quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Os barcos e as gaivotas

 

São muitos os barcos de recreio que circulam no rio Douro, entre o Cais de Gaia e a Afurada. Silenciosos ou com mais ruído vão passando para lá e para cá, num vai-vem colorido de turistas e de publicidade a marcas de vinho do Porto. Isto de passear no rio, nem que seja só por uns minutos, pode animar o corpo e a alma já que a alegria de brincar às viagens curtas num longo rio é para todas as idades. E quem vê corpos não vê corações, embora se pressinta o seu pulsar se o observador não for uma canoa demasiado pequenina.

Em pleno outubro, estes barcos turísticos, uns mais vagarosos outros mais aventureiros, navegam como se fosse verão, apesar de todos os elementos mostrarem sinais de outono, sobretudo ao início e ao final do dia. 

E as gaivotas, nos intervalos em que o rio não é riscado por rastos de espuma de barcos mais velozes, valsam com leveza na água ou aproximam-se, sem medo, dos pacientes pescadores à linha, pousando nas grades do passadiço ou sobrevoando os telhados. Ou abrem as asas e voam bem alto. Não sei se para verem a serra do Pilar ou a ponte Luís I mais de perto. Ou outras belezas das duas margens que não cansam o olhar. Ah, e o olhar humano é também um bom modo de voo.





segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Às vezes sentia vergonha

 

A Câmara do concelho onde vivo teve como presidente, durante largos anos, um homem que era muito conhecido sobretudo por más razões da sua governança. Ele eram os berros, ele eram os amiguismos, ele eram os eletrodomésticas para conquistar votos, ele eram as gaffes, ele eram os populismos, etc.

Nas diversas conversas quotidianas, as pessoas diziam que essas e outras verdades existiam, assim como havia negócios em que ele ficaria sempre a ganhar, mas que havia obra feita. Pensada e arquitetada durante o seu mandato ou não, várias obras apareceram, de facto, nessa altura. 

Porém, era fácil surgirem, porque os novos tempos assim o exigiam a qualquer um e no concelho, até então, havia muito pouco. Portanto, tudo o que se fazia era visível.

Nesse tempo - e ainda agora - seja onde for que vá, se disser donde venho, logo vem à baila o nome da criatura que, felizmente, deixou o cargo há bastantes anos. Às vezes eu sentia vergonha de dizer, porque parecia logo ouvir: diz-me donde vens, digo-te já quem és. 

Não seria necessário justificar fosse o que fosse, mas depressa fazia saber que nunca tinha votado nele.

Talvez me tenha lembrado disto hoje porque aparecem demasiadas figuras públicas que deveriam dar exemplos de honestidade à comunidade que as elegeu ou que as colocou em determinado lugar, mas olham só para si e para os seus desejos ou para o seu próprio proveito ou para o poder que querem garantir. E isto acontece na política, na banca, na igreja, etc. 

Como se o mundo que existe fosse apenas o seu mundo. E sem precisar sequer de dar justificações.

 

sábado, 16 de outubro de 2021

Não te reformes, disse ela.

 

Há uns anos, em dias de mais cansaço, pensava na reforma e, em conversas de intervalo para café, comunicava-o às vezes a colegas. Eram minutos em que, embora um bocadinho a correr, se falava das nossas vidas como gostos e desejos, estados da saúde (sem muitos pormenores, senão lá ia o intervalo todo), idas aqui ou ali, coisas de etc.

Num dia em que falei do assunto, uma colega, de quem sou amiga, disse-me: 'enquanto puderes, não te reformes. Dizem logo que temos todo o tempo do mundo e pedem-nos tudo e mais alguma coisa'.

Apesar de já ter passado bastante tempo, lembro-me bem da conversa e, em muitos casos, sei que é assim, mas não devia ser, na minha opinião. Quem se reforma, depois de longos anos de trabalho, tem toda a legitimidade de ter tempo para se dedicar a coisas que lhe dão prazer, como passear, ler, ir ao cinema, jardinar, aprender outras coisas, dedicar-se a outras causas, etc. sem nunca ouvir: 'podes porque não tens nada para fazer'.

