Maria Helena Vieira da Silva
Como me recordo! O dia começou de forma habitual.
Fui para a Faculdade de Letras do Porto. Nessa altura, a Faculdade estava
instalada no edifício em frente ao Hospital Sto António, onde hoje funcionam as
Biomédicas.
Subindo os Clérigos, ouvia-se um estranho silêncio.
Havia pouco movimento nas ruas. Nem parecia um dia de semana. Aqui e ali,
viam-se pessoas a procurar as notícias que iam sendo transmitidas pela rádio.
Eu não sabia o que se passava, nem tinha sequer um
pressentimento. Tinha nascido e vivido com a ditadura. Achava estranho quando o
meu pai contava - também lhe tinham contado - que um pequeno grupo de pessoas
estava a falar na rua e logo apareceu a PIDE para os questionar.
Na Faculdade, por entre os estudantes, entranhavam-se
os “Bufos” que ouviam as conversas para depois denunciarem quem criticava o
regime ou se pronunciava contra os professores ou contra a Direção. Muitas
vezes, vi alunos a entrarem de rompante na Biblioteca, sentarem-se a fingir que
liam ou estudavam, porque eram perseguidos pela polícia que aparecia à paisana e
os prendia, sem contraditório.
Nas aulas, só excecionalmente eram permitidas
questões sobre a matéria ou outras. Um dia, um jovem professor de História de
Portugal travou diálogo com os alunos sobre a matéria. Receoso, como se
estivesse a cometer um grande pecado, olhava para a porta. Se entrasse o
Diretor, seria chamado à atenção. E assim aconteceu: de repente, a porta
abriu-se e uma figura impôs-se, num silêncio pesado, mostrando viva discordância
pela atitude a que de imediato pôs fim.
O medo era avassalador, calando muitas vozes e
limitando muitos gestos.
A guerra colonial ia ceifando as vidas de muitos
jovens que matavam e morriam sem saber porquê
E eram tão longas as trevas impostas pelo regime
autoritário que a grande maioria das pessoas se habituara a conformar-se. Os
mais conscientes da situação política revoltavam-se e a sua coragem
custava-lhes muitas vezes a prisão e até a tortura.
Nessa manhã do dia 25 de Abril de 1974, quase a chegar à Faculdade,
perguntei a alguém que segurava o transístor junto ao ouvido, o que se passava.
“É uma Revolução de militares em Lisboa” foi a resposta. Na Faculdade,
anunciava-se que não havia aulas. Regressei a casa. À hora do almoço, ouvimos
as notícias e tudo soava a estranhamente novo. Um sistema demasiado enraizado
parecia estar a tremer.
Tu telefonaste-me. “Vamos sair. Está a haver uma
revolução. Já chegou ao Porto. Está a espalhar-se por todo o país”.
E fomos. Atravessámos o rio pela ponte D. Luís e
fomos para a Serra do Pilar, onde julgo que um militar discursava num comício,
onde as pessoas iam chegando incrédulas.
Nos nossos olhos havia espanto. Tudo era novo,
porque a Censura tinha riscado os factos que não agradavam aos governantes
seguidores da política de Salazar.
No ano seguinte, casámos em tempo já de Liberdade.