sábado, 24 de novembro de 2012

Retrato de mulher com ateliê de escrita ao fundo


Esta semana, vai iniciar-se, em Serralves, 
um novo curso/ateliê de escrita: 
 "Literatura e Música: um diálogo eterno".
                              
O dinamizador é o escritor Mário Cláudio.

Por acaso, encontrei este pequeno 
texto que escrevi num ateliê de escrita anterior.

Mulher que gosta do mar, que ouve e vê, no barulho das ondas, outros elementos da natureza, que se sobressalta com o equilíbrio azul das palavras límpidas de Sophia ou  com os versos ensolarados de Eugénio, poeta que também iluminou quadros de pintores como Júlio Resende. Mulher que sente a amorosa errância ardente de Florbela ao olhar as árvores solitárias e esquentadas do Alentejo.
Mulher que teme o frio e o vazio das grutas mas que delas se aproxima em busca de luz e de silêncio. Que gosta de passear mas que o faz muitas vezes olhando a janela, vendo as camélias a florir lá fora. De tão próximas, parecem abrir cá dentro.
Mulher que gosta de escutar e ler os textos de Mestres da Literatura, mas também de ouvir os dos colegas de ateliê que, em poucos minutos, escrevem uma história com todos os sentidos, fazendo emergir a pluralidade das vozes. De si próprios ou de seres com quem se cruzam.
Mulher que vai escolhendo e combinando palavras que apanha na beira dos caminhos que conhece, embora gostasse de as colher mais fundo.
Mulher que gosta de ouvir música que irrompe também da combinação de palavras e de sílabas. Que se deixa embalar com a música de Jacques Brel à qual gostaria de repetir: Ne me quitte pas.
Mulher que gosta de escrever pequenos textos e de os ler em voz alta. Tal como qualquer artesão que partilha as suas pequenas peças. Ou um adolescente que envia uma mensagem que o deixa insatisfeito mas mais tranquilo.
Mulher que, no ateliê, toma notas sobre Literatura e sobre o Mundo, sentindo este mais habitável e mais visível, graças a todos que o reescrevem.
Mulher que acha quase tão reais os Pescadores de Raul Brandão como os pescadores que vê junto ao Douro.
Mulher que gosta de escrever, pondo-se na pele de outrem, embora não possa fugir de si própria como permitia a genialidade de Fernando Pessoa.
Mulher que se confronta, como qualquer ser humano, com o seu destino, com o seu papel no mundo, que se interroga sobre as marcas que vamos deixando com o passar dos dias.
Mulher que vê o Atelier de Escrita como uma orquestra, onde cabem diferentes músicos, diferentes instrumentos, trabalhando todos sob a batuta de um Maestro que, para além de orientar o grupo, tem vasta obra produzida e vai ajudando a que cada um, à sua maneira, vá compondo novas peças.
Mulher que vai acrescentando novos elementos para ir compondo um possível retrato. Também com o Ateliê de Escrita ao Fundo.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Miloko