Isto faz-me lembrar uma peripécia contada por uma das minhas tias, que sempre viveram numa casa de lavoura: um dia, um homem que lá trabalhava estava na hora do descanso, a seguir ao almoço, já depois de ter trabalhado longas horas. Um outro homem, que  descarregava um carro de bois, voltou-se para ele e disse-lhe: enquanto descansas, anda-me ajudar!

Ora, não ponho em dúvida a ajuda a família, o que, para mim, é inquestionável. E às vezes a gestão não é fácil porque muitos de nós, que já não estão no ativo, temos filhos, netos e pais. Daí chamarem-nos a geração sanduíche. 

Se às vezes é difícil gerir tudo, também é um privilégio sentir que ajudamos e aliviamos um bocadinho aqueles que amamos. Gosto muito de o fazer, mas também gosto muito de ter algum tempo por minha conta. E tenho-o, felizmente. Oxalá todos e todas pudessem dizer a mesma coisa. Com alegria e sem culpabilidade.

 

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

'Não tenho nada que fazer, estou reformado'

 

Conheço-o desde que se casou. Um homem alto, simpático, com as suas camisas aos quadradinhos, calças de bombazine e pulover. Foi serralheiro durante muitos anos e trabalhava por turnos. Às vezes, penso que teria tido capacidade e inteligência para uma profissão, por exemplo, ligada à saúde. 

Quando chegava ou partia de madrugada, tentava não acordar ninguém, sobretudo a mulher, a quem sempre chamou pelo petit nom e que sempre foi o amor da vida dele. Continua a sorrir com as histórias de namoro que ela sempre conta. Fica alegre com a sua alegria, apoia-a na sua tristeza, poupa-lhe os desgostos que pode e, mesmo sem pensar em promessas feitas, sempre esteve presente 'na saúde e na doença, na alegria e na tristeza...' 

Pois bem, depois de muitos anos de trabalho dedicado, veio a reforma. E as doenças dos familiares com quem viviam. E os seus cuidados diários. E as sua mortes. E as preocupações e ajudas mais variadas de pai. E as chamadas de vizinhos que viviam sós e precisavam de alguém...

Sempre o vi em atividade e quase esquecido de si próprio. Para ele, os outros, sobretudo a família mais próxima, sempre contaram mais.  Uma vida inteira de disponibilidade e generosidade, sem má cara, sem más palavras, sem qualquer queixa, sem azedume, sem cobrar nada.

Como a idade não perdoa, apesar de ter saúde, ouve muito mal, mas continua sempre a ajudar a família. Tal como durante toda a sua vida, pouco tempo lhe sobra para ele, a não ser a leitura do seu JN e os jogos do seu FCP. No entanto, não deixa de dizer, como sempre ouvi: se precisares de alguma, diz, não tenho nada que fazer, estou reformado. 

 

terça-feira, 12 de outubro de 2021

Conversa na bomba de gasolina com mano dentro

 

- Arranjas-me um bidão de gasolina? 

- Ó mano, combustível só no carro.

- Tenho o carro parado. Preciso de gasolina.

- Se eu pudesse, mano, vendia, mas não posso.

- O bidão é pequeno. Ninguém precisa de saber.

- Ó mano, já tive stress por causa disso. 

- Fogo, custava-te alguma coisa?

- Ó mano, vai à Galp. Pode ser que te arranjem. Não quero ter mais stress, mano.

 

Quando saí da bomba de gasolina, o meu telefone tocou. Era o meu mano.



domingo, 10 de outubro de 2021

Perfeição vs imperfeição

 

De há uns anos a esta parte, a flor da foto - julgo que é da família das proteias e que me foi oferecida - abre-se, por esta altura, com todo o seu esplendor e perfeição no jardim da minha casa. Um assombro harmonioso de forma e de cor. Não ocupa muito espaço, mas é impossível não se reparar nela pela bela sofisticação.

 

Porém, dou comigo a pensar que prefiro flores menos perfeitas. Acontece-me o mesmo com certas rosas. As suas linhas são tão bem tecidas e desenhadas que deixam de parecer naturais, ostentando algum exibicionismo que me desagrada.

Sim, prefiro, de longe, flores mais simples e imperfeitas, nas quais encontro mais completas perfeições. 

 

  

sábado, 9 de outubro de 2021

Há viajar e viajar...

