quinta-feira, 12 de julho de 2012

Com 30 será um 31!

Pelo que vai sendo dito, as turmas, no próximo ano, vão ser ainda mais numerosas. Fala-se de trinta alunos por turma. Ora, uma aula não é como abrir uma torneira para que cada um, de igual forma, apare a água necessária. 

Pressupõe-se que o professor conheça minimamente os alunos para que todos possam progredir. E como se trata de pessoas, há muitas diferenças.

Muitas salas de aula de escolas intervencionadas ficaram mais pequenas. As turmas aumentam e o espaço de muitas salas reduz-se. 

Pretende-se instaurar a disciplina na sala de aula e acentuar a autoridade do professor. Como assim? 

Se os alunos por turma aumentarem, vai-se poupar muito dinheiro, porque o número de professores em cada escola vai ser reduzido. 

É esse o único objetivo? Então, por que se diz tão placidamente que se pretende um ensino e aprendizagem com mais rigor?

Querem 30 e criam um 31!


É um pouco longa a história, mas vale a pena!

 Imagem da net
No país de Iqbal

Para todas aquelas crianças que trabalham sem ter idade,
em qualquer parte do mundo.

Kevin recebeu no seu aniversário uma bola fantástica. Mas sempre que a atira para a fazer saltar, a bola abate-se sobre a relva sem a menor vontade de se divertir. Não há dúvida, aquela bola tem alguma coisa que não bate certo! Kevin fica tão zangado que a fecha dentro do cesto da roupa suja. É então que um rapazinho tenta sair pelo minúsculo orifício da válvula. Chama-se Iqbal e vem de um país longínquo onde obrigam as crianças a trabalhar. Explica a Kevin que pôde fugir graças a uma palavra mágica: Shabatsé. Mas Iqbal já tinha pronunciado a referida palavra quando se apercebeu de que não deveria tê-lo feito. Tarde demais! Kevin e Iqbal são ambos sugados para dentro da bola…


1
— Feliz aniversário, querido!
Kevin sopra as velas. Apaga-as de uma só vez. À volta dele, pais e amigos gritam e aplaudem. Kevin pode agora abrir os presentes. Gosta particularmente deste momento, em que rasga o papel dos embrulhos. Estragam-no com mimos. Como acontece todos os anos. Começa pelos sobrescritos que contêm dinheiro, mas o que mais gosta de abrir são, é claro, os presentes de verdade. Dos três embrulhos, Kevin já percebeu qual é o melhor, aquele por que está à espera. Guarda-o para o fim.
— Uau, é tão bonita! — exclama.
Exactamente o que ele queria: uma bola de couro, cosida. Uma bola de jogador
profissional, azul e branca, ainda mais lisa e brilhante do que nos seus sonhos. Tira-a da caixa, segurando-a com a ponta dos dedos, como se fosse de açúcar. Kevin queria uma bola, porque Laurent, o seu vizinho, tem uma e nunca quer emprestá-la por muito tempo. No entanto, é muito menos bonita.
Quando jogam na praceta em frente das vivendas, sempre que Laurent começa a perder, encontra um pretexto para se zangar. Pega na bola e vai-se embora. E, claro, o jogo acaba. É irritante. De futuro, ninguém voltará a interromper a partida enquanto Kevin quiser continuar a jogar; ninguém poderá suspendê-la contra a sua vontade. Nunca se sentira tão feliz.
— Dá cá! — pede o pai, estendendo as mãos.
É a sua vez de agarrar na bola. Acaricia-a, fá-la saltar, que vontade de lhe dar uns bons pontapés!
— Dá-ma, por favor — atalha rapidamente Kevin, que sabe o pai que tem. Quando este segura uma bola nas mãos, torna-se uma autêntica criança. É capaz de a estragar sem querer.
— Se querem jogar, vão para o jardim!
A mãe conhece-os bem, e já começa a recear pelos móveis e adornos. Kevin não espera que lhe digam duas vezes e desata a fugir com o seu presente. Nem sequer espera até chegar ao relvado. Ainda vai a meio do terraço e já quer experimentar a bola. Lança-a ao chão e estende as mãos para a apanhar…Mas não apanha nada! As mãos estendidas ficam vazias. A bola não saltou. Caiu como goma sobre a tijoleira. Não voltou a mover-se, ficou como que colada e mole. Dir-se-ia um marshmallow.
Espantado, Kevin baixa-se para pegar no seu tesouro. Espantado, mas não inquieto. Esta bola não pode ser de má qualidade. Foi ele, Kevin, que a atirou mal… Ou então é a tijoleira do terraço que está pegajosa, provavelmente cheia de compota. Seja como for, tratou-se de um acidente que não voltará a acontecer. Kevin limpa a bola e dá-lhe lustro. Observa-lhe discretamente todas as costuras mas, nada, está tudo perfeito. A bola precisa é de erva. No relvado vai renascer.
Kevin afasta-se da casa e espera o momento de chegar a meio do relvado para atirar ao ar o seu brinquedo. Lança a bola para o céu, o mais alto que lhe é possível. Orgulhosamente, vê-a descer, lisa, brilhante, azul e branca, bela. Vê-a descer… e abater-se sobre aquele tapete de relva tão suave, sem o menor desejo de saltar e de se divertir. Não há dúvida, esta bola tem algum defeito, há algo que não bate certo.


