domingo, 25 de junho de 2023

Por dentro da vidraça

 

O calor era muito dentro de casa. Tornava-se insuportável.

O estreito corredor entre a porta de casa e o passeio da rua tinha sombra, mas o ar quente parecia agarrado às duas paredes.  Optou por sair. Abriu o portão e conseguiu passar, mesmo sem a ajuda da mulher. Cá fora, e respirando ar mais fresco, pôs o encosto da cadeira para trás e os pés mais altos.

Sentia o alívio de respirar melhor e não transpirar tanto como dentro de casa. Ficou ali um bom bocado, de cabeça levantada como se apenas o céu lhe interessasse.

Um menino estava com a avó por dentro da vidraça da casa em frente. Quando foram para dentro, o menino disse adeus ao nhô nhô, que, para ele, queria dizer senhor.  Não respondeu ao aceno porque o olhar dele não estava nessa direção. Ou talvez dormitasse, aproveitando o consolo da brisa mais fresca.

O menino voltou a dizer adeus por dentro da vidraça.

A avó voltou a pensar naquele homem grande e bonito, prisioneiro de uma cadeira de rodas. Que pena ter tido o acidente. E também saber que lhe chamam o aleijadinho.

 

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Ó meu rico S. João...

 

Ó meu rico S. João

Peço-te neste calor

Que refresques o ambiente

Nele pondo mais amor

E vem feliz se puderes

Sem mentira mas verdade

Queremos é bons exemplos

Sem blá blá nem falsidade

Dá ânimo a quem não tem

P’rà vida a todos sorrir

Sem ver tantos a chorar

Ou a terem de partir

Hoje não irei ao Porto 

Pra te ver a festejar

Mas comprei um manjerico

Para a casa perfumar!

domingo, 11 de junho de 2023

A oficina e o café

 

Nas manhãs de vários sábados, chegávamos à mesma hora ao café que fica bem perto de algumas de nós.

No início, era só uma, depois duas e, em breve, já éramos quatro ou cinco amigas, à mesa porque a mestra se nos juntou também. Era um gostoso aquecimento para umas horas a cortar, combinar, coser tecidos, vendo aparecer um objeto bonito e nosso.

Eram divertidas e criativas essas manhãs de sábado na oficina de costura. Escolhíamos os tecidos e, sempre com a ajuda da mestra - mais nova do que nós -, fizemos chapéus, sacos de várias formas, capas para caderno ou álbum, etc, etc, etc.

Com a sua peça acabada, cada uma de nós sentia a alegria de a ter produzido. Ou quase, melhor dizendo, porque a mestra lá acertava o corte e a cosedura, se o desacerto era grande.

Ontem foi a despedida dessas manhãs de sábado tão costurado como animado.

A mestra, que era uma boa mestra e também muito gentil, ofereceu-nos, nesta última sessão, pedaços de tecidos para continuarmos a fazer os nossos trabalhos em casa. Vistosos mimos a saírem de uma caixa de retalhos dobrados, desdobrando já novas ideias.

No próximo sábado, talvez a senhora do café repare na nossa ausência porque, desde o primeiro dia, ocupávamos sempre a mesma mesa. Ou talvez não, porque os cafés e pingos e meias de leite e galões e torradas e pães com queijo são peças que vai servindo todas as manhãs com pouco descanso. Sempre com um sorriso suave e natural. Também de mestra.

 

terça-feira, 6 de junho de 2023

MIMOS DE JUNHO - Antologia Poética 2023

 Reenvio o regulamento que também recebi. 

Que o mês de junho traga estes ou outros mimos.

 