Miró
Miloko n’est qu’un enfant. Nu et pieds nus dans la rue. Venu de loin, d’un de ces pays lointains, inscrit en lettres minuscules sur la mappemonde. Entre brouillard et pluie, il a débarqué une nuit de nulle part, les yeux pleins de sommeil et de fatigue, avec d’autres enfants, avec d’autres Miloko qui se sont aussitôt éparpillés aux quatre coins de la grande ville.
Alors il a longé le caniveau, frôlant les façades aux volets fermés. Il a suivi les lampadaires comme les marins suivent les étoiles. Il a marché longtemps, jusqu’au petit jour, puis épuisé, s’est endormi sur la plage, bercé par le ronronnement des vagues. Les cris des mouettes et des goélands l’ont réveillé. Il a regardé les bateaux flâner nonchalamment sur la mer. Il avait faim. Il a monté la grande avenue, celle des magasins. Invisible, transparent, la foule l’ignorait. Miloko n’était qu’un enfant nu et pieds nus dans la rue.
Un jour, au rond-point de l’autoroute, face à l’aéroport, près du supermarché, il a rencontré des gamins comme lui, des Miloko nus et pieds nus qui l’ont adopté. Sous le pont de l’échangeur, abrité du vent et des intempéries, Miloko, avec des cartons géants de frigos, des cartons énormes de téléviseurs, des cartons immenses d’objets futiles et dérisoires, s’est bâti une cabane fermée par un fil de fer, entre les cabanes de ses nouveaux compagnons.
Ses copains lui avaient prêté une raclette, des chiffons, une bouteille avec de la lessive qui faisait des bulles multicolores dans les reflets du soleil. Au rond-point du supermarché, Miloko attendait les voitures qui stoppaient au feu tricolore. Du vert au rouge passant par l’orange, du rouge au vert sans révérence, il levait les essuie-glaces, grattait, tirait, lavait les vitres souillées de boue et de moucherons. Dans les voitures des cris, parfois des injures ! Les conducteurs, lunettes fumées, remontaient les glaces, détournaient le regard, accéléraient dès le passage autorisé, n’osant affronter de face la vérité. Parfois, par la vitre entrebâillée, portières fermées, loquets baissés, une main négligemment tendue jetait une pièce, une menue monnaie sur le bitume.
Miloko les remerciait, un bref éclair sur son visage…
Au début du printemps, à l’aube, des camions bleus encerclèrent le village en papier. Personne n’eut le temps de fuir. Des hommes en uniformes, aux casques argentés, rassemblèrent les enfants au centre du rond-point et les comptèrent. Ils ont amené Miloko dans un grand immeuble, sur une colline, loin de la ville. Derrière les hauts murs noirs, il ne distinguait ni la mer, ni l’horizon. Des larmes inondèrent ses joues.
Alors il a pensé très fort à son village, dans ce pays lointain inscrit en lettres minuscules sur la mappemonde. Il a gribouillé à sa mère une cartepostale pleine de soleil, de ciel bleu, de promenades bordées de fleurs, de rues immenses et colorées… Il a raconté que, face à l’aéroport, près du supermarché, sous le pont, il possédait une cabane en carton…
Un matin, alors que la clarté se faufilait dans le parc, Miloko a sauté le grand mur. Nu et pieds nus, il a couru sans se retourner vers le rond-point du supermarché et s’est caché tout au fond de sa cabane. Il est resté longtemps, très longtemps, blotti dans son refuge, épiant le moindre bruit, sursautant aux tintamarres des moteurs. Puis, peu à peu, il a entrebâillé sa porte et s’est aventuré au dehors.
Depuis, chaque nuit, il compte les camions qui arrivent de nulle part. Entre brouillard et pluie, il scrute les ombres furtives qui se glissent dans l’obscurité. Il guette celle de sa mère. Il aimerait qu’elle soit là, qu’elle le serre si fort dans ses bras qu’il en perdrait le souffle…
Jean Siccardi; Joly Guth
Miloko
Draguignan, Lo Païs d’Enfance, 2004
(Adaptation)

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Diário de Mariana



 22 de novembro de 2012
Querido diário,

Hoje, disseram-me que já não escrevo há algum tempo e que já sentiam a falta. Fiquei toda contente, porque acho muito fixe quando gostam de nós.

Por falar nisso, o Silva disse-me que pensava que o Gi não era meu namorado, mas apenas meu amigo. Disse até que tratava a namorada por “minha fofinha” e nunca ouviu o Gi tratar-me assim. E disse também que há tempos, eu e o Gi andávamos um bocado zangados. Deve andar distraído e, se calhar, nunca se zanga, eu acredito mesmo! Também não sou daquelas que anda a dizer aos gritos de quem gosto. E tenho os meus segredos, como toda a gente. 

Não vem muito a propósito, mas acho mal andarem nos corredores, no intervalo, a dizer palavrões para toda a gente olhar. Por acaso, nunca ouvi o Silva a dizer palavrões. Ele é fixe, mas às vezes é um teimoso de primeira e resmungão. Põe uma pergunta e quer logo que os setores venham ao pé dele para lhe explicarem tim-tim por tim-tim.

Hoje na aula de inglês até me ri. Tínhamos que dar a definição da palavra segredo e apareciam coisas cómicas, como, por exemplo, que o segredo deve ser contado apenas a uma pessoa. Se fosse assim, de repente, toda a escola sabia. Uma pessoa contava a outra… Devia ser engraçado. Ainda começava outra grande guerra.

Nessa aula, também vimos a definição de amigo e eu disse que era uma pessoa a quem falamos de coisas boas e de coisas más. A Bia – é verdade, há muito tempo que não falo dela, mas é a minha melhor amiga – acrescentou: “como a Mariana”. Achei altamente e até fiquei com mais vontade de ser mesmo amiga. 