2
— Então! Não chores! É porque a bola não está suficientemente cheia. Acontece muitas vezes quando são novas.
Kevin tinha ido contar ao pai a sua desdita. Apesar dos esforços para se conter, os olhos estão cheios de lágrimas. O pai enterra os fortes polegares no couro, que cede facilmente.
— O que é que eu dizia! Anda, vamos arranjar isto!
Kevin assoa-se e vai com o pai até à garagem. Está cabisbaixo, ainda não sorri, mas já recuperou a esperança. O pai de Kevin é habilidoso. Na garagem, penduradas na parede ou guardadas numa gaveta, há ferramentas que permitem consertar tudo o que não funciona bem à face da terra.
— Não mexas! Sei que há uma bomba de ar em qualquer lado… Cá está, nesta caixa…
Introduz um tubo fino como uma agulha na bomba de ar e, com firmeza, segura a bola recalcitrante entre os joelhos. E depressa lhe devolve a boa cara que ela nunca deveria ter perdido.
— Anda, apanha-a, se fores capaz!
A porta da garagem abre para o jardim. O pai lança a bola com tanta força que esta devia saltar até à parede do fundo. Kevin corre atrás dela, a rir-se… Mas não por muito tempo! Cheia ou não, a bonita bola deixa-se ficar na relva, após dois ou três saltos ofegantes. Não chegará nunca à parede do fundo.
Mais uma vez a esperança morre nos olhos de Kevin.
— Tens razão — constata o pai — algum defeito há de ter, na verdade. Talvez um problema no couro, não compreendo… Guardei o talão de compra. Amanhã vamos à loja para a trocarmos, não te preocupes!
Kevin encolhe os ombros:
— Amanhã, amanhã!
Não está preocupado, mas a festa, o seu aniversário, é hoje, não amanhã! Com um pontapé furioso, atira aquele trapo mole para um canto, já que não serve para nada. E Kevin decide esquecê-la. Afinal, tem outros brinquedos, brinquedos de verdade que gostam de se divertir, brinquedos de confiança.
Chegada a noite, ainda se sente tão zangado que continua a não querer ocupar-se daquele brinquedo tão decepcionante.
— Pode dormir lá fora, é o que merece.
Mas o pai não está de acordo.
— Não, não, Kevin. Vai buscá-la e guarda-a. Se a perderes ou estragares, já não podes trocá-la.
É verdade. Kevin reconhece-o. O pai tem razão. Vai buscar a bola. Empurra-a com o pé até ao terraço, como se fosse uma velha lata de conserva, depois pega nela sem qualquer cuidado. À entrada do quarto está o cesto da roupa suja. Atira-a lá para dentro.
— Dorme bem! — ironiza.
De agora em diante só quer esquecê-la, mas sente-se tão irritado que não é capaz de o fazer. Antes de se deitar, não consegue deixar de se virar uma vez mais para o cesto, onde a deixou:
— Não se admite o que fizeste, não se admite! No teu lugar, escondia-me. Não tens o direito de ser tão bonita, de brilhar, para depois não servires para nada quando contamos contigo. Não tens o direito de te esvaziares dessa maneira… Uma idiota, é o que tu és! Detesto-te!... Ainda bem que não te mostrei aos meus colegas. Que vergonha!... Mas não faz mal, não perdes pela demora. Amanhã vais voltar para de onde vieste, e nunca mais quero ouvir falar de ti!
Mais calmo depois destas duras palavras, Kevin deita-se e apaga a luz. Está tão cansado que adormeceria bem depressa se, por detrás dele, um estranho barulho se não fizesse ouvir.