"MIMOS DE JUNHO Antologia Poética 2023 A Mimos e Livros continua a celebrar a Poesia e quer comemorá-la consigo!  Vamos publicar nova Antologia Poética: MIMOS DE JUNHO.  Participe! Regulamento 1. O prazo de inscrição para participação na antologia MIMOS DE JUNHO e envio de textos decorre até 27 de junho de 2023. 2. Os textos devem ser enviados em suporte informático (tipo word) e remetidos para geral@mimoselivros.pt 3. Serão admitidos textos do género lírico (poemas e prosa poética). 4. Cada autor poderá participar apenas com um texto, que pode ocupar, no formato de poesia tradicional, até 30 linhas de verso (incluindo espaços de transição de estrofe e eventuais versos demasiadamente longos) ou, na prosa poética, um máximo de 1400 caracteres (espaços incluídos). 5. A ordem de publicação obedecerá a um critério a definir, posteriormente, pela organização. 6. Os autores podem utilizar pseudónimo, embora sejam obrigados a identificar-se e o seu nome ser incluído na breve biografia a constar do livro. 7. Os autores devem enviar uma curta nota biográfica, que será publicada, com um máximo de 500 caracteres, incluindo espaços. No caso de exceder o limite fixado, a organização reserva-se o direito de proceder às alterações que achar convenientes. 8. O tema dos textos é livre.  9. No caso de a organização entender que o número de participantes não é suficiente para a edição do livro, os textos serão publicados on.line no site da editora Lugar da Palavra, em www.lugardapalavra.pt e enviado um exemplar em formato pdf a todos os participantes. A organização é soberana na seleção dos textos a incluir na obra. 10. A organização e seleção dos textos para publicação pertencem à Mimos e Livros Edições, uma chancela da Lugar da Palavra Editora. Da decisão de seleção ou não do júri não haverá recurso. 11. Todos os textos serão alvo de revisão, com vista a apresentar um trabalho da maior qualidade possível, comprometendo-se, obviamente, a organização a nunca desvirtuar o original do autor. 12. Os participantes disponibilizam os seus textos exclusivamente para a presente publicação, sendo- lhes, obviamente reconhecido o seu direito de autor (pelo qual assumem essa responsabilidade), mas não serão pagos quaisquer direitos patrimoniais. Ou seja: o participante envia textos da sua autoria (se já publicados, com a respetiva autorização competente) e cede-os exclusivamente para o fim em questão, não resultando da sua publicação a obrigação da editora de pagamentos de direitos patrimoniais ao autor.13. Os participantes selecionados beneficiarão de vantagens na aquisição de Mimos de Fevereiro e obrigam-se a adquirir pelo menos um exemplar da obra. 14. A participação implica a aceitação de todos os termos do presente regulamento. 15. Será formado um Conselho Editorial, composto por três elementos, que terá por função pronunciar-se em relação à qualidade de alguns textos com vista à sua inclusão (ou não) na antologia. 16. Os casos omissos serão resolvidos pela organização." 

Voltei à cozinha

 

Passar dias e muitas horas com um neto de dois anos, não fazemos bem o que queremos nem temos algumas coisas no sítio onde queremos, embora a sua presença nos traga muitas e alegres recompensas.

Uma dessas coisas é o meu computador que gosto de usar na mesa da cozinha, mas que, com uma criança cheia de energia, não será o lugar mais conveniente. Por isso, ocupa habitualmente espaço mais quieto e menos frequentado.

Como esta semana tenho mais dias por minha conta, uma das coisas que voltou ao lugar, onde gosto de o encontrar, foi o meu computador. 

Assim, enquanto estou a cozinhar - hoje são favas do meu quintal - vou escrevendo. 

Deve cheirar bem na cozinha, mas não sei bem porque não recuperei o olfato que a pandemia ainda não me devolveu.

Porém, o computador na cozinha devolveu-me algum prazer. Embora também seja bom  voltar a levá-lo para onde estava, quando chegar o meu pequenino.

 

domingo, 4 de junho de 2023

Um domingo bom que passa devagar. Será?

 

O céu está enevoado e o domingo, calmo, por minha conta. Sem programa nem solicitações em final de semana, o que me sabe muito bem.

Tinha pensado ir cedo pela manhã à 'minha' cidade com o mar ao fundo, mas mudei de ideias. Ficaria em casa a organizar algumas coisas, o que me ajuda a arrumar também a mente e, finalmente, podia tirar as ervas daninhas de umas taças com catos. E regar as plantas que agora florescem dando aos canteiros um ar bem-vindo de beleza e de festa.

E vi que outras plantas precisam também de arranjo, que lhes amacie a terra para que a água não fique só à superfície ressequida. Será a próxima etapa. Talvez numa manhã ou fim de tarde em que não tenha pressa nem de olhar para o relógio muitas vezes.

Fiz o almoço e comi devagar. Talvez demasiado pão, mas não resisti à regueifa fresca que fui comprar à padaria. Ai saborosa tentação de domingo.

Durante o almoço, vi um programa de culinária, porque já me causa fastio o famigerado computador roubado ou desviado, o SIS que foi chamado e não se sabe ao certo por quem, etc

Agora, com a tarde a avançar, quero ler algumas páginas de um livro em que Fernando Pessoa é personagem. Poderei ler devagar porque a casa, silenciosa, chama e apetece.