Pensando bem, acho que gosto de mimos. Será que mais tarde, se for professora, vou gostar de graxa? Espero que não, livra!

Hoje vou ficar por aqui, querido diário. Estou com frio e ainda tenho de ver umas coisas para amanhã. Ai ai!

Muitos abracinhos
Mariana

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O rio que mudou de lugar



Aos meus alunos do 11º 1

Atenção, esta é uma "história (simples) sobre a palavra Amor”!
Não se iludam muito, mas também não se desiludam demasiado.
Pelo menos, enquanto houver um qualquer rio que prenda o nosso olhar.

Maria acordou e foi à janela. Via sempre a mesma paisagem, ou melhor, parecia sempre a mesma paisagem, mas, vista com atenção, não era sempre a mesma paisagem.
Ela disse devagar a palavra paisagem. A professora de Português dizia muitas vezes para não repetir as palavras, mas que sinónimo poderia usar?
Hoje, pela manhã, a paisagem era tão diferente que lhe chamou a atenção. No vale, entre o aglomerado de casas e a serra de Valongo, havia um rio. Parecia mais denso do que um rio verdadeiro. Generoso, calmo e sossegado, deixava ver o verde frio e alto da serra.
A jovem olhou de novo. Naquele sítio, só costumava ver campos ou o serpenteado da autoestrada, mas o que via agora era um rio, largo, grosso, macio. Como era possível um rio passar ali? Tinha chovido, mas não o suficiente para formar semelhante massa de água. Por acaso, parecia uma massa gasosa, mas tinha a forma de rio, porque o via em silêncio e pela janela, o que não costuma enganar.
Àquela hora, Maria estava sozinha em casa, porque os pais tinham ido trabalhar e o irmão mais novo saía sempre mais cedo. Ao olhar aquele rio, que se estendia tão próximo, pensou ficar em casa e dizer depois que o despertador não tinha tocado. Não, os pais não iriam acreditar na história e haveria, de certeza, problemas. E se dissesse que ficava a estudar para o teste? É que queria mesmo continuar a olhar para aquele rio improvável. Não, se dissesse aos pais que tinha faltado para ficar a estudar, haveria chatice pela certa, porque sobretudo a mãe não admitia tal coisa. Imaginava-a a franzir o sobrolho, a ficar muito séria, a olhá-la muito fixamente. Nem seriam precisas palavras. Via-se logo que a mãe não concordava e que estava zangada. Não, tinha mesmo de ir para a escola e nem podia atrasar-se muito. Entrava às nove e dez e já passava das oito e trinta.
Oh, agora só faltava esta. O telefone fixo a tocar. E para mais estava na sala. Está bem, vou já. Estou! Sim, mãe, estou quase pronta. O despertador tocou, só estou um bocadinho atrasada. Não te aflijas que chego à hora. Vou já tomar o pequeno-almoço. Não, ainda não vi o pão fresco, mas vou já à cozinha. Ó mãe, ainda não pude aquecer o leite. Não, mãe, não fiquei na cama, estive a olhar pela janela. Ó mãe, achas assim tão estranho eu ficar a olhar pela janela? Eu sei que me levanto sempre em cima da hora e a correr. Achas, mãe, achas que eu vou faltar? Eu estava a olhar o rio. Não, mãe, não estou tolinha, mas parecia que um rio se tinha mudado para perto de nós e eu fiquei a ver. Eu sei, mãe, que não tens tempo para fantasias, mas tu é que me perguntaste por que é que eu tinha estado a olhar pela janela. Ó mãe, não, não estou a gozar, era mesmo um rio aqui no vale. Ó mãe, não, não rebentou nenhum cano, podes estar descansada, eu acho até que o rio não era de água. Estou bem, mãe, estou, só te estou a dizer o que estive a ver pela janela, mas agora tenho de ir, senão chego mesmo atrasada à escola. Eu sei, mãe, que não me justificas as faltas de atraso, isso também só aconteceu uma vez. Pronto, mãe, até logo. Beijinhos.
Maria olhou o relógio. Já eram nove menos um quarto. Tinha de ir a passo acelerado para a escola. Se a professora já estivesse a escrever o sumário, quando ela entrasse, diria logo: pois, Maria, desculpo o atraso, mas não tiro a falta.
Às nove e cinco, estava a fechar a porta de casa. Ainda entrou de novo, para ver se o fogão tinha ficado aceso. Caminhava tão depressa que nem reparava nas pessoas com quem se cruzava. Às vezes, ainda olhava para as nuvens que pareciam coroar a serra, mas hoje nem isso. E o relógio a andar tão depressa. Às vezes, as horas não passam, outras são um cavalo em liberdade, sempre a correr.
Quando estava a chegar à escola, lembrou-se do rio que tinha visto no vale, logo pela manhã. Ainda lá estaria? Entrou na sala atrás da professora. Uf! Tinha chegado a tempo.
Sabia que tinha sido o nevoeiro que tinha criado aquela ilusão, mas enquanto tirava o livro e o caderno da mochila, ia pensando: sou mesmo sortuda, hoje um rio veio visitar-me perto de casa.
De repente, viu que a professora a olhava, à espera de uma resposta para uma pergunta formulada.
-Desculpe, professora, não ouvi a pergunta. Pode repetir, por favor? Estava distraída por causa de um rio que vi no vale, perto da minha casa.
-Também reparei no fenómeno do nevoeiro quando passei lá perto. A Natureza é surpreendente. Às vezes, até um rio parece mudar de lugar. Interrogo-me se a Natureza não o faz por Amor.
Vamos lá, meninos, escrevam o sumário.

