpa.


terça-feira, 26 de outubro de 2021

Conversa com crianças dentro

 

- Tive uma reunião no hospital.

- E correu bem?

- Sim, mas ao passar pelas crianças na sala de espera tive um sentimento diferente.

- Talvez por não ires trabalhar há uns meses.

- Olhei para elas e sentia-as de forma diferente também. 

- E sabes porquê?

- Porquê?

- Porque agora és mãe.

 

sábado, 23 de outubro de 2021

A força de tardes assim

 

Oiço pouco trânsito na rua. Na casa ao lado, de vez em quando ouvem-se crianças a brincar. Junto de mim, sobre a mesa da cozinha, está uma caixa com folhas de papel que, desde que aqui estou, fui recortando de revistas antigas (em breve, direi para quê).

A meio da tarde, liguei o rádio na antena 2 à hora em que falam de língua portuguesa e de literatura. Nada melhor para uma tarde de um sábado tranquilo em casa. Para mim, é claro.

Depois, na rubrica 'A força das coisas' de Luís Caetano, houve uma longa entrevista com Isabel Lucas que trabalha no Público e escreveu novo livro sobre viagens. Agora o espaço visado é o Brasil e alguns dos seus autores,  como Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e outros.

Foi uma longa e interessante conversa sobre os diferentes lugares que a autora visitou para construir o seu livro, sobre as pessoas com quem conviveu,  sobre as muitas histórias ligadas a essa viagem de trabalho e de encantamento.

Uma conversa calma cheia de emoção, em que os livros e os seus autores são bons companheiros para o prazer da leitura e para ajudar a conhecer as pessoas, as terras, os hábitos, a cultura. E, realço, o diálogo foi sempre claro, amistoso, culto, vivo, mas sem pressas. Tão raro, meu Deus!

O programa acabou e a noite já escureceu a janela. Vou fechar a caixa dos recortes das folhas, que ainda vai a menos de meio. Sinto vontade de ler um bocadinho. Com a força que vem de coisas assim.

 

Cores de outono em Londres

 





quinta-feira, 21 de outubro de 2021

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Os barcos e as gaivotas

 

São muitos os barcos de recreio que circulam no rio Douro, entre o Cais de Gaia e a Afurada. Silenciosos ou com mais ruído vão passando para lá e para cá, num vai-vem colorido de turistas e de publicidade a marcas de vinho do Porto. Isto de passear no rio, nem que seja só por uns minutos, pode animar o corpo e a alma já que a alegria de brincar às viagens curtas num longo rio é para todas as idades. E quem vê corpos não vê corações, embora se pressinta o seu pulsar se o observador não for uma canoa demasiado pequenina.

Em pleno outubro, estes barcos turísticos, uns mais vagarosos outros mais aventureiros, navegam como se fosse verão, apesar de todos os elementos mostrarem sinais de outono, sobretudo ao início e ao final do dia. 

E as gaivotas, nos intervalos em que o rio não é riscado por rastos de espuma de barcos mais velozes, valsam com leveza na água ou aproximam-se, sem medo, dos pacientes pescadores à linha, pousando nas grades do passadiço ou sobrevoando os telhados. Ou abrem as asas e voam bem alto. Não sei se para verem a serra do Pilar ou a ponte Luís I mais de perto. Ou outras belezas das duas margens que não cansam o olhar. Ah, e o olhar humano é também um bom modo de voo.





segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Às vezes sentia vergonha

 

A Câmara do concelho onde vivo teve como presidente, durante largos anos, um homem que era muito conhecido sobretudo por más razões da sua governança. Ele eram os berros, ele eram os amiguismos, ele eram os eletrodomésticas para conquistar votos, ele eram as gaffes, ele eram os populismos, etc.

Nas diversas conversas quotidianas, as pessoas diziam que essas e outras verdades existiam, assim como havia negócios em que ele ficaria sempre a ganhar, mas que havia obra feita. Pensada e arquitetada durante o seu mandato ou não, várias obras apareceram, de facto, nessa altura. 