3


Um estranho barulho, na verdade, como o de alguém a fungar, como o soluço abafado de uma criança. No meio da escuridão, Kevin ergue-se e aguça o ouvido.
— És mau! — escuta distintamente.
Desorientado, volta a acender a luz da mesa-de-cabeceira:
— Quem foi que falou, quem? — pergunta Kevin, cada vez mais inquieto.
— Aqui! — decide-se a dizer a voz misteriosa. — Aqui! Na tua bola!
De facto, a voz parece sair do cesto da roupa suja. Kevin senta-se na beira da cama, virado para o cesto, sem se atrever a aproximar-se. É impossível, não consegue acreditar!
— Uma bola não fala! Uma bola não tem boca!
— Uma bola também não tem ouvidos e, no entanto, dirigiste-me a palavra, deste-me uma lição de moral durante um quarto de hora! Verdade ou mentira? Julgo até que me chamaste “idiota”…
— Escapou-me…
— Bem vês que não é assim tão simples.
Com os olhos encarquilhados e a boca aberta, quase sem respirar, Kevin fixa o recipiente.
— Vá, não fiques assim. Vou explicar-te. Mas, por favor, tira-me deste cesto de roupa suja.
Kevin obedece como um autómato. Aproxima-se e levanta a tampa. É de facto a bola que está lá dentro, a própria bola. Pega nela cautelosamente, com as pontas dos dedos mas, desta vez, é por ter medo dela. Com os braços esticados, leva-a até à cama e pousa-a em cima do colchão.
— Pára lá com essas fitas! Anda ajudar-me! — impacienta-se a voz.
Kevin dá um enorme grito, porque a voz já não vem de dentro da bola. Um rapazinho da sua idade esforça-se por sair pelo minúsculo orifício da válvula. Já libertou a cabeça e os ombros. Com as duas mãos apoiadas no couro, tenta soltar o resto do corpo, e é a voz dele que se ouve.
Kevin esconde o rosto. Já nem se atreve a olhar.
— Não! É demais! Vim parar à casa do rei dos medricas, ou quê? Anda ajudar--me, já te disse! Acho que fiquei preso.
Kevin ainda tem medo, mas sente-se envergonhado. Não pode continuar a tremer. Faz um esforço para se aproximar. É verdade que o rapaz não é nenhum monstro. Com os cabelos muito negros e muito lisos colados à testa, é parecido com qualquer outra criança. Kevin agarra a bola, segura nela com firmeza para a impedir de deslizar para os lados, enquanto o seu estranho visitante faz cada vez mais força com os braços.
— Assim, isso! Aguenta!
Faz tanta força que se liberta num rompante, de uma forma tão brusca como a rolha de uma garrafa de champanhe. Depois de um enorme trambolhão, acaba sentado, de costas contra a parede, a um canto do quarto. Ri-se. Os dentes reluzem--lhe no rosto tisnado. Kevin ri também. O medo desaparece. O coração continua a bater-lhe acelerado, mas por causa do esforço e da emoção.
— É um caso sério sair de lá de dentro. Ainda bem que me ajudaste, se não, ainda lá estava!
Kevin encolheu os ombros. Concorda, sente-se até orgulhoso, mas nem sabe o que dizer. Não se pode falar tranquilamente, como se nada fosse, com alguém saído
não se sabe de onde. Antes de mais, Kevin precisa de algumas explicações. O rapaz compreende.
— Queres saber como cheguei até aqui? É normal! Vou explicar-te, conforme prometi.
Levanta-se e alisa a roupa amarrotada: uma longa túnica, uma espécie de camisa de noite. Satisfeito, senta-se confortavelmente com as pernas cruzadas, em cima da alcatifa. Kevin instala-se a seu lado, com as costas apoiadas na beira da cama.
Para começar, o rapaz apresenta-se:
— Chamo-me Iqbal… Tu, chamas-te Kevin. Ouvi o teu pai chamar-te assim.
— Ouvias tudo dentro da bola?
— Claro!
— E… (Kevin lembra-se dos seus pontapés furiosos) também sentias tudo? Devo ter-te magoado! Desculpa.
— Não te preocupes, já vi outras coisas bem piores no local onde trabalho! Aliás, foi por isso que fugi.
— Trabalhar… Fugir… Continuo sem perceber! Antes de mais, diz-me de onde vens.
— Venho de muito longe. Venho do país onde se fazem as bolas.
 

