quinta-feira, 3 de setembro de 2020

As fotos

Talvez não me aconteça só a mim. Quando arrumo ou organizo fotografias, sinto sempre alguma nostalgia.

Impossível conter palavras ou pensamentos quando se olham fotos já com uma série de anos, do tempo em que eram em papel e o fotógrafo colocava os negativos numa separação do envelope, para serem reproduzidos quando se quisesse.

Olha, como eras tão pequenina. O sorriso já era como agora. 

Como os meus pais eram novos e bonitos.

Tanta gente no casamento e todos tão juntos na foto de grupo.Sem os medos de agora.

Como tocavam bem viola. Gostava tanto de ouvir.

Que saudades das paisagens de inverno em Trás-os-Montes.

Tantos que já partiram.

Aqui gosto mais de me ver. 

Pareciam tão apaixonados e agora nem se podem ver nem pintados.

Quem diria que a farta cabeleira daria lugar a careca tão completa. 

Parece que ainda estou a ouvir o que dissemos naquele dia.

Que caracóis tão vincados.

Perdi-os completamente de vista. O que lhes terá acontecido?

Os passeios que dávamos eram tão divertidos.

Tudo parecia eterno.

E as blusas aos folhos! Um tempão para passar a ferro.

Não quero morrer sem voltar aos Açores.

Como era magrinha.

...

O tempo é mesmo um grande escultor, como escreveu Marguerite Yourcenar.

Espalhadas, muitas fotos estão à espera de novas caixas para serem guardadas, porque as antigas estavam cheias de bolor. 

No fundo, procura-se guardar pedaços de tempo. Tarefa inglória a que não escapa a nostalgia.

Mas também se foram bons os momentos vividos, o tempo já não os tira. Como os menos bons, é claro.


quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Ai os acentos!

Hoje no Expresso Curto:

 

       O verbo "Estar", no pretérito perfeito, não tem acento. Ai, ai, senhores do Expresso!!!

 

Pagar ou apagar a multa, eis a questão!!!!

 

                      Notícia da TVI há bocadinho (a gralha, engraçada, foi corrigida de seguida)!


Sérgio Godinho - "O Novo Normal" - a que temos de nos habituar!

"No novo normal
Há cidades inteiras
Por onde rasgaram
Invisíveis poeiras
Malignas benignas
Ninguém sabe se sabe
Nem que acaso ou que destino nos cabe
O novo normal
É terreno minado
De acasos
No novo normal
Caem corpos à sorte
Em valas comuns
Num silêncio de morte
Cortado somente
Por soluços distantes
Longe vão os tempos de ser como dantes
No novo normal
Nunca nada vai ser
Nunca igual

Dadas as circunstâncias
Mantenha as distâncias
Respeite os espaços
Controle essas ânsias
De beijos e abraços
Refreie as audácias e as inobservâncias

Escolha bem as audácias
Refreie essas ânsias
De beijos e abraços
Dadas as circunstâncias
Respeite os espaços

No novo normal
Nunca são contas feitas
Acordaste informado
E ignorante te deitas
E amanhã pela manhã
Será que algo mudou
(tudo) não passou de um pesadelo fugaz
Uma história do medo
Largada ao ouvido
Em segredo

No novo normal
Há grandes filas de fome
Nomes tão desgastados
Até deixar de ter nome
Até que o medo não tenha
Racionais fundamentos
E seja só um buraco negro no céu
Um horizonte de eventos
Memorial do que
Se viveu

Dadas as circunstâncias
Mantenha as distâncias
Respeite os espaços
Controle essas ânsias
De beijos e abraços
Refreie as audácias e as inobservâncias

Escolha bem as audácias
Refreie essas ânsias
De beijos e abraços
Dadas as circunstâncias
Respeite os espaços"

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Hoje é dia de vários recomeços

 
Recomeça

Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…

Miguel Torga

domingo, 30 de agosto de 2020

Nem só agosto


Vieira Portuense - Pintor neoclássico  - Porto, 1765/Funchal, 1805


Espero setembro como quem espera uma visita calma, organizada e alegre. Será?

Que me desculpem tantas pessoas que precisam do mês de agosto para descansar, relaxar, mudar rotinas, não cumprir tantos horários, não ouvir palavras desagradáveis no trabalho... Que passam diariamente muito tempo em autocarros cheios (muitos vezes com passageiros de narizes fora da máscara), em estradas pejadas de carros apressados e nervosos...