 

Obrigada, Idalina, pela partilha de mais uma leitura. Com este excerto, fiquei com vontade de ler o seu autor - Leonardo Padura. Gosto quando os escritores falam dos lugares onde vivem, por onde passam ou já passaram. É como se lá fôssemos ou lá voltássemos. Ler também pode ser uma boa viagem. Como parece ter sido esta viagem a Paris.



 

“Paris é um mundo, e as recordações de cada pessoa que lá viveu são diferentes das recordações de qualquer outra… E isso é bem verdade, embora tenha sido Hemingway a dizê-lo, ele que foi o escritor mais ególatra e narcisista do século. A minha recordação de Paris é como uma nostalgia azul da qual, em vinte anos, não fui capaz de me libertar. Porque, quando cheguei a Paris, naquele mês de abril de 1969, já tinha despontado uma primavera tão bela que doía e dava vontade de fazer alguma coisa para ser mais feliz, se é que a felicidade existe, para ser mais inteligente e abarcar tudo, conhecer tudo, ou para ser mais livre, se é que isso também existia, existiria ou existiu alguma vez. E lembro-me de que senti a magia de um sol carinhoso, de veludo, banhando os Campos Elísios, os grandes palácios napoleónicos, a frivolidade dos cafés, e compreendi melhor o que acontecera um ano antes. Ainda sinto como uma carícia na pele a luz da tarde contra a rosácea frontal de Notre Dame, o rumor histórico e escuro do Sena por alturas da Cité, e oiço aquele tocador de realejo diante do Louvre, fazendo dançar o seu macaquinho africano ao som de uma valsa vienense. Também me lembro daquele concerto dos Rolling Stones, quando pretendiam ser mais rebeldes do que os Beatles, e onde os pude ver a duzentos metros de distância, sob o céu frio da primavera de Paris, entre os gritos de adoração daquelas loirinhas francesas, livres, filhas abortadas e mães recém-paridas de uma revolução que poderia ter sido e não foi, embora depois daquele maio o mundo nunca mais tenha sido o mesmo, porque afinal se tinha feito a revolução: a revolução dos costumes e da moral, a revolução permanente do século vinte que Liev Davidovitch Bronstein, aliás, Leon Trotsky, jamais imaginara.”

Leonardo Padura, Quarteto de Havana, p. 44

 

Leonardo Padura Fuentes – Wikipédia, a enciclopédia livre
Leonardo Padura nasceu em Cuba em 1955

 


quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Flores de agosto - em outubro

 

Flores de agosto

 

Procuro-vos, flores de agosto. As que nascem nos caminhos que me levam à infância vestida de verão. Aquelas que via romper, espontâneas, na beira dos riachos, nos campos, nos muros, nos cômoros que subíamos e descíamos em desenfreada correria,  para ver quem chegava mais depressa ao cimo ou ao fundo.

Ainda sem saber que os pés sujos da poluição as calcariam de morte.

Procuro-vos, flores de agosto, junto de límpidas nascentes antigas e charcos, onde rãs coaxavam em estreladas noites de claridade azul.

Ainda sem saber que as nascentes secariam e os charcos seriam terra seca e gretada.

Procuro-vos, flores de agosto, debaixo de árvores que eram abrigo de brincadeiras à sombra fresca do verdor da idade.

Ainda sem saber que muitas florestas seriam queimadas pelo fogo de loucuras várias e de tresloucadas ambições.

Procuro-vos, flores de agosto, nas dunas esquentadas pelo sol ou arrefecidas no silêncio noturno da maresia.

 Ainda sem saber das barreiras para humanos  invasores.

Procuro-vos, flores de agosto, nos montes que percorri na certeza pueril de alcançar a distância.

Ainda sem saber que o tempo  é veloz e inalcançável.

Procuro-vos, flores de agosto, revisitando lugares que então floriam felizes.

Desejando que possam voltar.

                              Sabendo já que a infância, não.

 

 Maria Dolores Garrido, in coletânea Mimos de agosto, p. 49, Mimos e Livros Edições, set. 2021

 

 


terça-feira, 5 de outubro de 2021

Dia da República com nevoeiro(s)

 




sábado, 2 de outubro de 2021

O retiro mas afinal não

 

Há muitas semanas que lá não vou. Tenho vontade de passar algumas horas na pequena cidade com mar ao fundo. E disse de mim para mim que hoje iria para lá em dia de retiro. Não como aqueles que fiz em Miramar quando era muito nova, com outras raparigas, a conselho das nossas mães, muito religiosas. Eram retiros com muitas orações e reflexões dentro e também tempo de diversão e risota.