4

Kevin, que se instalara sensatamente junto do seu convidado, levanta-se de um salto, furioso:
— Estás a exagerar! Do país onde se fazem as bolas? Tretas! Julgas, se calhar, que na minha idade ainda acredito em contos como o da Branca de Neve e os sete anões? Que ainda acredito naqueles países extraordinários onde se diz que seres minúsculos fabricam os nossos objectos quotidianos? Obrigado, mas já passei a idade dessas tolices! Ando na escola e sei que os objectos são feitos em fábricas por máquinas e até por robôs… Não tentes baralhar-me!
— Mas eu não estou a tentar baralhar-te. Juro que estou a dizer a verdade: as bolas como esta são quase todas fabricadas no meu país, um país de verdade. Os bocados são unidos com um fio e uma agulha enorme por crianças da minha idade. No que me diz respeito, não os contei, mas devo ter cosido seguramente uns milhares.
— Ah, bem… Desculpa, é que não gosto que me tomem por um imbecil.
Kevin acalma-se. Senta-se e repete:
— Desculpa! Explica-me agora por que razão fugiste e, principalmente, como.
— Porquê, é fácil de explicar. Mas como foi, já te previno, não é nada fácil. Nem eu consegui ainda perceber!
— Se não percebeste, então quero ouvir o que tens a dizer-me. Conta.
— Foi certamente por influência da minha avó. Ela é extraordinária! É velha, velha, e conhece coisas que tu nem imaginas… Olha, estamos aqui os dois a conversar, como se falássemos a mesma língua!... Tenho a certeza de que se deve a ela.
— Estranho, de facto… Mas fala-me da tua avó!
— Ela ficou cega mas, com as mãos, continua a fazer milagres. Cura as queimaduras, afasta o mal. As pessoas vêm vê-la de muito longe, pagam para falar com ela… Gosto de me sentar à beira da minha avó, embora ela às vezes me assuste. Costumava dizer:
— Sinto o infortúnio pairar sobre ti! Tem cuidado.
Um dia, acrescentou:
— Ouve, se alguém quiser fazer-te mal, pronuncia esta palavra, só esta palavra, e serás salvo.
Advertiu-me com um ar tão trágico que a palavra ficou logo gravada na minha memória.
— Serviste-te dela porque queriam matar-te? Foi isso, não foi? — diz Kevin de imediato, impressionado com a história.
— De certo modo… O dono da oficina onde cosemos as bolas batia-me cada vez mais.
— Porque é que te batia?
— Apercebi-me de que ele era um ladrão… Tinha emprestado dinheiro ao meu pai, e o meu trabalho seria para o ajudar a reembolsá-lo. Trabalhava até rebentar e o meu pai também, mas a dívida não diminuía. Havia um ardil por detrás, ele era um ladrão.
— O patife!
— Dizes bem. Da primeira vez que quis protestar, começou a dar-me murros… Uma noite, vinguei-me, inundei-lhe o stock, os caixotes prontos para partir para todos os países do mundo.
— Bem feito!
— Talvez, mas ele ficou louco. Agarrou num pau enorme e atirou-se a mim. Senti
muito medo e escondi a cabeça entre os braços. Pensei logo na minha avó, porque ela sempre me defendeu. Sem mesmo reflectir, a palavra que me tinha ensinado veio-me aos lábios. Gritei-a…
— E então?
— E então, vi-me em tua casa, dentro desta bola, e não era nada agradável: davas-me grandes pontapés na cabeça, porque eu não saltava — concluiu Iqbal a rir.
— Pára com isso! Tiveste muita sorte, ele podia ter-te matado!... Que palavra extraordinária é essa?
— Não é extraordinária, até nem quer dizer nada, a minha avó inventou-a com toda a certeza: Shabatsé.
Iqbal já tinha pronunciado a palavra quando se apercebeu que não o devia ter feito. E Kevin repetiu:
— Shabatsé, é bonito, talvez que…
Não chega a terminar a frase. Torna-se de repente muito leve, começa a flutuar, a baloiçar. E grita:
— Iqbal!
Demasiado tarde.
E logo a seguir ao seu amigo, Kevin também é aspirado para o interior da bola.


