quinta-feira, 24 de abril de 2014

"Onde estava no 25 de Abril"

 
Maria Helena Vieira da Silva
  
Como me recordo! O dia começou de forma habitual. Fui para a Faculdade de Letras do Porto. Nessa altura, a Faculdade estava instalada no edifício em frente ao Hospital Sto António, onde hoje funcionam as Biomédicas.
Subindo os Clérigos, ouvia-se um estranho silêncio. Havia pouco movimento nas ruas. Nem parecia um dia de semana. Aqui e ali, viam-se pessoas a procurar as notícias que iam sendo transmitidas pela rádio.
Eu não sabia o que se passava, nem tinha sequer um pressentimento. Tinha nascido e vivido com a ditadura. Achava estranho quando o meu pai contava - também lhe tinham contado - que um pequeno grupo de pessoas estava a falar na rua e logo apareceu a PIDE para os questionar.
Na Faculdade, por entre os estudantes, entranhavam-se os “Bufos” que ouviam as conversas para depois denunciarem quem criticava o regime ou se pronunciava contra os professores ou contra a Direção. Muitas vezes, vi alunos a entrarem de rompante na Biblioteca, sentarem-se a fingir que liam ou estudavam, porque eram perseguidos pela polícia que aparecia à paisana e os prendia, sem contraditório.
Nas aulas, só excecionalmente eram permitidas questões sobre a matéria ou outras. Um dia, um jovem professor de História de Portugal travou diálogo com os alunos sobre a matéria. Receoso, como se estivesse a cometer um grande pecado, olhava para a porta. Se entrasse o Diretor, seria chamado à atenção. E assim aconteceu: de repente, a porta abriu-se e uma figura impôs-se, num silêncio pesado, mostrando viva discordância pela atitude a que de imediato pôs fim.
O medo era avassalador, calando muitas vozes e limitando muitos gestos.
A guerra colonial ia ceifando as vidas de muitos jovens que matavam e morriam sem saber porquê
E eram tão longas as trevas impostas pelo regime autoritário que a grande maioria das pessoas se habituara a conformar-se. Os mais conscientes da situação política revoltavam-se e a sua coragem custava-lhes muitas vezes a prisão e até a tortura.

Nessa manhã do dia 25 de Abril de 1974, quase a chegar à Faculdade, perguntei a alguém que segurava o transístor junto ao ouvido, o que se passava. “É uma Revolução de militares em Lisboa” foi a resposta. Na Faculdade, anunciava-se que não havia aulas. Regressei a casa. À hora do almoço, ouvimos as notícias e tudo soava a estranhamente novo. Um sistema demasiado enraizado parecia estar a tremer.
Tu telefonaste-me. “Vamos sair. Está a haver uma revolução. Já chegou ao Porto. Está a espalhar-se por todo o país”.
E fomos. Atravessámos o rio pela ponte D. Luís e fomos para a Serra do Pilar, onde julgo que um militar discursava num comício, onde as pessoas iam chegando incrédulas.
Nos nossos olhos havia espanto. Tudo era novo, porque a Censura tinha riscado os factos que não agradavam aos governantes seguidores da política de Salazar.
No ano seguinte, casámos em tempo já de Liberdade.



terça-feira, 22 de abril de 2014

Para que a memória não deixe de tocar


domingo, 20 de abril de 2014

Páscoa - Impossível não me lembrar



- da espera do Compasso em domingo de Páscoa
Com o soar pressentido da campainha que anunciava a chegada do grupo de homens que repetia a palavra Aleluia. E que todos repetiam também. A devoção rimava sobretudo com tradição.

- das flores no chão, junto da porta de entrada, para que a casa não fosse esquecida.
E eram goivos e páscoas e margaridas porque o tempo era de ressurreição também das flores. Depois ficava o cheiro pisado que o vento noturno secaria.

- da impaciência refilada dos rapazes que queriam sair porque tinham as namoradas à espera e a Visita Pascal demorava.
E ficavam, ficavam à porta e juntavam-se com os vizinhos que também esperavam à sua porta, falando todos uns com os outros porque era Páscoa e cumpria-se a tradição: receber o compasso em casa. Ou beijar a Cruz, como também se dizia.

- das crianças que corriam à volta do compasso e recebiam amêndoas.
Era o tempo em que as crianças brincavam na rua. E corriam o arco. E jogavam às caçadinhas. Ou ao pião. E chutavam uma bola de pano. E as meninas jogavam à patela. E fugiam com medo dos rapazes que se escondiam entre o milho e atiravam pedras para as assustar.

- das orações que o Padre repetia na sala melhor (com as cortinas e os tapetes lavados) com a família reunida em semi-círculo.
E se estava calor, o Padre e os outros homens transpiravam e davam os pés de Cristo a beijar na Cruz, e o afago passava pelo respirar quente de todas as bocas.

- do cheiro a assado no forno e das idas da mãe à cozinha para vigiar a assadeira para que nada se queimasse, enquanto o pai ia calculando o tempo que faltava para o compasso chegar.
E eram certas as casas onde o Compasso parava para almoçar. Quase sempre de grandes mesas e de fortes alegrias sacramentais.