Não, desta vez, o retiro era mais breve, desenhado por mim e ao meu ritmo. Se não chovesse, faria uma caminhada até ao mar. Talvez logo que chegasse. Como levaria o computador comigo, era certo e sabido que me sentaria e passaria junto  dele uma boa parte do meu dia. Essa seria a parte mais  desejada do meu desejado retiro. 

 

O dia hoje amanheceu chuvoso. Não foi por isso, mas mudei o meu projeto para o dia. Outros afazeres me convocaram em casa. Espero, no entanto, vivê-los, não em retiro, mas sentindo que retirei o peso do que tem de ser feito e ainda não foi.

E não é que o tempo está de feição! Como estaria para um pequeno retiro. 

Espero ver-te em breve, pequena cidade com mar ao fundo! Vou tentar conhecer-te melhor.  Para isso, não levarei o computador.

 

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Fósseis já sem megafone

 


Perto da zona onde vivo, há serras com fósseis. Há muitos anos, participei, por lá, em visitas de estudo. O dinamizador punha todo o empenho e entusiasmo nessas atividades. Preparava mapas, fazia desenhos, apontava para o relevo e para as linhas do horizonte, respondia a perguntas... Ah, e levava sempre um megafone que outros elementos do grupo, em momentos de descontração, também usavam para slogans que faziam rir toda a gente.

Motivados e divertidos, calcorreávamos montes e vales à procura de fósseis para os quais nos eram dadas explicações. Ficou-me sobretudo a busca alegre e arejada de marcas de seres que por lá viveram e que nós, passados milhões de anos, procurávamos com interesse. Ainda guardo alguns desses fósseis.

Os da foto trouxeram-mos esta tarde. Do mesmo local.

Para além das recordações que me avivaram, interrogo-me:

Que marcas humanas deixaremos nós?

 

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Procurando...

 ... a terra

 




... o céu






segunda-feira, 27 de setembro de 2021

O solitário da rua, as sondagens e o self made man

 

Ainda tenho nos olhos e nos ouvidos muito do que vi e ouvi na noite de ontem, de eleições autárquicas. E das muitas sondagens que, nas semanas anteriores, ilustravam manchetes e títulos de muitas páginas de jornais. Eram previsões tidas como quase certezas. E assim eram discutidas. E comentadas. E divulgadas. E propagandeadas... 

Em grande plano estava a Câmara de Lisboa.

Como a noite ia longuíssima e não sou pessoa de grandes noitadas, fui dormir, o que sossegou este espectador e não candidato a qualquer cargo público ou político. 

Na repartição onde trabalho, continuarei a ouvir alguns ecos dos resultados das eleições, mas como as pessoas agora se afastam mais umas das outras e não entram todas de uma vez como num funil, nada haverá de especial, com certeza. Tal como não há na minha vida. E digo isto sem tristeza, apesar de ter algum ar tristonho, eu sei.

Hoje, não sei se pela chuvinha, que começou a cair logo de manhã, se pelo outono que está a chegar, lembrei-me que me sinto várias vezes um Fernando Medina, se confio que vou ter uma vitória - ainda que as vitórias de um funcionário de uma repartição pública sejam muito pequeninas.

Nesses momentos, fico contente, acredito, sorrio, quase me empolgo, mas, na hora agá, quem sai vencedor é um Carlos Moedas em quem, aparentemente, poucos pareciam apostar, que aparece e tira a cadeira.

E isto acentua a minha mania de achar que se o dia começa bem, pode acabar mal, como a Fernando Medina; ou, então, se a coisa começou mal, pode acabar bem, como aconteceu com Carlos Moedas.

Eu sei que sou um anónimo cidadão, um self made man que pouco sabe e que muito terá de aprender. Pode ser que daqui a quatro anos a variação do meu humor não oscile tanto entre modelos FM ou CM. Para isso, continuarei a ouvir os ensinamentos da vida, se calhar, com a televisão mais vezes desligada.
 