Porém, era fácil surgirem, porque os novos tempos assim o exigiam a qualquer um e no concelho, até então, havia muito pouco. Portanto, tudo o que se fazia era visível.

Nesse tempo - e ainda agora - seja onde for que vá, se disser donde venho, logo vem à baila o nome da criatura que, felizmente, deixou o cargo há bastantes anos. Às vezes eu sentia vergonha de dizer, porque parecia logo ouvir: diz-me donde vens, digo-te já quem és. 

Não seria necessário justificar fosse o que fosse, mas depressa fazia saber que nunca tinha votado nele.

Talvez me tenha lembrado disto hoje porque aparecem demasiadas figuras públicas que deveriam dar exemplos de honestidade à comunidade que as elegeu ou que as colocou em determinado lugar, mas olham só para si e para os seus desejos ou para o seu próprio proveito ou para o poder que querem garantir. E isto acontece na política, na banca, na igreja, etc. 

Como se o mundo que existe fosse apenas o seu mundo. E sem precisar sequer de dar justificações.

 

sábado, 16 de outubro de 2021

Não te reformes, disse ela.

 

Há uns anos, em dias de mais cansaço, pensava na reforma e, em conversas de intervalo para café, comunicava-o às vezes a colegas. Eram minutos em que, embora um bocadinho a correr, se falava das nossas vidas como gostos e desejos, estados da saúde (sem muitos pormenores, senão lá ia o intervalo todo), idas aqui ou ali, coisas de etc.

Num dia em que falei do assunto, uma colega, de quem sou amiga, disse-me: 'enquanto puderes, não te reformes. Dizem logo que temos todo o tempo do mundo e pedem-nos tudo e mais alguma coisa'.

Apesar de já ter passado bastante tempo, lembro-me bem da conversa e, em muitos casos, sei que é assim, mas não devia ser, na minha opinião. Quem se reforma, depois de longos anos de trabalho, tem toda a legitimidade de ter tempo para se dedicar a coisas que lhe dão prazer, como passear, ler, ir ao cinema, jardinar, aprender outras coisas, dedicar-se a outras causas, etc. sem nunca ouvir: 'podes porque não tens nada para fazer'.

Isto faz-me lembrar uma peripécia contada por uma das minhas tias, que sempre viveram numa casa de lavoura: um dia, um homem que lá trabalhava estava na hora do descanso, a seguir ao almoço, já depois de ter trabalhado longas horas. Um outro homem, que  descarregava um carro de bois, voltou-se para ele e disse-lhe: enquanto descansas, anda-me ajudar!

Ora, não ponho em dúvida a ajuda a família, o que, para mim, é inquestionável. E às vezes a gestão não é fácil porque muitos de nós, que já não estão no ativo, temos filhos, netos e pais. Daí chamarem-nos a geração sanduíche. 

Se às vezes é difícil gerir tudo, também é um privilégio sentir que ajudamos e aliviamos um bocadinho aqueles que amamos. Gosto muito de o fazer, mas também gosto muito de ter algum tempo por minha conta. E tenho-o, felizmente. Oxalá todos e todas pudessem dizer a mesma coisa. Com alegria e sem culpabilidade.

 

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

'Não tenho nada que fazer, estou reformado'

 

Conheço-o desde que se casou. Um homem alto, simpático, com as suas camisas aos quadradinhos, calças de bombazine e pulover. Foi serralheiro durante muitos anos e trabalhava por turnos. Às vezes, penso que teria tido capacidade e inteligência para uma profissão, por exemplo, ligada à saúde. 

Quando chegava ou partia de madrugada, tentava não acordar ninguém, sobretudo a mulher, a quem sempre chamou pelo petit nom e que sempre foi o amor da vida dele. Continua a sorrir com as histórias de namoro que ela sempre conta. Fica alegre com a sua alegria, apoia-a na sua tristeza, poupa-lhe os desgostos que pode e, mesmo sem pensar em promessas feitas, sempre esteve presente 'na saúde e na doença, na alegria e na tristeza...' 