D.G. – 21 de novembro 2012

O nosso carro é um abrigo

Imagem da net
Os carros da polícia estão cada vez mais próximos. O barulho das sirenes faz-me doer os ouvidos e as luzes cegam-me os olhos. Até dou um salto, de tão assustada que estou.
— Não te mexas, Zettie — avisa a minha mãe. — Não podemos dar nas vistas.
Enfiamo-nos por entre as roupas que estão no assento traseiro do carro.
— Mãe, é um bocado assustador dormir no carro — sussurro.
A minha mãe concorda:
— Eu sei. Estão sempre a acontecer coisas e os carros da polícia andam sempre em perseguições. 
E abraça-me com força, enquanto dura o barulho das sirenes.
Quando fica tudo em silêncio, a minha mãe conduz pela Chandler Avenue e estaciona diante do pátio de um bloco de apartamentos, cujo jardim está cheio de flores: buganvílias, rosas, hibiscos. À luz dos candeeiros da rua, as cores são tão alegres como as das flores do pátio que deixámos em Port Antonio. Adoramos estacionar neste sítio.
Durante semanas, um letreiro a dizer “Aluga-se” esteve pendurado numa das janelas. Na semana passada, quando perguntámos pelo andar, o dono disse-nos que só o alugava a pessoas com um emprego fixo. E queria dois meses de renda adiantados, dinheiro que a minha mãe não tem.
Fecho os olhos e vejo-me na terra dos meus sonhos, com o meu pai e a avó Mullins. Estamos na Jamaica, a fazer um piquenique na praia. As ondas rebentam de encontro às rochas e acordo com o barulho. Afinal, não estou na Jamaica. Estou na América. E não foi o barulho das ondas que me acordou, mas alguém a bater na janela do nosso carro.
A luz de uma lanterna ofusca-nos os olhos.
— O que está a fazer aqui, minha senhora? — pergunta um polícia, num tom de voz duro.
— A minha filha e eu só estamos aqui a passar a noite, senhor.
— Aqui não é permitido estacionar à noite — informa o agente. — Tem de procurar outro lugar.
— Eu procuro, senhor, mas não estamos a fazer nada de mal — diz a minha mãe.
Depois, senta-se ao volante e saímos dali.
As lágrimas deslizam-lhe pela face, como quando o meu pai morreu.
Chego-me à frente e acaricio-lhe os caracóis.
— Ó mãe, porque não vamos para a Magnolia Avenue? Lá, os polícias nem sequer incomodam o Senhor Williams, quando ele dorme no banco do parque.
— Boa ideia, filha! Tinha-me esquecido desse lugar.
A minha mãe estaciona o carro na Magnolia Avenue e aconchegamo-‑nos. Em breve adormeço nos seus braços.
Preto de copas (cartas)Preto de copas (cartas)Preto de copas (cartas)Preto de copas (cartas)
Na manhã seguinte, bem cedo, a minha mãe acorda-me e diz:
— Vamos utilizar a casa de banho do parque antes que fique cheia de gente.
Está muito frio lá dentro e tremo enquanto visto o meu uniforme escolar. Depois, salpico a cara com a água da torneira.
— Esta água é fria como gelo, mãe.
— Tens de ser corajosa! — murmura ela.
Saímos e sentamo-nos num banco. A minha mãe faz-me quatro tranças, como eu gosto, embora puxe o meu cabelo com força para que fiquem bonitas. Começo a cantar uma canção que inventei, para me distrair dos puxões. A minha mãe canta comigo, durante algum tempo, mas, quando canto mais alto, põe um dedo nos lábios e diz:
— Canta mais baixo, Zettie. Ainda acordas o Senhor Williams.
Depois, abre a nossa pequena geleira e faz sanduíches com manteiga de amendoim e geleia. Bebemos o resto de um refresco de laranja. É doce, mas, como já tem três dias, não sabe muito bem.
— Quem me dera um chocolate quente — digo. — Como aquele que fazias com os grãos de cacau que apanhávamos perto de casa.
— Sinto-me triste por não poderes beber um — diz a minha mãe, olhando-me nos olhos.
Em seguida, pergunta-me:
— Lembras-te do sol da Jamaica? De como brilhava depois de uma chuvada?