Entretanto, pode ser que os senhores das sondagens aprendam também a acertar mais na mouche. Mas, como tenho dúvidas e muitas vezes me engano, continuo aberto às surpresas, embora não as saiba explicar. Não esqueçam que sou um self made man.
 
 
 

domingo, 26 de setembro de 2021

Quem não gosta de mimos?

 

Fui a uma editora

e oferecerem-me uns livros

A mim e à ilustradora

e sorrimos como meninos



Com os livros para crianças

eu fiquei muito contente

Não cessem as esperanças

de ver Crescer toda a gente

 


E  naquela editora

tanta palavra respirava

O mundo de que tanto gosto

sob meus olhos estava

 


E ao sair trazia os livros

feliz de presentes recebidos 

Os beijos são de evitar

mas nunca os mimos sentidos




Bom domingo! Votar também é mimar a Vida em Democracia!

 

 

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

 Obrigada, C.P.

 

Uma amiga emprestou-me este livro. Tem menos de 200 páginas e conta histórias relacionadas com alimentos e em que a nossa História também intervém. Destaco algumas narrativas: sobre um forno de cozer pão cujo uso era um ato de desobediência; acerca da alheira que foi criada por cristãos-novos como um modo de escaparem à Inquisição, estabelecida no séc. XVI, por D. João III.

Transcrevo aqui uma das páginas em que se explica a adoção deste enchido sem carne de porco - não consumida pelos judeus.

Começa assim o excerto:

'Na vila de Vinhais (...), criámos um  tipo de enchido que imita os enchidos...


Também há histórias sobre o bacalhau, a sericaia, o  D. Rodrigo, etc., contando-se a história dos primeiros usos culinários dessas iguarias, estando algumas ligadas aos Descobrimentos.

Cada narrativa é antecedida por uma explicação histórica contextualizando o alimento e de uma receita atual: bacalhau com broa, alheira com batatas e grelos, etc.

É, assim, um livro com diferentes sensações e experiências gastronómicas e históricas.

Sobre a autora - Paula Morais - , nada posso dizer porque nada sei. Se souber, digo, porque é preciso divulgar estes autores desconhecidos que produzem bons livros. 

 

Bom e saboroso fim de semana! 

 

 

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

O solitário da rua e essa coisa do normal

 

Eu, o solitário da rua, cheguei à conclusão de que não sou o único solitário da rua. Há o Manel. Não sabem quem é o Manel, pois não. Muita gente não sabe quem é o Manel. E talvez por isso as pessoas têm medo dele, atravessam a rua para não se cruzarem com ele, aceleram o passo, sentem o coração a bater mais depressa quando o veem ou o ouvem mesmo à distância...

Mas o Manel não faz mal a ninguém, ou melhor, só fez mal a si próprio e a dois primos com quem trabalhava. Foram mútuos os insultos e também a agressão foi de ambos os lados, mas, nesse dia, o Manel estava sóbrio. Só que não estava pacato, ainda que, quando está sóbrio, pareça pacato. Não andava de garrafa de vinho na mão como anda quase sempre. Nem vociferava fazendo gestos acusatórios com os braços sem se saber bem a direção.

Somos dois solitários da rua. Cada um à sua maneira. Ele a abrir-se a qualquer hora em acusações e ameaças a alguém ausente; eu, um pouco ensimesmado, um rato de casa depois de chegar da repartição, embora goste de janelas abertas à luz do dia, desde cedo.

Conheci os pais do Manel, que mal se ouviam de tão discretos que eram. Não sei se ele conheceu os meus e nem vale a pena perguntar-lhe porque, por estes dias, não larga a garrafa, anda sempre aos ziguezagues e nem se percebe bem o que diz. Os pensamentos devem ser uma gaveta atafulhada de quase tudo que é barafunda.

Por que é que todas as ruas, ou melhor, muitas ruas têm sempre um ou dois alguéns que, embora diferentes, saem da caixa da normalidade?

Ou será este o normal e não o outro a que sempre nos habituámos a chamar normal?

 

sábado, 18 de setembro de 2021

Conversa com escola(s) dentro

 

- Não sei o que se passa comigo.

- Então?

- Trabalho há mais de trinta anos e continuo ansiosa nesta altura.

- Por ser o primeiro dia de aulas?