Pois bem, depois de muitos anos de trabalho dedicado, veio a reforma. E as doenças dos familiares com quem viviam. E os seus cuidados diários. E as sua mortes. E as preocupações e ajudas mais variadas de pai. E as chamadas de vizinhos que viviam sós e precisavam de alguém...

Sempre o vi em atividade e quase esquecido de si próprio. Para ele, os outros, sobretudo a família mais próxima, sempre contaram mais.  Uma vida inteira de disponibilidade e generosidade, sem má cara, sem más palavras, sem qualquer queixa, sem azedume, sem cobrar nada.

Como a idade não perdoa, apesar de ter saúde, ouve muito mal, mas continua sempre a ajudar a família. Tal como durante toda a sua vida, pouco tempo lhe sobra para ele, a não ser a leitura do seu JN e os jogos do seu FCP. No entanto, não deixa de dizer, como sempre ouvi: se precisares de alguma, diz, não tenho nada que fazer, estou reformado. 

 

terça-feira, 12 de outubro de 2021

Conversa na bomba de gasolina com mano dentro

 

- Arranjas-me um bidão de gasolina? 

- Ó mano, combustível só no carro.

- Tenho o carro parado. Preciso de gasolina.

- Se eu pudesse, mano, vendia, mas não posso.

- O bidão é pequeno. Ninguém precisa de saber.

- Ó mano, já tive stress por causa disso. 

- Fogo, custava-te alguma coisa?

- Ó mano, vai à Galp. Pode ser que te arranjem. Não quero ter mais stress, mano.

 

Quando saí da bomba de gasolina, o meu telefone tocou. Era o meu mano.



domingo, 10 de outubro de 2021

Perfeição vs imperfeição

 

De há uns anos a esta parte, a flor da foto - julgo que é da família das proteias e que me foi oferecida - abre-se, por esta altura, com todo o seu esplendor e perfeição no jardim da minha casa. Um assombro harmonioso de forma e de cor. Não ocupa muito espaço, mas é impossível não se reparar nela pela bela sofisticação.

 

Porém, dou comigo a pensar que prefiro flores menos perfeitas. Acontece-me o mesmo com certas rosas. As suas linhas são tão bem tecidas e desenhadas que deixam de parecer naturais, ostentando algum exibicionismo que me desagrada.

Sim, prefiro, de longe, flores mais simples e imperfeitas, nas quais encontro mais completas perfeições. 

 

  

sábado, 9 de outubro de 2021

Há viajar e viajar...

 

Obrigada, Idalina, pela partilha de mais uma leitura. Com este excerto, fiquei com vontade de ler o seu autor - Leonardo Padura. Gosto quando os escritores falam dos lugares onde vivem, por onde passam ou já passaram. É como se lá fôssemos ou lá voltássemos. Ler também pode ser uma boa viagem. Como parece ter sido esta viagem a Paris.



 