5


— Onde estamos? O que se passou?
Kevin sente medo, tem vontade de chorar.
— Regressámos à minha oficina — responde Iqbal. — Que horror!
Estão sentados no chão de cimento de uma divisão sombria, húmida e suja. À volta deles amontoam-se peles. É o couro que serve para fabricar as bolas. Cheira mal.
— Shabatsé! Shabatsé! Shabatsé! — grita Kevin, desesperado.
— Não te canses! — advertiu Iqbal. — Já tentei, mas parece que a palavra perdeu todo o seu poder.
Kevin lança-se contra a porta… Está fechada à chave pelo lado de fora.
— O que é que nos vai acontecer? Não pedi para vir até cá! — gritou Kevin.
— Ninguém pediu para vir!
Não foi Iqbal quem respondeu. A pessoa que respondeu foi um rapaz ainda mais novo. Está de pé, ao lado de Kevin. Tem olhos grandes, muito tristes, mas sorri. Não é o único a ter-se levantado e aproximado. Três, cinco, oito crianças mais, rodeiam
Iqbal, o recém-chegado, e o seu misterioso companheiro.
— De onde saíram? — inquieta-se Kevin.
— Trabalham comigo.
— E vivem aqui? Dormem aqui? Como é que fazem? Há ratos, não?
— Habituamo-nos. Os ratos não fazem mal.
— É nojento. O vosso patrão merece ser preso.
Ninguém se dá ao trabalho de concordar.
— E agora, o que vamos fazer?
Kevin mudou de tom. Começou a perceber. Já não se inquieta apenas por si próprio, mas por todas as crianças que o acaso apanhou numa armadilha, naquele buraco pestilento. Iqbal queria responder, mas não teve tempo: a chave gira na fechadura enferrujada da única porta. Em pânico, as crianças desaparecem. Voltam a deitar-se e fingem que estão a dormir. O próprio Iqbal foge também, mas regressa; não tem o direito de abandonar Kevin.
O homem que entra é enorme, um brutamontes. Os olhos são tão frios como balas de espingarda:
— Ah! Estás aqui! Sempre voltaste! Onde te meteste? Mas não perdes pela demora!
Está prestes a lançar-se sobre Iqbal, quando de repente se imobiliza:
— E este, quem é?
Descobrira Kevin e compreendera que pertencia a um outro mundo.
— É meu amigo — murmura Iqbal.
— Teu amigo… Teu amigo…
O homem hesita. Hesita tanto mais que Kevin já não é o mesmo. Não só tinha deixado de tremer como é ele agora quem ataca:
— Devia ter vergonha! O meu professor falou-nos de pessoas como você, mas eu não acreditava! Vou contar-lhe tudo e havemos de escrever ao ministro, ao presidente da República, ao vosso chefe de Estado! Vai pagar caro!
O homem de olhos cruéis hesitou apenas um instante. Desata a rir.
— Estrangeiro imbecil! Não vais contar a tua história a ninguém. Não voltarás a sair daqui. Vou reduzir-te a picado e hás de ser comido pelos ratos!
Com uma só mão, agarra Kevin pelos colarinhos, levanta-o como se fosse uma palha e encosta-o à parede. Levanta a outra mão, fecha o punho, ganha o impulso necessário... Vai cumprir a ameaça, mas pára no último instante. Volta-se, sem largar
Kevin: o seu instinto de animal selvagem advertiu-o de que havia perigo nas suas costas.
Está cercado por um bando de crianças amotinadas, encurralado contra a parede.
Como seria de esperar, Iqbal e os companheiros encontram-se na primeira linha, mas os restantes vieram em socorro deles. São já trinta, quarenta, em filas cerradas, e cada vez chega mais gente. Empunham o seu instrumento de trabalho, uma temível agulha, tão afiada como um punhal. Mas mais inquietante ainda é o brilho dos seus olhos.
O homem nunca levará a melhor. Sabe-o bem, apesar da sua tacanhez. Pode varrer a primeira fila e, depois, a segunda. Como soldados prontos para o sacrifício, outros tomarão a vez. Mais cedo ou mais tarde será derrotado.
Para poder ver-se livre deles, prefere render-se.
Esquece Kevin, e levanta os braços.


6


As crianças não dão nenhuma hipótese ao seu carrasco. Com a resistente corda que serve para coser as bolas, prendem-no de imediato e abandonam-no. Agora é cada um por si: todos se dispersam e fogem.
— Vamos ter com a minha avó. Só ela pode ajudar-te a regressar a casa — garante Iqbal a Kevin.
Para deixarem aquela cidade gigantesca, têm de caminhar durante horas antes de chegarem aos primeiros campos, sulcados por uma rede de irrigação. Algumas frágeis barracas de madeira aninham-se no cruzamento de dois caminhos perdidos.
— É ali — declara Iqbal.
Indica-lhe uma das casas. Entram na divisão única, sem ninguém, já que naquela altura a família está a trabalhar no campo. A avó de Iqbal está sentada bem longe da entrada, no meio de um amontoado de tapetes.
— Estava à vossa espera! — afirma. — Aproximem-se, para eu vos ver melhor.
Para poder ver melhor, tal como diz, acaricia o rosto das crianças com as suas velhas mãos cheias de suavidade.
— Meu Deus, estão exaustos! Dá-lhe de beber! Recebe o teu amigo como deve ser.
Sobre uma braseira acesa algures, a água ferve. Iqbal prepara o chá. Serve-o a Kevin com toda a cerimónia.
— Sabes, avó, o homem quis matar Kevin. É preciso castigá-lo. Vais…
— Chiu!
A avó põe um dedo nos lábios. Pede a Iqbal que se cale, antes de continuar:
— Kevin, meu filho… Chamas-te Kevin, não é verdade? Não estou enganada? Descansa primeiro, restabelece-te de tantas emoções. Em seguida, quando estiveres preparado, pronuncia esta palavra: Namasté e voltarás para o teu quarto.
Kevin não se apressa. Acaba o chá, bate na mão de Iqbal, prometendo que tentará vê-lo de novo, embora não saiba como, pronuncia a fórmula e desaparece.