Depois das cinco horas, joga o meu clube. Até à noite, poderei continuar a gerir calmamente o meu domingo, só que, durante o jogo, o tempo não passará tão tranquilo e devagar como até aqui. Não sei.´Prognósticos só no fim do jogo'!!!

Um belo e feliz domingo para todos! 

 


sábado, 3 de junho de 2023

Se eu pudesse recuar no tempo, não sei se queria voltar à infância

 

Felizmente há bastantes pessoas que falam da sua infância como um tempo feliz. Nesses casos de felicidade recordada, para além dos pais, quase sempre há um avô ou uma avó a amaciar os caminhos com amorosa candura.
Os meus avós maternos não os conheci. Morreram ainda novos, já com muitos cansaços e muitos filhos.
Os meus avós paternos, que tiveram também uma família numerosa, esses, felizmente, conheci-os. O meu avô era um homem grande e forte, muito ternurento, que alimentava as suas alegrias e histórias quotidianas vendo o futebol da terra e ouvindo bandas de música nas festas populares. Não falava muito da sua infância, mas tinha começado a trabalhar ainda menino.
A minha avó, porém, estava mais fechada ao amor e a meigas interações. O momento feliz do seu dia era quando ouvia o Tide, o folhetim da rádio. Esses momentos eram a hora do sonho e da vida a tornar-se leve. Ou o refúgio numa vida que gostava de viver mas que lhe fugia ou não tinha força de agarrar.
Enquanto eu ia crescendo, ia-me apercebendo de muitas pessoas à minha volta com muita inteligência, mas nas quais se pressentiam mágoas de não acederem à felicidade que conseguiriam atingir mais facilmente se tivessem, por exemplo, estudado ou sido apoiadas por figura boa e amaciadora dos seus caminhos.  
Como uma corrida de maratona que se deseja, mas para a qual não se tem apoio para treinar nem se arranja treinador.
Foram muitas pessoas de diferentes idades que fui conhecendo, dentro e fora da família, muitas delas a trabalhar desde crianças pequenas, e que se ressentiam, ao longo da vida, da falta de valorização e do roubo de direitos tão comum nessa época de enorme desamparo social.
Muitas dessas pessoas talvez gostassem de voltar à infância, mas por uma única e  complexa razão: com o que já sabem, poder viver um tempo mais feliz do que aquele que conheceram.
 
 

terça-feira, 30 de maio de 2023

Quer uma raspadinha?

 

Quando vou aos Correios, costumo encontrar ao balcão pessoas que já lá trabalham há muitos anos. Quando nos cruzamos na rua, logo trocamos um sorriso e um olá de amigo reconhecimento.

Pois bem, depois de mandar a encomenda, já sei que vem a pergunta habitual: vai uma raspadinha?

Isto para não falar das cautelas ou do livro que está ao alto no balcão, como que a pedir para a clientela o levar para casa. A minha resposta é quase sempre a mesma: obrigada, tenho ainda tantos livros para ler. Não vale a pena. Nunca me sai nada.

Eu, que não sou nada saudosa dos antigamentes, até sinto nostalgia de quando ia aos correios e mandava cartas ou encomendas e não havia o papel do jogo de sorte ou de azar a ser insistentemente mostrado.

Porém, da ultima vez que fui aos Correios, tirei a senha A como de costume e fui atendida por um funcionário que eu não conhecia. Enquanto tratava do assunto, eu ia pensando: vou ver se desta vez escapo à raspadinha para não ter de dizer mais uma vez: obrigada, não vale a pena, porque nunca me sai nada.

Operação concluída, o funcionário levantou os olhos e perguntou-me: quer uma raspadinha? 

Nem sei o que lhe respondi. Queria era raspar-me dali.


quarta-feira, 24 de maio de 2023

Logo agora que podia e queria responder!

 

Peço desculpa, mas não consigo inserir as respostas aos comentários. Vou deixar o meu computador 'descansar' um bocadinho a ver se corresponde ao meu pedido. 

Até breve. Obrigada e um abraço.