“Paris é um mundo, e as recordações de cada pessoa que lá viveu são diferentes das recordações de qualquer outra… E isso é bem verdade, embora tenha sido Hemingway a dizê-lo, ele que foi o escritor mais ególatra e narcisista do século. A minha recordação de Paris é como uma nostalgia azul da qual, em vinte anos, não fui capaz de me libertar. Porque, quando cheguei a Paris, naquele mês de abril de 1969, já tinha despontado uma primavera tão bela que doía e dava vontade de fazer alguma coisa para ser mais feliz, se é que a felicidade existe, para ser mais inteligente e abarcar tudo, conhecer tudo, ou para ser mais livre, se é que isso também existia, existiria ou existiu alguma vez. E lembro-me de que senti a magia de um sol carinhoso, de veludo, banhando os Campos Elísios, os grandes palácios napoleónicos, a frivolidade dos cafés, e compreendi melhor o que acontecera um ano antes. Ainda sinto como uma carícia na pele a luz da tarde contra a rosácea frontal de Notre Dame, o rumor histórico e escuro do Sena por alturas da Cité, e oiço aquele tocador de realejo diante do Louvre, fazendo dançar o seu macaquinho africano ao som de uma valsa vienense. Também me lembro daquele concerto dos Rolling Stones, quando pretendiam ser mais rebeldes do que os Beatles, e onde os pude ver a duzentos metros de distância, sob o céu frio da primavera de Paris, entre os gritos de adoração daquelas loirinhas francesas, livres, filhas abortadas e mães recém-paridas de uma revolução que poderia ter sido e não foi, embora depois daquele maio o mundo nunca mais tenha sido o mesmo, porque afinal se tinha feito a revolução: a revolução dos costumes e da moral, a revolução permanente do século vinte que Liev Davidovitch Bronstein, aliás, Leon Trotsky, jamais imaginara.”

Leonardo Padura, Quarteto de Havana, p. 44

 

Leonardo Padura Fuentes – Wikipédia, a enciclopédia livre
Leonardo Padura nasceu em Cuba em 1955

 


quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Flores de agosto - em outubro

 

Flores de agosto

 

Procuro-vos, flores de agosto. As que nascem nos caminhos que me levam à infância vestida de verão. Aquelas que via romper, espontâneas, na beira dos riachos, nos campos, nos muros, nos cômoros que subíamos e descíamos em desenfreada correria,  para ver quem chegava mais depressa ao cimo ou ao fundo.

Ainda sem saber que os pés sujos da poluição as calcariam de morte.

Procuro-vos, flores de agosto, junto de límpidas nascentes antigas e charcos, onde rãs coaxavam em estreladas noites de claridade azul.

Ainda sem saber que as nascentes secariam e os charcos seriam terra seca e gretada.

Procuro-vos, flores de agosto, debaixo de árvores que eram abrigo de brincadeiras à sombra fresca do verdor da idade.

Ainda sem saber que muitas florestas seriam queimadas pelo fogo de loucuras várias e de tresloucadas ambições.

Procuro-vos, flores de agosto, nas dunas esquentadas pelo sol ou arrefecidas no silêncio noturno da maresia.

 Ainda sem saber das barreiras para humanos  invasores.

Procuro-vos, flores de agosto, nos montes que percorri na certeza pueril de alcançar a distância.

Ainda sem saber que o tempo  é veloz e inalcançável.

Procuro-vos, flores de agosto, revisitando lugares que então floriam felizes.

Desejando que possam voltar.

                              Sabendo já que a infância, não.

 

 Maria Dolores Garrido, in coletânea Mimos de agosto, p. 49, Mimos e Livros Edições, set. 2021

 

 


terça-feira, 5 de outubro de 2021

Dia da República com nevoeiro(s)

 




sábado, 2 de outubro de 2021

O retiro mas afinal não

 

Há muitas semanas que lá não vou. Tenho vontade de passar algumas horas na pequena cidade com mar ao fundo. E disse de mim para mim que hoje iria para lá em dia de retiro. Não como aqueles que fiz em Miramar quando era muito nova, com outras raparigas, a conselho das nossas mães, muito religiosas. Eram retiros com muitas orações e reflexões dentro e também tempo de diversão e risota.

Não, desta vez, o retiro era mais breve, desenhado por mim e ao meu ritmo. Se não chovesse, faria uma caminhada até ao mar. Talvez logo que chegasse. Como levaria o computador comigo, era certo e sabido que me sentaria e passaria junto  dele uma boa parte do meu dia. Essa seria a parte mais  desejada do meu desejado retiro. 

 

O dia hoje amanheceu chuvoso. Não foi por isso, mas mudei o meu projeto para o dia. Outros afazeres me convocaram em casa. Espero, no entanto, vivê-los, não em retiro, mas sentindo que retirei o peso do que tem de ser feito e ainda não foi.