7
— Kevin! Kevin!
Kevin senta-se na cama, acordado em sobressalto pelo pai. Dormira toda a manhã.
— Levanta-te. A bola espera-te lá fora. Já não tem nada, salta como um cabrito.
— Que bola?...
Com os cabelos despenteados e os olhos pesados de sono, Kevin tem o ar de quem veio de outro planeta.
— Sabes? A tua bola supostamente estragada… Tive tempo de ir à loja. Está impecável. Devemos ter sonhado… Mas o vendedor tranquilizou-me. Tem havido ultimamente muitos problemas, muitas coisas estranhas a acontecer com estes produtos fabricados não se sabe onde… Até me falou de um punching-ball que acabou de receber. Sabes, aqueles grandes sacos de couro com que os boxeurs se treinam. Sempre que alguém lhes dá um soco, tem-se a impressão de que o saco chora e geme! Como se alguém estivesse fechado lá dentro! É estranho, não é?
                                                                             Jacques Vénuleth
                                                                                                                     Au pays d’Iqbal
                                                                                                            Paris, Ed. Magnard, 2001
                                                                                                               (Tradução e adaptação
)

 es@contadoresdehistorias.com

quarta-feira, 11 de julho de 2012

O diário de Mariana


11 de julho 2012
Querido diário,

Hoje foi o dia das matrículas para a minha turma. Apesar de as aulas terem acabado há pouco tempo, parecia que a gente já não se encontrava há séculos. Por acaso foi fixe ir à escola e pra mais não era para fazer nenhum teste nem para levar a mochila carregada.

Quando cheguei, a Bia já estava à minha espera com o impresso na mão, o boletim de vacinas, a fotocópia do cartão de cidadão… Tudo numa pastinha porque ela gosta de entregar as folhas direitinhas.

No salão, as mesas estavam dispostas como na feira pedagógica mas sem cartazes. Havia umas mesas juntas e os alunos que se estavam a inscrever sentavam-se em frente à dêtê e a outra profe. A minha dêtê estava risonha e lia o papel todo com atenção para ver se faltava alguma coisa. De vez em quando, parava um bocadinho e falava de coisas fixes. E disse também: aproveita as férias, Mariana, para te divertires, para descansares, mas lê também o livro que vamos estudar no próximo ano letivo. Até isso achei altamente.

Já tenho reparado que os setores e as setoras são quase sempre muito mais simpáticos quando estão fora da sala de aula. Uma vez, numa visita de estudo, virei-me para uma setora e disse-lhe isso. Ela respondeu-me logo assim: Olha, gostava de vos ver com quase trinta alunos à frente e menos de metade a querer aprender.

Por acaso, eu acho que deve ser horrível, porque este ano enquanto os contratos de leitura eram apresentados, alguns alunos estavam a dar biqueiros nos que estavam à frente e não achei nada bem. No fim da aula, até disse ao Zé que ele precisava que lhe fizessem a mesma coisa para ver se gostava.

O meu pai dizia muitas vezes que serviço é serviço e conhaque é conhaque. Só agora percebo melhor o que ele dizia.

Mas, como já te disse, acho que fora da sala de aula, os profes parecem pessoas, sei lá, mais completas e mais pessoas. Riem, ficam tristes, abraçam, falam dos problemas e das alegrias… Nas aulas, há sempre mais pressa, mais pressão, mais nervoso miudinho...

Depois das matrículas, fui lanchar com a minha mãe. Também estava  a tia Cilinha e a prima Za. Elas começaram a falar de muitas coisas e,  enquanto falavam, peguei no telemóvel e pus-me a ver e a apagar SMS. De repente, a minha mãe disse-me assim, raspando-me com os dedos no braço: Mariana, queres parar com essa porcaria?

Que remédio tive eu senão guardar o telemóvel. É que quando a minha mãe fala assim não é flor que se cheire. E guardei-o mesmo no momento em que chegava uma mensagem do Gi! Só a mim! Mas quem é que me manda continuar a ser menina da mamã?! Tenho de me libertar quanto antes.

Muitos abracinhos, querido diário
Mariana

terça-feira, 10 de julho de 2012

O(s) perfume(s) das rosas


segunda-feira, 9 de julho de 2012

Poema de Aniversário

                                                                            Maria Keil
Procurei no dicionário,
Com paciência e cuidado,
O real significado
Da palavra aniversário.
Aquele livro pesado,
Mestre dos visionários,
"Pai dos burros" batizado,
Pareceu-me sectário,
Ao responder meu chamado.
Deveras decepcionado,
Joguei o meu dicionário
Na estante, empoeirado,
Para pregar, solitário,
O meu significado
Da palavra aniversário.
Diz assim, o verbete lendário,
Ontem, por mim criado:
"Aniversário: Espécie de relicário,
Muitíssimo bem guardado
Nas folhas do meu diário,
Dos versos que eu escrevi,
Com todo amor, e não li,
Durante o ano passado."