 

Há muitas aldeias assim e é pena

 

Conheço um jovem que vive numa aldeia. As pessoas que lá moram são cada vez mais velhas, vivem cada vez mais sós, mas não há nenhum Centro onde possam passar algum tempo, conviver e tornar os seus dias mais felizes.Pois bem, o jovem, com um grupo de amigos, há muito que sentem essa necessidade da terra e gostavam de fazer alguma coisa nesse sentido.  Procuraram e encontraram uma casa vazia, que pertencia à Junta de freguesia, que reunia as condições, e trataram de pedir autorização e  apoios.  A junta de freguesia, assim, poderia ver rentabilizado o imóvel, agora sem qualquer serviço lá instalado. No entanto, os nãos das 'forças vivas' da aldeia sucederam-se e os jovens foram-se apercebendo que a razão principal era muito simples e, ao mesmo tempo, muito complexa: as instituições às quais batiam à porta não aceitavam que  louros assentassem noutras cabeças que não as deles. Entretanto, o imóvel foi ocupado por outros serviços que a Junta disse serem necessários.

Sem o espaço e com tantas negas, a vontade do grupo de jovens vai-se dispersando e os velhos vão ficando cada vez mais velhos e mais sós. Vão-se sentando nos poucos bancos ou pedras que existem à beira dos caminhos e vão falando com quem passa para irem vencendo a solidão. Só que há dias e noites em que não passa ninguém.

 

domingo, 21 de maio de 2023

O homem do Lidl e o rapaz da caixa

 

Hoje, logo de manhã, fui ao Lidl. Também podia ir a outro supermercado qualquer, porque abundam perto da zona onde moro, embora prefira os mais sossegados. Ao Pingo Doce quase nem vou, porque os lucros que as notícias lhe atribuem são imensos.

Ai, ele é assim? Penso eu, então há mais aonde ir, incluindo a velhinha mas sempre renovada mercearia da minha aldeia.

Mas, o que tem a ver isto com o que quero dizer? Nada.

Pois bem, lá fiz as compras que tinha a fazer, pus as coisas no tapete rolante e, no momento de as guardar no meu saco, outro cliente tinha ainda as suas no balcão. Perguntei se podia também avançar. Claro que sim, disse o homem, e acrescentou muito mais, com muito boa disposição e muita vontade de falar.

- Cabemos todos. Há pessoas que pensam que não, mas eu acho que sim. E, apontando para o rapaz da caixa, continuou:

- Ele é bom rapaz, mas não sei se concorda comigo, porque fala pouco. Eu conheço toda a gente que trabalha aqui. Já venho cá há anos. Venho ou não venho, perguntou sorridente, dirigindo-se outra vez ao rapaz da caixa.

O rapaz sorriu e, como o velho já tinha pegado no saco com as compras, desejou-lhe bom dia e bom domingo.

E foi quando o velho, acenando para outro funcionário que passava, se voltou de novo para o rapaz da caixa e lhe perguntou quase eufórico:

- Sabes aonde vou hoje de tarde? Vou à praia ver os biquinis.

O rapaz da caixa sorriu de novo, continuando a registar os produtos que lhe passavam pela mão.

Não sei se na sua discreta concentração, o rapaz da caixa ia ouvindo sons de ondas do mar nos clics do contacto com o código de barras.

 

 

sábado, 13 de maio de 2023

Anjos III

 



 O texto que enviei para esta terceira coletânea:


Foram anjos que desceram do filme?

 

Domingo à tarde. De chuva calma mas persistente. A convidar para um filme. No largo prazer do grande écran e 'no escurinho do cinema', como cantou Rita Lee.

O escolhido foi um filme francês: Mascarade. Na sala de cinema, só quatro lugares ocupados, dois deles por um casal.

Sem intervalo, a história, onde são representados anjos e demónios em figuras humanas, foi passando diante dos nossos olhos e demais sentidos. Muitas paixões, muitas frustrações e muitas máscaras que as personagens iam manejando. Umas iam caindo, outras eram mantidas e manipuladas ardilosamente. Como acontece em tantos casos, em tantos palcos e planos da nossa vida comum ou pública.

E cinema pede música. Entrelaçada com outros sons, foi emergindo uma canção do final dos anos sessenta: La Bambola. Era como se rompêssemos a linha do tempo e entrássemos, por breves instantes, nos bailes de garagem, enquanto jovens em abraçados slows, à volta de um pequeno gira-discos, do vulnerável vinil e de venerados ídolos.

Terminado o filme, a mesma música italiana fez-se ouvir, acompanhando a extensa ficha técnica. Estava na hora de deixar a sala.

Foi quando, descidos os degraus para a saída, o homem e a mulher se abraçaram e, felizes, começaram a dançar. Nem sei se ouviram os nossos aplausos. Talvez os anjos não necessitem tanto deles.

Sim, seriam anjos que haviam descido do filme? Moviam-se sem máscara. Com sorriso. Sem mentira. Com verdade. Sem ressentimento. Com amor. Sem preconceito. Com liberdade.   

