segunda-feira, 20 de setembro de 2021

O solitário da rua e essa coisa do normal

 

Eu, o solitário da rua, cheguei à conclusão de que não sou o único solitário da rua. Há o Manel. Não sabem quem é o Manel, pois não. Muita gente não sabe quem é o Manel. E talvez por isso as pessoas têm medo dele, atravessam a rua para não se cruzarem com ele, aceleram o passo, sentem o coração a bater mais depressa quando o veem ou o ouvem mesmo à distância...

Mas o Manel não faz mal a ninguém, ou melhor, só fez mal a si próprio e a dois primos com quem trabalhava. Foram mútuos os insultos e também a agressão foi de ambos os lados, mas, nesse dia, o Manel estava sóbrio. Só que não estava pacato, ainda que, quando está sóbrio, pareça pacato. Não andava de garrafa de vinho na mão como anda quase sempre. Nem vociferava fazendo gestos acusatórios com os braços sem se saber bem a direção.

Somos dois solitários da rua. Cada um à sua maneira. Ele a abrir-se a qualquer hora em acusações e ameaças a alguém ausente; eu, um pouco ensimesmado, um rato de casa depois de chegar da repartição, embora goste de janelas abertas à luz do dia, desde cedo.

Conheci os pais do Manel, que mal se ouviam de tão discretos que eram. Não sei se ele conheceu os meus e nem vale a pena perguntar-lhe porque, por estes dias, não larga a garrafa, anda sempre aos ziguezagues e nem se percebe bem o que diz. Os pensamentos devem ser uma gaveta atafulhada de quase tudo que é barafunda.

Por que é que todas as ruas, ou melhor, muitas ruas têm sempre um ou dois alguéns que, embora diferentes, saem da caixa da normalidade?

Ou será este o normal e não o outro a que sempre nos habituámos a chamar normal?

 

12 comentários:

  1. "O hábito faz o monge" ;)
    .
    Beijo, e uma excelente semana!:)

    ResponderEliminar
  2. Será defeito de meus olhos. Mas raro encontro alguém fora do normal. O meu normal acho que tem toda a gente. Ou quase.
    Mas a história está bem vista e melhor escrita.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigada, Bea. É o meu 'normal' - a ideia surge e sai naturalmente. Às vezes, mais ou menos, outras, mais menos do que mais. Vale o prazer do momento.
      Quem fala não sei se existe, mas a outra personagem, sim.
      Um dia bom e normal, Bea.

      Eliminar
  3. A razão tem razões que a própria razão desconhece.
    .
    Saudação poética
    .
    Pensamentos e Devaneios Poéticos
    .

    ResponderEliminar
  4. Também gosto de provérbios.
    Um beijinho, Cidália

    ResponderEliminar
  5. Gosto das suas micro histórias, bem escritas, que nos deixam a pensar Maria Dolores. O que é afinal o normal?

    - Este caminho que sigo é bom?
    - Depende para onde queiras ir...
    - Tanto me faz.
    - Então, esse caminho serve.
    (Alice no País das Maravilhas)

    Tenha um bom dia.

    ResponderEliminar
  6. Obrigada, Joaquim, pelas palavras simpáticas. É o que me surge e, como se diz muitas vezes, 'dá-se o que se tem', por pouco que seja.
    O excerto de A.P.M. que escolheu é muito interessante.
    Bom fim de tarde de luz quase outonal e bonita.

    ResponderEliminar
  7. As "figuras típicas", como eu chamo às pessoas parecidas com o Manel, estão em extinção. Mas ainda existem...
    Uma história bem contada e interessante. Gostei imenso.
    Bom fim de semana, amiga Maria Dolores.
    Beijo.

    ResponderEliminar
  8. Obrigada, Jaime.
    Ao longo da minha vida, já conheci algumas. Dariam vários posts, talvez engraçados, embora a vida dessas pessoas, aparentemente, não tivesse muita graça, como a do Manel.
    Abraço e um fim de semana feliz.

    ResponderEliminar
  9. Gostei muito deste texto, de como está escrito e por me fazer recordar e pensar

    ResponderEliminar