Claro que me lembro. Sobretudo em dias frios e enevoados como o de hoje. Por que razão morreu o meu pai? Os empregos temporários da minha mãe e o curso profissional que frequenta com tanto esforço fazem com que todos os dias sejam escuros e húmidos.
— Quando arranjar um trabalho fixo, o sol vai brilhar de novo — diz a minha mãe, como se conseguisse ler os meus pensamentos.
Fico calada. Já a ouvi dizer isto muitas vezes, mas sei que as coisas agora estão mais difíceis. A caminho da escola, pergunto:
— Mãe, será que podias…
— Podia o quê, Zettie?
— Deixar-me ficar na esquina por detrás da escola?
— Porquê? — pergunta.
— Por causa de uns rapazes maus que dizem que o nosso carro é um pedaço de sucata velha. E também fazem troça da bandeira no vidro. Não podemos tirá-la, mãe? — pergunto.
A minha mãe para o carro e dá-me um abraço.
— Não lhes prestes atenção, filha. Estuda, como o teu pai fazia, e anda de cabeça erguida. Eu tiro a bandeira.
Apresso-me a sair.
— Espero por ti no recreio depois das aulas — digo à minha mãe, virando-me para trás.
Quando ela me vai buscar depois das aulas, enfio a cabeça no casaco para não ser reconhecida ao esgueirar-‑me para dentro do carro.
— Hoje, não havia empregos de escritório na agência — diz.
— Isso significa que vamos comer manteiga de amendoim e geleia à noite, outra vez? — pergunto.
— Não, porque fiz outra coisa. Adivinha o que foi.
— Nunca mais teremos um apartamento se tu não tiveres um emprego fixo.
— Distribuí panfletos numa Feira de Saúde. Não fiz muito dinheiro, mas tenho o suficiente para comprar o jantar e meter gasolina no carro.
Fico com a cara a arder e sinto um aperto no peito. Porque não pode a minha mãe ter outro tipo de trabalho? A fome faz-me esquecer a tristeza.
— Podemos partilhar cachorros quentes e queques com a Ana Mae e o Benjie?
Preto de copas (cartas)Preto de copas (cartas)Preto de copas (cartas)Preto de copas (cartas)
Quando chegamos ao parque, o Benjie corre ao meu encontro. Tem oito anos, como eu, mas é pequeno e franzino. A minha mãe faz jantar para todos. Os olhos do Benjie brilham e pergunto-me se terá comido alguma coisa hoje. Depois da refeição, pergunta-me:
— Queres vir comigo procurar latas e garrafas vazias para vender?
— Não sei… — hesito.
A minha mãe é muito atenta e não gosta que eu ande a remexer em coisas. O Benjie está a poupar o dinheiro das latas e das garrafas que apanha para ajudar a mãe. Já tem 1 dólar e 50 cêntimos.
— Fiquem por perto e sejam cuidadosos — pede a minha mãe.
O Benjie corre por entre as árvores à procura de garrafas e latas. Mas, quando começa a procurar no lixo, digo-lhe que é perigoso e ele para. O montão de latas que arranjou deixa-nos satisfeitos. É capaz de lhe render outro dólar.
— És a minha melhor amiga — diz, enquanto se despede com um aceno.
— Também tu és o meu melhor amigo — replico.
Nessa noite, a minha mãe e eu aconchegamo-nos no banco traseiro do carro e ela lê-me um livro que requisitamos na biblioteca.
— Dormir no carro é melhor do que no albergue da igreja — digo. — Detestava aquele lugar barulhento e cheio de gente! Havia um bebé que chorava constantemente, lembras-te?
— Por isso, prefiro usar o nosso carro como abrigo — responde a minha mãe.
Aninho-me contra ela, enquanto estuda para um dos seus exames.
Preto de copas (cartas)Preto de copas (cartas)Preto de copas (cartas)Preto de copas (cartas)
No dia seguinte, depois das aulas, leio o meu livro, enquanto espero pela minha mãe no recreio. Mal viro a página, o Alex, que é um rufia, põe-se atrás de mim e puxa pelas minhas tranças.
— Olha a Zettie da chocolateira! — troça. — Vejam só a Zettie da chocolateira! — diz para os amigos.