- Sim. Nessa noite, nem consigo dormir.

- E eu, já pensaste?

- Tu? Também ficas ansiosa?

- Fico, claro.

- Porquê?

- É que já nem sei quantas vezes entrei em escolas pela primeira vez.


Quadros da pintora Menez - 1926/1995




sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Diz-me, espelho meu!

 

Diz-me, espelho meu, 

haverá mais medricas como eu?

Quando faço exames médicos,

fico triste a cismar

nos resultados que vou ter

e a espera até aumenta

cá a minha nostalgia

que a vida me revelou

a par de muita alegria.

 

Diz-me, espelho meu, 

há esquisitos como eu?

Eu sei que sou emotiva,

que quero muito a esta vida,

mas gosto de ser racional.

Então, por que penso no mal

quando há incerteza

sobre o que o laboratório

- que me parece um purgatório,

apesar de nele verem

o que dizem ser beleza - 

vai contar

em tabela nunca igual?

 

Diz-me, espelho meu, 

se outros sentem como eu

este pico de ansiedade

antes de saber a verdade

de análise ou diagnóstico.

Eu, um ser crente e não agnóstico,

já devia saber

que não é preciso sofrer

com esta antecipação,

apelando à calma e à razão 

e, com boa disposição,  

pensar como diz o ditado,

mas sempre de olhar animado,

que tudo passa

- ainda que nem tudo passe -

e haverá por cá sempre gente

que a vida convida a ficar,

embora ficar cá não fique

ninguém para a semente! 

 


terça-feira, 14 de setembro de 2021

Conversa com trovoada e gente dentro

 

- Que trovoada!

- Tem medo?

- Tenho. Desde pequena.

- Tem medo também?

- Eu, não. 

- Que bom, então.

- Medo só de gente, de trovoada, não! 

 

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

O sítio

 

Com o seu sotaque brasileiro, ela disse que agora tudo lhe corre melhor, mas quando chegou a Portugal e começou a trabalhar nas diferentes casas e a mandavam pôr as coisas no sítio, ficava confusa.

Para ela, o sítio era uma fazenda, como a fazenda do seu avô, no nordeste do Brasil. E que o quintal de uma das senhoras lhe fez recordar esse sítio. 

Até fiquei arrepiada, quando o vi pela primeira vez. Ainda me arrepio só de pensar. Veja só! Parecia que estava no sítio do meu avô, disse ela.

Ah! Então, o Sítio do pica-pau amarelo tem esse sentido.

Tem, sim. E eu gostava de ver a série e de ler os livros de Monteiro Lobato. Já faz muito tempo, mas não esqueci, não. Quando lembro, parece que volto ao sítio do meu avô.


sábado, 11 de setembro de 2021

Difícil falar

 
Obrigada, IA, por este livro.

deste livro. Para mim, é claro.

O título dos capítulos contém sempre palavras da primeira frase da página. Resolvi fazê-lo também para iniciar este texto, apesar de não gostar de imitações. Talvez por não saber muito bem como começar. Mas vamos a isso, porque palavra puxa palavra...

A história, ou melhor, as histórias passam-se num Oriente, muitas vezes imaginado. Uma espécie de Mil e Uma Noites, em que muita coisa é criada e recriada e nos deixa atentos e fascinados como os olhos das crianças quando gostam do que estão a ler ou a ouvir.

É um romance poético, que gostei de ler com um lápis na mão porque há muitas e muitas frases que apetece sublinhar. Ou porque são sábias, ou porque são belas, ou porque são encantatórias, ou porque são surpreendentes...

Destaco algumas personagens: um menino que viveu com o seu pai biológico e outro menino que foi adotado, um homem mudo e que é um grande poeta, a mulher de um homem que o abandona, um homem que tem uma fábrica de tapetes e que às vezes não sabe como tecer a sua vida, uma mulher que quer casar e que anseia por uns sapatos de salto alto...

E nas quase seis centenas de páginas, intercaladas de imagens a preto e branco, há temas como o amor, a infância, a traição, a morte, o abandono, a alegria, a guerra, o poder, o questionamento, o prazer, a religião e tantos outros que se vão entrelaçando. E só quem tem

um grande fôlego de escrita, de conhecimento, de estudo, de imaginação consegue realizar um livro assim. 