Carlos Drummond de Andrade

"Viva la vida"

 Frida Khalo (Viva la vida)
O blogue Olamariana.blogspot.com, faz, por esta altura, um ano.
Até agora, e desde o seu nascimento, foi aberto umas catorze mil vezes. Umas, porque terá sido essa a escolha; outras, se calhar, por mero acaso.
É um meio extraordinário de podermos comunicar as pequenas/grandes coisas do quotidiano. De repente, e a qualquer hora, chegamos a diferentes sítios: Portugal (onde vivo e onde está uma parte de mim), Estados Unidos (onde tenho a outra parte), Reino Unido, Bélgica, Brasil, Rússia, Alemanha, Índia, França, Suíça, Espanha, Letónia, Ucrânia...

Seria melhor vermo-nos cara a cara? Seria difícil fazê-lo com regularidade no mundo de hoje. É bom pensar que chegamos aos outros e que os outros nos dizem muito, embora nada substitua a família e os amigos mais próximos. Sem eles, manter um blogue seria apenas um sinal de busca de remédio para muitas solidões; assim, é um modo de interagir, pondo em comum preocupações, alegrias e pequenas coisas do dia a dia que, apesar de comuns, interessam porque são humanas.
Procuro colocar nestas páginas o lado menos lunar ou sombrio dos dias, ainda que este exista em muitas palavras ou imagens.

Os momentos que passo neste blogue trazem-me alguma felicidade. E cada vez estou mais convencida de que, se tentarmos ser um pouco mais felizes, mais facilmente poderemos fazer felizes as pessoas que estão à nossa volta.

Um abraço e obrigada.

domingo, 8 de julho de 2012

Diário de Mariana


8 de julho 2012
Querido diário,

Estou furiosa. Toda a gente diz: ó Mariana, és tão calminha! Sei lá se sou. Eu acho é que tenho  um tipo de grilo falante que diz assim: tem calma, Mariana, tem calma, Mariana…
Por exemplo, já tenho visto um carro estacionado mesmo junto à porta de uma casa. As pessoas que lá moram quase nem podem entrar nem sair ou então veem-se aflitinhas. Dá-me uns nervos que até me apetecia estragar o carro. E lá está, oiço logo: tem calma, Mariana, tem calma, Mariana. Eu não sou mais do que os outros, mas por que é que muita gente só pensa nos seus interesses? Passo-me com isso, mas pronto lá está o tipo grilo falante: tem calma, Mariana, tem calma Mariana. Brrrr!
Hoje estava a tomar o pequeno almoço e ouvi uma espécie de jornalista ou escritor a falar de um livro de aventuras. Achei altamente e pus-me a ouvir. Ele disse que quando escreve tem a preocupação de ajudar a formar os jovens. Por acaso achei isso fixe. Depois também falou que acha que os livros para jovens devem ser tipo divertidos. Eu também concordo, mas o que ele disse a seguir é que até me tirou a vontade de comer o pão com manteiga e compota que me estava a saber tão bem. Disse que um dia mais tarde os jovens é que têm de pagar a dívida nacional.
Eu sempre fui educada a não dever nada a ninguém, mas como é que eu posso pagar se, na melhor das hipóteses, só tenho trabalho e ganho quando tiver p'ra'í 30 anos? E com tudo a correr bem. Eu pus trabalho antes de ganhar, porque outro dia vi um título numa revista que dizia que há pessoas que trabalham e são pagas só com alimentação. Coitadas!
Olha eu e tantos outros sem culpa nenhuma a pagar dívidas que não fizemos. É preciso ter lata!
Às vezes, apetecia-me passar-me à minha vontade, mas lá está ele, o chato de grilo falante: tem calma, Mariana, tem calma, Mariana. Brrrr!

Muitos abracinhos, querido diário
Mariana

PS - Amanhã saem as notas dos exames. Eu este ano ainda não tenho esse stress, mas tenho alguns amigos meus que devem estar mortinhos por ver as notas. Ou não, sei lá. Por acaso era fixe que ficassem contentes. Já combinámos ir comer um cachorro.

Agora vai haver mais exames. A gente estuda estuda e não ganha nada e há políticos que nem sequer vão à Universidade e têm cursos e ganham muito. E a gente ainda por cima vai ter de pagar a dívida que muitos fizeram. Brrrr!

O gato que não "gostava" de Strauss

Gosto muito de ouvir rádio quando vou de carro. E se há entrevistas que me agradam, até me apetece ir mais devagar (sem interromper o trânsito, é claro!).