Todos se riem e gritam “Zettie da chocolateira!”
— Palermas! — respondo.
Ficam furiosos e o Alex volta a puxar-me as tranças com força.
Sinto-me assustada. Não vejo nenhum professor. O que hei de fazer? Acabo por desatar a correr o mais depressa que posso. Saio do recreio, desço a rua e paro numa esquina onde já não me podem ver. Estou sem fôlego quando vejo a minha mãe junto do portão da escola. Sai do carro à minha procura.
— Mãe, mãe! — chamo e aceno.
Contudo, ela não me vê. Volta a entrar no carro e dá meia-volta. Grito mais alto e corro, mas tropeço e vejo-a afastar-se. O meu joelho ficou esfolado e a sangrar. Coxeio até à esquina. Depois, sento-me e choro. As nossas vidas mudaram tanto depois da morte do meu pai…
Espero mais um pouco, sem tirar os olhos do recreio, mas a minha mãe não regressa. Para onde terá ido? Saber que anda à minha procura ainda me faz chorar mais. Abro os olhos quando ouço o ruído de uma moto a parar junto de mim. É um polícia! Será que me meti em sarilhos?
O polícia pergunta:
— Estás perdida?
— Não, senhor. A minha mãe atrasou-se a vir-me buscar.
— Não posso deixar-te sozinha — diz, num tom de voz amável.
Fica junto de mim, mas não demasiado próximo. Não sabia que um polícia podia ser tão gentil. Pensava que eram todos maus.
A espera parece-me eterna e dou-me conta de que, num mundo cheio de pessoas, só tenho a minha mãe. Onde se terá ela metido? O que será de mim se algo lhe acontecer? Será que o polícia vai pôr-me numa família de acolhimento? Viver num carro não é a melhor situação, mas, pelo menos, tenho a minha mãe para me amar e cuidar de mim.
Ouço um carro a buzinar. É a minha mãe. Pergunta-me, a chorar:
— Porque saíste do recreio, Zettie?
Entre soluços, conto-lhe o que aconteceu.
— Tive medo, mãe. Por isso fugi para aqui.
— Pensei que tinhas ido para o parque. O Benjie e a Ana Mae ajudaram-me a procurar-te. Ficámos tão preocupados. Graças a Deus que estás bem.
A minha mãe acena para o polícia, para lhe dizer que está tudo bem, e eu forço um sorriso, por entre as minhas lágrimas. Vejo que deve ter chorado muito por minha causa, porque ainda tem os olhos vermelhos.
Abraça-me e diz:
— Esta noite, precisamos de relaxar as duas. Trabalhei o dia todo na Feira de Saúde e pagaram-me mais horas. Vamos festejar!
Comemos esparguete e gelado na cafetaria. Depois do jantar, a minha mãe pisca o olho.
— Hoje vamos dormir numa cama a sério!
— Num motel? Naquele superconfortável onde dormimos na última vez? — exclamo.
Mal entramos no quarto, precipito-me para a casa de banho e abro o chuveiro. A água faz-me cócegas nas costas.
— Ó mãe, a água quente sabe tão bem! Quem me dera tomar um duche todos os dias!
Quando entro na cama, estico-me, sacudo os dedos dos pés e puxo o lençol limpo até ao nariz. A minha mãe abraça-me, chama-me Botão-de-‑Ouro e sinto todo o seu amor inundar-me.
— Gostavas de dormir numa cama este Verão em vez de no carro? — pergunta-me. — É que uma senhora ofereceu-me um emprego na Feira de Saúde. Vou ajudar a criar um programa para pessoas como nós, com dificuldade em arranjar casa. Vamos poder alugar um quarto — diz a minha mãe.
— Ó mãe, será que vais conseguir poupar para aquele apartamento com jardim enquanto lá trabalhas? E continuar a estudar?
— Espero que sim! — diz ela, abraçando-me com mais força.
Aninho-me nos seus braços e digo:
— Desculpa se, às vezes, me porto mal.
Depois, aninho-me ainda mais e adormeço, sabendo que, com ou sem apartamento, tenho a minha mãe e que ela tem-me a mim.
Monica Gunning
A shelter in our car
San Francisco, Children’s Book Press, 2004
(Tradução e adaptação)