Não, só podiam ser pessoas.

 

 

domingo, 7 de maio de 2023

Mãe

 

Quando passo junto à casa da minha mãe, revejo-lhe as mãos que, em vida, não paravam de zelar, verbo muito frequente no seu vocabulário quotidiano. Vinha muitas vezes acompanhado de ‘minha casinha, meu lar’ porque a sua casa era o seu amado e desejado universo. Sempre lhe vi o grande apego à casa - o seu refúgio, o seu descanso, o seu alimento, o seu trabalho de que não se queixava, porque entendia-o como mandamento de Deus.

Agora, que já não está entre nós, sinto a falta da sua voz, da sua presença,

de ver os seus gatos no pátio, aquecendo-se em manta quente ou ronronando ao sol;

de olhar a mesa da cozinha sempre posta, onde nunca faltava pão, chá e biscoitos;

de ver chegar os pequenos jornais católicos, donde ela retirava lições e exemplos de vida que contava e louvava. E agora tenho pena de não ter tido mais paciência para ouvir os casos relatados que eu considerava húmidos de tanta água benta;

de ver a sua preocupação quando pressentia fruta caída no chão e era preciso aproveitar. Estava boa e fazia fartura, dizia ela. Mãe, se a deixarmos muito tempo na árvore, acaba também por cair e estragar-se, dizia eu;

de apreciar os trabalhos de mãos que fazia;

de a ver a cuidar das plantas logo de manhã muito cedo;

de ler os seus versos devotos e de passar alguns no computador, etc.

Porem, paulatinamente, a visão foi-lhe diminuindo, as pernas deixaram de lhe obedecer e a mente foi confundindo presente e passado.

- Filha, o teu pai está a demorar tanto.

- Mãe, o pai está no céu.

- Hoje passei toda a noite em casa das minhas irmãs, mas não sei como fui para lá nem como vim.

- Mãe, foi um sonho, agora descanse.

- Mas, filha, não abras a janela.

- Mãe, é dia e assim parece sempre noite.

- Os meus olhos e a minha cabeça não aguentam tanta luz.

- Mãe, se foi Deus que nos deu a Luz, então por que quer fechá-la assim?

E passou a dormir horas sem fim, com as janelas fechadas, como se preparasse o repouso final que chegou quatro anos antes de fazer 100 anos.

Tanta coisa me vem à cabeça quando passo à casa da minha mãe. Pensamentos e questionamentos para fora e para dentro de mim, onde culpa se mistura com legítimo cumprimento da vida.

Mãe, enquanto puder passar pela sua casa, indo mais depressa ou mais devagar, abrirei sempre as janelas da memória porque nela encontro flores de que preciso.

Não é por acaso que me dizem que estou a ficar parecida consigo. 

 

 

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Também ela pode ser uma arma?

 

Hoje, feriado nacional, dei-me ao luxo de me levantar mais tarde e, como tinha tempo e gosto de ouvir podcasts, ouvi dois logo ao começo da manhã.

Old Friends, com Júlio Machado Vaz e J. Sobrinho Simões - 'Late bloomers: a florescência das pessoas que se revelam mais tarde do que seria habitual'.

Muito interessante sobre o envelhecimento ativo. Com o passar da idade, pode-se ir desabrochando de diferentes formas, como mostram alguns exemplos.

PBX com Inês Maria de Menezes e Pedro Mexia - 'A cantiga ainda é uma arma: a doçura punk de Billy Bragg'

 

 

Eu não conhecia este cantautor, de 65 anos e nascido no Reino Unido. Nas suas canções, protesta contra vícios, por exemplo, do poder; defende direitos humanos, etc. 

Cada um à sua maneira, o mesmo fizeram e continuam a fazer muitos autores portugueses, como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Ary dos Santos, Sérgio Godinho e tantos outros que ajudaram a acender luzes num país triste e isolado em que quase todos viveram às escuras durante quase meio século.

As pessoas que escrevem as canções, as que as cantam, as que tocam, as que nelas trabalham também fizeram e vão fazendo delas uma arma, não das armas que matam, mas das que ajudam a construir um mundo melhor. Tão necessário, num tempo em que tudo tem a ver com tudo, mas acontecem tantos desligamentos, mentiras, ganâncias  e consequentes solidões em todas as idades. O legítimo desabrochar de todos tem de ir acontecendo.

Tenhamos esperança. Será que também ela pode ser uma arma?

Bom 1º de Maio de 2023.