Mas agosto é também mês de adiamentos. Uma coisa avaria em casa: fica para depois de agosto. Por isso, se repete e justifica: mete-se agosto, meteu-se agosto...

E vem-me à memória o filme "Meu querido mês de agosto" com emigrantes que vinham, sem limites, matar saudades. Os arraiais não estavam proibidos e nem sequer se pensava em possíveis quarentenas. Todos os ajuntamentos felizes eram bem-vindos.

Depois, meteu-se a pandemia...

sábado, 29 de agosto de 2020

"O silêncio"


                                                                 António Dacosta - 1942

 

Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.

                                       Eugénio de Andrade, in Obscuro Domínio  - 1942                                                            

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Sabe bem um tempo de (quase) silêncio!

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Com "madressilvas a brilhar"?

 Hoje, recebi o "Conto gigante", de Elsa Bornemann (escritora argentina), 

baseado no poema que procurei e agora partilho.

O conto foi enviado pelo Clube das Histórias:

 clubecontadores@gmail.com

 

                                                                      Imagem da net

 

O GIGANTE DE OLHOS AZUIS

Ele era um gigante de olhos azuis
Amou uma mulher pequenina
Cujo sonho era uma casa pequenina
Que tivesse no jardim
madressilvas a brilhar.

O gigante amava como um gigante
As suas mãos feitas para os trabalhos pesados
Não poderiam erguer os muros ou puxar a sineta
Da casa que teria no jardim
madressilvas a brilhar.

Ele era um gigante de olhos azuis
Amou uma mulher pequenina
Que em breve se cansou dele, a bonequinha.
No caminho largo do seu gigante
Sentia muito a falta de comodidades
Adeus, disse então para os olhos azuis
E pegando no braço de um anão rico
Entrou na casa que tinha no jardim
madressilvas a brilhar.

O gigante sabe agora
Que os amores de gigante
Não podem ser enterrados
Na casa de madressilvas a brilhar.

Nâzim Hikmet (tradução de Rui Caeiro)

Nâzim Hikmet - Poeta e dramaturgo turco

Grécia, 1902/Moscovo, 1963 


 

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Tão cedo!

 

  Maria Keil  - Silves, 1914/Lisboa, 2012

 

A festinha de aniversário corria alegre. O Dinis fazia sete anos e festejava-os com a família e alguns amiguinhos da escola. Estava bom tempo e o jardim, onde brincavam, era grande e havia uma pequena piscina de plástico no meio da relva.

Daí a nada, os meninos já se molhavam no meio da algazarra e correria. Um deles sugeriu: vamos ficar em cuecas. Logo a seguir, todos começaram a tirar a roupa. Quase todos. Sem calçado, as meias molhadas iam saindo naturalmente dos pés, de tanto correr e saltar.

Sentado, junto do pai, Frederico olhava para os colegas, ria-se mas não foi nunca para o meio deles. Manteve-se à sombra, nunca tirou a camisa nem o calção, ao contrário dos colegas. Nem o calçado. Nem nunca correu.

Levantava-se para ir à mesa buscar alguma comida de vez em quando.

Quando todos se reuniram para cantar os parabéns, os adultos  repararam melhor no Frederico.  E nos prováveis complexos pelo seu corpo mais volumoso que os colegas da mesma idade. 

Parece que era um bom amigo, mas de si próprio parecia já não gostar. Tão cedo!


terça-feira, 25 de agosto de 2020

Também era agosto


 Paul Cézanne

Há uns anos, visitámos a Provença - La Provence Côte d'Azur - de alguns sonhos e de muitas imagens anteriores.

Era verão e passámos pelos campos de lavanda, mas já não estavam floridos, para pena dos meus olhos.

Vimos os campos de girassóis, mas com as flores tombadas de maduras. Mesmo assim, não deixavam de ser os vastos campos de girassóis que eu desejava ver ao vivo.

Em Aix-en-Provence, comprei duas toalhas - uma com raminhos azuis de lavanda, outra com girassóis. Não me digam que as toalhas não guardam histórias. Quando as vejo ou uso, vêm-me logo à memória muitos momentos dessa viagem. 

Nessa cidade, visitámos o atelier do pintor pós-impressionista  Paul Cézanne (Aix-en-Provence 1839/1906). Não podíamos perder essa oportunidade. Havia um vento agreste, sem perturbar a  luminosa manhã de agosto. 

O atelier mantinha, em natural desalinho, as prateleiras onde o pintor dispunha os frutos e objetos que serviam de modelo para as suas naturezas-mortas.