domingo, 18 de novembro de 2012

 Imagem que ilustra o texto: "Uma questão de bocados..."

Blogue: CARRUAGEM 23
Mensagem: Uma questão de bocados...
Hiperligação: http://carruagem23.blogspot.com/2012/11/uma-questao-de-bocados.html



Vale a pena consultar o blogue Carruagem 23 - a propósito da questão que a legenda  pode levantar.

Encontraremos outras respostas para outras perguntas sobre a Língua Portuguesa. E não só, porque o conhecimento da língua remete também para o conhecimento do mundo.

Obrigada, Vítor.

Desejo - só por ser domingo?

Tanner M. Lawley 


Prourei um texto que falasse de domingo
Drummond de Andrade veio-me logo à cabeça.
Escolhi este: quente, carinhoso, sensual...
E não fala só de domingo!

Apesar de bastante simplicidade
dos meus textos, gosto imenso de os partilhar aqui, 
mas se escrevesse algum nesta manhã, 
não poderia corrigir testes.
Como quero chegar ao fim do dia e sentir-me (mais) tranquila, 
vou voltar-me para a correção de trabalhos, 
o que, pensando bem,  não é nada mau.
E pode ser que tenha a alegria de ver (algumas) boas notas!


DESEJOS

Desejo a vocês...

Fruto do mato
Cheiro de jardim
Namoro no portão
Domingo sem chuva
Segunda sem mau humor
Sábado com seu amor
Filme do Carlitos
Chope com amigos
Crônica de Rubem Braga
Viver sem inimigos
Filme antigo na TV
Ter uma pessoa especial
E que ela goste de você
Música de Tom com letra de Chico
Frango caipira em pensão do interior
Ouvir uma palavra amável
Ter uma surpresa agradável
Ver a Banda passar
Noite de lua cheia
Rever uma velha amizade
Ter fé em Deus
Não ter que ouvir a palavra não
Nem nunca, nem jamais e adeus.
Rir como criança
Ouvir canto de passarinho.
Sarar de resfriado
Escrever um poema de Amor
Que nunca será rasgado
Formar um par ideal
Tomar banho de cachoeira
Pegar um bronzeado legal
Aprender um nova canção
Esperar alguém na estação
Queijo com goiabada
Pôr-do-Sol na roça
Uma festa
Um violão
Uma seresta
Recordar um amor antigo
Ter um ombro sempre amigo
Bater palmas de alegria
Uma tarde amena
Calçar um velho chinelo
Sentar numa velha poltrona
Tocar violão para alguém
Ouvir a chuva no telhado
Vinho branco
Bolero de Ravel
E muito carinho meu.

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Diane Fumat

Quando voltares, põe na tua voz
aquela flor azul que te ofereci.
Talvez, assim, eu julgue reencontrar-te
e os olhos se encham, outra vez.
*
Ainda tens no gesto aquele susto
que se enrolava todo nos meus dedos
e punha à nossa volta
um colar de silêncio ardendo.
*
Tudo mudou, bem sei. Naquela tília
o outono já começou;
e nas tuas palavras
algumas folhas devem ter caído.
*
Mas, se voltares, põe a flor azul,
põe o passado no gesto e na voz.
Talvez assim eu julgue reencontrar-te
e os olhos se encham. É tão fácil!
António Cabral


Este foi um dos poemas que IA enviou a um grupo de amigos. 
A imagem também.
Chegaram no "postal de fim de semana".
Belíssimo poema este. Para ler devagar do princípio ao fim.
Assim, "É tão fácil"!