- das melhores colchas à janela para receber Cristo ressuscitado.
Muitas de renda branca, outras de tecido adamascado, outras fininhas mas lavadas e alisadas para o efeito.

- das brincadeiras, dos sorrisos, dos medos, dos sonhos…
- do feliz esquecimento de que nada seria para sempre. E de que nem todos estariam presentes em futuros domingos de Páscoa.



sábado, 19 de abril de 2014

Em abril, flores mil


sexta-feira, 18 de abril de 2014

Em "tempos de um abril diferente"

Li e gostei muito do poema de Vítor Oliveira no seu blogue Carruagem 23
Senti vontade de alargar a partilha,
porque retrata bem algum do nevoeiro que se foi instalando
 ao longo destes 40 anos pós 25 de Abril de 1974. 
Como também vivi o Portugal de então, é inegável que o país está melhor
 - as pessoas, é claro, e não uma entidade oligárquica ou abstrata -,
mas, infelizmente, ainda há muitas áreas em que é roubado 
"ao futuro o tom da alegria".


                                                                                                                     Vítor Oliveira

ESCREVER contra a morte


 Há muitos muitos anos, li os Cem Anos de Solidão de Gabriel García Márquez. O romance impressionou-me pelos enredos ao longo de várias gerações. Era difícil não conhecer alguém semelhante a uma qualquer personagem.

Este ano, no 10º ano de escolaridade, abordámos o conto "Surpresas de agosto", incluído na coletânea Doze Contos Peregrinos do mesmo autor.

A história começa assim:

"Chegámos a Arezzo pouco antes do meio-dia, e perdemos mais de duas horas à procura do castelo renascentista que o escritor venezuelano Miguel Otero Silva comprara naquele recanto idílico da campina toscana. Era um domingo de princípios de agosto, ardente e buliçoso, e não era fácil dar com alguém que soubesse fosse o que fosse no meio das ruas a abarrotar de turistas".

O final - não o transcrevo no intuito de aguçar a curiosidade de quem o não conhece - é inesperado e confirma o "realismo mágico", sabiamente manejado pelo escritor.
Recordo-me da reação de alguns alunos (muitas vezes dizemos que nada lhes agrada e nada os surpreende) de aberto espanto perante o final inesperado e nada convencional.

Os meios de comunicação social estão a divulgar a morte deste grande escritor que nasceu na Colômbia em 1927.

Morreu o homem mas a sua obra reitera a ideia que ESCREVER é também uma luta contra a morte.





quinta-feira, 17 de abril de 2014

Rosinha


Todos os dias, enquanto o marido dormia mais repousado, vinha fazer uma visita ao quarto 25. Chegava, saudava com palavras simples e sorridentes. “Então, Rosinha, está melhor?”

Rosinha olhava-a e tentava sorrir também, balbuciando, a custo, algumas palavras para retribuir a simpatia.

E ela dizia para a acompanhante de Rosinha: “Vou ficar cá até à próxima semana. O meu marido sente-se melhor assim. Chego-lhe mais vezes água e chamo a enfermeira quando é preciso”.

E virava-se para Rosinha e dizia: “Quando estiver boa, vem a minha casa tomar um chá. Afinal moramos perto”.

Ontem não veio. Nem no dia anterior tinha vindo. Perguntei.

Para esse quarto já tinha vindo outra pessoa.

Desafio com água e frutos


Mário Cláudio, na Comunidade de Leitores, em Serralves, sugeriu a escrita de um texto, em 10/15 minutos, convocando as frases/ideias seguintes, apresentadas por dois dos presentes:
- Pensar com os pés dentro de água.
- Apanhar frutos da árvore e saboreá-los no momento.

 O curso tinha o tema: “Os prazeres e os dias”.

O que escrevi:
Fui ao quintal ver se ainda havia laranjas. Tinham ficado duas no cimo da laranjeira. Não lhes chegava. Desdenhei-as, então, como a raposa fez com as uvas que pendiam da videira e que só o seu olhar alcançava.
Queria apanhar frutos da árvore e saboreá-los no momento e as únicas possibilidades estavam mais perto do céu do que das minhas mãos.
Desisti do intento. Entrei em casa e pus-me a pensar com os pés dentro de água. Não, pensar não é estar doente dos olhos, mas queria sentir os frutos em vez de simplesmente os olhar.
De madrugada chegarão os pássaros. A essas horas, a bacia de água, onde amacio os pés, ganhará a dimensão do mar. Ou não.
Porque também há sonhos que se sonham frios.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Veio da Livraria Poetria - no Porto


 Alberto Caeiro, heterónimo de Fernando Pessoa nasceu, segundo o próprio Pessoa, em 16/04/1889, faz hoje 125 anos e morreu em Maio de 1915


É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus,
Fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada. 

Alberto Caeiro





"TODOS OS DIAS NASCE E MORRE UM POETA,
E ÀS VEZES, É PRECISO QUE O POETA MORRA
PARA QUE A OBRA NASÇA."


Este é o texto que acompanha sempre o poema enviado pela Poetria, enquadrado nesta iniciativa: "Todos os dias nasce e morre um poeta".

Aparentemente simples, pode fazer com que outros poetas nasçam. E sobretudo leitores.