Os nomes das personagens parecem estranhos, embora uns mais do que outros: Bibi, Elahi, Salim, Isa, Badini, Nachiketa Mudaliar, Aminah, Azizi...

E tantas e tantas outras personagens - às vezes pessoas, outras vezes, uma espécie de marionetas - num universo que, próximo ou distante no espaço e no tempo, seduz o leitor, porque caminham entre o real e o imaginário.

Deixo um excerto, de entre tantos que poderia salientar.

Antes disso, deixem-me dizer que o autor - Afonso Cruz - nasceu em 1971, na Figueira da Foz e já recebeu muitos prémios literários. Para além de escrever, é ilustrador, músico, cineasta, produtor de cerveja e, se calhar, muita coisa mais (tantos talentos, meu Deus).

O excerto que escolhi tem a ver com o título do livro: PARA ONDE VÃO OS GUARDA-CHUVAS

 

Boas leituras e, sobretudo, feliz fim de semana. Com ou sem guarda-chuva(s). 

 


 

 

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

A importância do olhar

 

Uma mãe chega com uma filha, adulta, a um hospital particular. A mãe, à chegada, diz ao que vem. A funcionária pede-lhe os documentos. A mãe entrega os documentos pedidos. A funcionária pede o número de telemóvel, desta vez olhando a filha. A mãe diz o número do telemóvel. A funcionária pergunta se tem e-mail, olhando, de novo, só para a filha. A mãe diz o seu e-mail.

A filha, olhando a funcionária, diz: desculpe, quem vai fazer a intervenção cirúrgica é a minha mãe, não sou eu, por que que só me faz as perguntas a mim? A funcionária passou a olhar a mãe, tratando-a pelo nome.

 

terça-feira, 7 de setembro de 2021

Anunciando o outono

 

 

Vão aparecendo sinais de outono. Nas nossas vidas? Também.


segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Modos de olhar

 

 

Um dia, alguém me disse que o meu olhar era bastantes vezes avaliativo. Fiquei com pena, porque não gosto desse tipo de olhar. Só que nós próprios não nos olhamos enquanto olhamos os outros.

 

domingo, 5 de setembro de 2021

Será intrusa?

 

Se não tivesse sido eu a tirar a fotografia, diria que eram só flores, na sua singeleza e  diversidade. Mas está lá uma cabaça, e não é pequena, deixando viver feliz e à vontade quem lhe dá ajuda e apoio.

 

sábado, 4 de setembro de 2021

Doçuras ao sol de setembro

 

 

Um dia, ouvi: nunca colhi frutos de uma árvore. 

Lembro-me sempre disso quando vou ao quintal, apanho os frutos e saboreio-os logo ali.

Quem gostasse devia ter árvores de fruto por perto para os olhar e saborear.


sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Uma janela em setembro

 


quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Pássaros no aeroporto

 

Se calhar, é comum, mas nunca tinha visto pássaros dentro do aeroporto. Foi em Heathrow, de regresso ao Porto.

Cheguei duas horas antes como é da praxe. Dantes, tomaria um café enquanto esperava pelo voo, mas, desta vez, não o fiz porque não queria tirar a máscara.

Também gosto de me sentar e observar as pessoas, tão diferentes, a passar. 

Tal como tinha reparado em Gatwick, havia menos movimento. Talvez porque para quem chega ao Reino Unido é pedido teste covid, certificado digital de vacinação, inquérito de localização preenchido, passaporte...

Mas voltemos aos pássaros que, pela sala de embarque, andavam a esvoaçar. Talvez  tivessem fome e procurassem migalhas dispersas pelo chão. 

Também eu me deslocara a Londres para matar a fome da saudade. Não tinha ficado ainda satisfeita porque foi uma semana em presença quando a ausência havia sido de dezoito meses. E há tanta gente nestas condições.

Deixei de ver os pássaros quando me dirigi à porta com destino ao Porto, ou melhor, a Lisboa, onde fizemos escala e onde não vi pássaros, mas também os teremos, uns mais esfomeados, outros mais consolados.

Era bom regressar a Portugal, mas a vontade de voltar a Londres esvoaçava na minha cabeça. Como os pássaros no aeroporto.


quarta-feira, 1 de setembro de 2021