E não é que o tempo está de feição! Como estaria para um pequeno retiro. 

Espero ver-te em breve, pequena cidade com mar ao fundo! Vou tentar conhecer-te melhor.  Para isso, não levarei o computador.

 

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Fósseis já sem megafone

 


Perto da zona onde vivo, há serras com fósseis. Há muitos anos, participei, por lá, em visitas de estudo. O dinamizador punha todo o empenho e entusiasmo nessas atividades. Preparava mapas, fazia desenhos, apontava para o relevo e para as linhas do horizonte, respondia a perguntas... Ah, e levava sempre um megafone que outros elementos do grupo, em momentos de descontração, também usavam para slogans que faziam rir toda a gente.

Motivados e divertidos, calcorreávamos montes e vales à procura de fósseis para os quais nos eram dadas explicações. Ficou-me sobretudo a busca alegre e arejada de marcas de seres que por lá viveram e que nós, passados milhões de anos, procurávamos com interesse. Ainda guardo alguns desses fósseis.

Os da foto trouxeram-mos esta tarde. Do mesmo local.

Para além das recordações que me avivaram, interrogo-me:

Que marcas humanas deixaremos nós?

 

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Procurando...

 ... a terra

 




... o céu






segunda-feira, 27 de setembro de 2021

O solitário da rua, as sondagens e o self made man

 

Ainda tenho nos olhos e nos ouvidos muito do que vi e ouvi na noite de ontem, de eleições autárquicas. E das muitas sondagens que, nas semanas anteriores, ilustravam manchetes e títulos de muitas páginas de jornais. Eram previsões tidas como quase certezas. E assim eram discutidas. E comentadas. E divulgadas. E propagandeadas... 

Em grande plano estava a Câmara de Lisboa.

Como a noite ia longuíssima e não sou pessoa de grandes noitadas, fui dormir, o que sossegou este espectador e não candidato a qualquer cargo público ou político. 

Na repartição onde trabalho, continuarei a ouvir alguns ecos dos resultados das eleições, mas como as pessoas agora se afastam mais umas das outras e não entram todas de uma vez como num funil, nada haverá de especial, com certeza. Tal como não há na minha vida. E digo isto sem tristeza, apesar de ter algum ar tristonho, eu sei.

Hoje, não sei se pela chuvinha, que começou a cair logo de manhã, se pelo outono que está a chegar, lembrei-me que me sinto várias vezes um Fernando Medina, se confio que vou ter uma vitória - ainda que as vitórias de um funcionário de uma repartição pública sejam muito pequeninas.

Nesses momentos, fico contente, acredito, sorrio, quase me empolgo, mas, na hora agá, quem sai vencedor é um Carlos Moedas em quem, aparentemente, poucos pareciam apostar, que aparece e tira a cadeira.

E isto acentua a minha mania de achar que se o dia começa bem, pode acabar mal, como a Fernando Medina; ou, então, se a coisa começou mal, pode acabar bem, como aconteceu com Carlos Moedas.

Eu sei que sou um anónimo cidadão, um self made man que pouco sabe e que muito terá de aprender. Pode ser que daqui a quatro anos a variação do meu humor não oscile tanto entre modelos FM ou CM. Para isso, continuarei a ouvir os ensinamentos da vida, se calhar, com a televisão mais vezes desligada.
 
Entretanto, pode ser que os senhores das sondagens aprendam também a acertar mais na mouche. Mas, como tenho dúvidas e muitas vezes me engano, continuo aberto às surpresas, embora não as saiba explicar. Não esqueçam que sou um self made man.
 
 
 

domingo, 26 de setembro de 2021

Quem não gosta de mimos?

 

Fui a uma editora

e oferecerem-me uns livros

A mim e à ilustradora

e sorrimos como meninos



Com os livros para crianças

eu fiquei muito contente

Não cessem as esperanças

de ver Crescer toda a gente

 


E  naquela editora

tanta palavra respirava

O mundo de que tanto gosto

sob meus olhos estava

 


E ao sair trazia os livros

feliz de presentes recebidos 

Os beijos são de evitar

mas nunca os mimos sentidos




Bom domingo! Votar também é mimar a Vida em Democracia!