Paul Cézanne

E foi-nos dito que, de manhã cedo, o pintor costumava percorrer longos caminhos a pé, carregando com os materiais de que precisava, para pintar as paisagens envolventes.

Paul Cézanne

Gostava de voltar um dia àquela região. Também para ver os campos azuis de lavanda florida. Talvez num mês de julho. A gosto.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

É agosto!

Paul Cézanne - Pintor pós-impressionista - Provença, França, 1839-1906

 

Alguns provérbios sobre este mês de verão:

- Agosto amadurece, setembro vindimece. 
 
- Agosto chuvoso é ano formoso.

- Agosto madura e setembro vindima.

- Agosto, toda a fruta tem gosto.

- Água de agosto apressa o mosto.

- Água de agosto dá mel e mosto.

- Água de agosto tira o sol do rosto.

- Água de agosto, açafrão, mel e mosto.
 
 -Chuva de agosto apressa o mosto.

- Chuva em agosto: açafrão, mel e mosto.

- Em agosto secam os montes e em setembro as fontes.


sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Billie Eilish - "My future"

  O futuro é assunto muito discutido atualmente,

a propósito das próximas eleições americanas,

 de tudo que vai acontecendo no mundo, como a pandemia da Covid 19, etc.

Mudam os planos, os estados de alma, as reflexões, os questionamentos...

 

Billie Eilish nasceu em Los Angeles, em 2001.


"My Future

I can't seem to focus
And you don't seem to notice
I'm not here
I'm just a mirror
You check your complexion
To find your reflection's all alone
I had to go
Can't you hear me?
I'm not comin' home
Do you understand?
I've changed my plans

'Cause I, I'm in love
With my future
Can't wait to meet her
And I (I), I'm in love
But not with anybody else
Just wanna get to know myself

I know supposedly I'm lonely now (Lonely now)
Know I'm supposed to be unhappy
Without someone (Someone)
But aren't I someone? (Aren't I someone? Yeah)
I'd (I'd) like to be your answer (Be your answer)
'Cause you're so handsome (You're so handsome)
But I know better
Than to drive you home
'Cause you'd invite me in
And I'd be yours again

But I (I), I'm in love (Love, love, love, love)
With my future
And you don't know her
And I, I'm in love (Love, love)
But not with anybody here
I'll see you in a couple years"

terça-feira, 18 de agosto de 2020

"Um pouco mais de azul..."

 

       
Claude Monet - 1840/1926 França

"Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minhalma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

(...)"

 

Mário de Sá-Carneiro 

Poeta, contista, figura do Modernismo e da geração de Orpheu 

1890 Lisboa/1916 Paris


domingo, 16 de agosto de 2020

"Intertexto"


Helena Almeida
Artista plástica
Lisboa - 1934/Sintra - 2018

 

"INTERTEXTO

Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo".

Bertolt Brecht 

Dramaturgo, poeta e encenador alemão -1898/1956

 

Obrigada, Isabel, pela partilha.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

"Ensinamento"

Sarah Afonso
(Lisboa, 1899/1983)  

Minha 
mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.

Não é 

A coisa mais fina do mundo é o sentimento. 
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:

"Coitado, até essa hora no serviço pesado".

Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água

quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.
 

                                   Adélia Prado (nasceu em Minas Gerais, em 1935)

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Há muito que não ouvia essa palavra

Hoje fui à feira de Gondomar com uma amiga. Já não me lembrava de ir à feira. De ir com máscara é que não me podia lembrar. 

E apreciei a capacidade de os feirantes ouvirem não sei quantas questões dos clientes quase ao mesmo tempo e também responderem quase em simultâneo. 

Uma vendedeira contou até uma peripécia da mãe que, tendo ficado viúva, não tirava um lenço preto da cabeça, nem mesmo em consulta no hospital.

Depois de olharmos todas aquelas cores e feitios aos olhos de todos expostos, entrámos numa barraca de tecidos, comandada por duas vendedeiras muito comunicativas e expeditas.

Uma delas, falando de um tecido que nos chamou à atenção, exclamou:

- É muito fidalguinho.

E recuei no tempo em que ouvia essa palavra com frequência. A mesma vendedeira, com boa tática de marketing, disse que se lembrava das clientes.

Na despedida, a amiga com quem eu estava, e que é muito bem disposta, disse:

- Se quiseres, vamos outra vez à feira comprar tecidos na próxima semana. A vendedeira até já me conhece e, para além disso, também sou fidalguinha!