 

 

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

 Obrigada, C.P.

 

Uma amiga emprestou-me este livro. Tem menos de 200 páginas e conta histórias relacionadas com alimentos e em que a nossa História também intervém. Destaco algumas narrativas: sobre um forno de cozer pão cujo uso era um ato de desobediência; acerca da alheira que foi criada por cristãos-novos como um modo de escaparem à Inquisição, estabelecida no séc. XVI, por D. João III.

Transcrevo aqui uma das páginas em que se explica a adoção deste enchido sem carne de porco - não consumida pelos judeus.

Começa assim o excerto:

'Na vila de Vinhais (...), criámos um  tipo de enchido que imita os enchidos...


Também há histórias sobre o bacalhau, a sericaia, o  D. Rodrigo, etc., contando-se a história dos primeiros usos culinários dessas iguarias, estando algumas ligadas aos Descobrimentos.

Cada narrativa é antecedida por uma explicação histórica contextualizando o alimento e de uma receita atual: bacalhau com broa, alheira com batatas e grelos, etc.

É, assim, um livro com diferentes sensações e experiências gastronómicas e históricas.

Sobre a autora - Paula Morais - , nada posso dizer porque nada sei. Se souber, digo, porque é preciso divulgar estes autores desconhecidos que produzem bons livros. 

 

Bom e saboroso fim de semana! 

 

 

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

O solitário da rua e essa coisa do normal

 

Eu, o solitário da rua, cheguei à conclusão de que não sou o único solitário da rua. Há o Manel. Não sabem quem é o Manel, pois não. Muita gente não sabe quem é o Manel. E talvez por isso as pessoas têm medo dele, atravessam a rua para não se cruzarem com ele, aceleram o passo, sentem o coração a bater mais depressa quando o veem ou o ouvem mesmo à distância...

Mas o Manel não faz mal a ninguém, ou melhor, só fez mal a si próprio e a dois primos com quem trabalhava. Foram mútuos os insultos e também a agressão foi de ambos os lados, mas, nesse dia, o Manel estava sóbrio. Só que não estava pacato, ainda que, quando está sóbrio, pareça pacato. Não andava de garrafa de vinho na mão como anda quase sempre. Nem vociferava fazendo gestos acusatórios com os braços sem se saber bem a direção.

Somos dois solitários da rua. Cada um à sua maneira. Ele a abrir-se a qualquer hora em acusações e ameaças a alguém ausente; eu, um pouco ensimesmado, um rato de casa depois de chegar da repartição, embora goste de janelas abertas à luz do dia, desde cedo.

Conheci os pais do Manel, que mal se ouviam de tão discretos que eram. Não sei se ele conheceu os meus e nem vale a pena perguntar-lhe porque, por estes dias, não larga a garrafa, anda sempre aos ziguezagues e nem se percebe bem o que diz. Os pensamentos devem ser uma gaveta atafulhada de quase tudo que é barafunda.

Por que é que todas as ruas, ou melhor, muitas ruas têm sempre um ou dois alguéns que, embora diferentes, saem da caixa da normalidade?

Ou será este o normal e não o outro a que sempre nos habituámos a chamar normal?

 

sábado, 18 de setembro de 2021

Conversa com escola(s) dentro

 

- Não sei o que se passa comigo.

- Então?

- Trabalho há mais de trinta anos e continuo ansiosa nesta altura.

- Por ser o primeiro dia de aulas?

- Sim. Nessa noite, nem consigo dormir.

- E eu, já pensaste?

- Tu? Também ficas ansiosa?

- Fico, claro.

- Porquê?

- É que já nem sei quantas vezes entrei em escolas pela primeira vez.


Quadros da pintora Menez - 1926/1995