Hoje, na antena 2, alguém (nestes casos, as conversas ficam, com frequência, truncadas) falava de Strauss, contando uma história de um amigo que adorava música clássica.  Ouvia-a quando chegava a casa, à noite depois de jantar, ao fim de semana... Quase sempre na companhia do gato. E o felino parecia gostar porque se enroscava, consolado, junto ao seu dono enquanto este, deliciado, ouvia a música.

Porém, quando ouvia música de Strauss, o gato fugia da sala e afastava-se o mais que podia. Estranho gato, estranho caso. 

Um dia, o dono do gato falou a um amigo acerca da reação do gato quando ouvia música de Strauss. Também o amigo estranhou.

Um dia, ou melhor, uma noite, houve um concerto de música de Strauss. No final do espetáculo, o público aplaudia, de pé, com entusiasmo. Um grupo mantinha-se sentado, incluindo o dono do gato. 

Ficava sempre irritado quando ouvia música de Strauss!!!

A cada um o seu jornal

Compro, há muitos anos, o jornal no mesmo sítio. Como os jornais estão colocados no passeio, as pessoas param os carros e os vendedores dos jornais - um casal - logo vêm trazer o jornal habitual.

Comigo nunca houve enganos e, que eu tenha reparado, acertam sempre com todos. E os clientes são muitos em todas as manhãs.

Gosto cada vez mais destas rotinas. Deve ser velhice, mas que são boas - para mim - são!

sábado, 7 de julho de 2012

Regata no rio Douro - hoje


O Rui Veloso também é (do) Porto

No palco, Rui Veloso, sempre à vontade, ia comunicando com o público: 
O teu irmão num beio, cara(go)?
Que espetáculo! Que noite! Olha quem está ali! 
Gosto mesmo de os ber aí, quera!
Parece que estão na minha sala! E esta é comprida, quera!
Olha aquele gajo do tempo do liceu! Ficou cum bergonha
'Tou a ficar bailhote, já num bejo bem, queré!
... 

E música. Muita música. Com memória(s). Com sentimento(s). Com pessoas de todas as idades. Uns de braços erguidos ao ritmo dos sons. Outros mais quietos, mas com a alma embalada pelas emoções.

Foi ontem à noite, na Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia. Um espetáculo de duas horas. Umas vezes com chuviscos (pareciam as orvalhadas de S. João, mas os Santos Populares já lá vão), outras com céu quase a descoberto.
Às vezes, passava uma gaivota e, entre as luzes, parecia uma pomba branca.

O público foi ao rubro quando Rui Veloso cantou o sublime Porto Sentido:
Quem vem e atravessa o rio
Junto à serra do Pilar
vê um velho casario
que se estende até ao mar

Quem te vê ao vir da ponte
és cascata, são-joanina
dirigida sobre um monte
no meio da neblina.

Por ruelas e calçadas
da Ribeira até à Foz
por pedras sujas e gastas
e lampiões tristes e sós.
(...)

As últimas três canções foram das que o público mais estava à espera.

 "O anel de rubi":
Tu eras aquela que eu mais queria,
para me dar algum conforto e companhia,
e era só contigo que eu sonhava andar,
para todo o lado e até quem sabe talvez casar.
Ai o que eu passei só por te amar,
a saliva que eu gastei para te mudar.
Mas esse teu mundo era mais forte do que eu,
e nem com a força da musica ele se moveu.
Mesmo sabendo que não gostavas,
empenhei o meu Anel de Rubi,
Pra te levar ao concerto que havia no Rivoli
(...) 

 "Muito mais é o que une do que aquilo que nos separa":
Recebi o teu bilhete
para ir ter ao jardim
a tua caixa de segredos
queres abri-la para mim
e tu não vais fraquejar
ninguém vai saber de nada
juro não me vou gabar
a minha boca é sagrada

Estar mesmo atrás de ti

ver-te da minha carteira
sei de cor o teu cabelo
sei o shampoo a que cheira
já não como, já não durmo
e eu caia se te minto
haverá gente informada
se é amor isto que sinto

Quero o meu primeiro beijo

não quero ficar impune
e dizer-te cara a cara
muito mais é o que nos une
que aquilo que nos separa

(...) 

 Não há estrelas no Céu
Não há estrelas no céu a dourar o meu caminho,
Por mais amigos que tenha sinto-me sempre sozinho.
De que vale ter a chave de casa para entrar,
Ter uma nota no bolso pr'a cigarros e bilhar?
[Refrão]
A primavera da vida é bonita de viver,
Tão depressa o sol brilha como a seguir está a chover.
Para mim hoje é Janeiro, está um frio de rachar,
Parece que o mundo inteiro se uniu pr'a me tramar!

(...)
 

Nas nossas costas, estava uma das mais belas paisagens do mundo. Atrevo-me a dizê-lo, apesar de não gostar nada destas afirmações radicais. 

É o Porto! É o porto!



quinta-feira, 5 de julho de 2012

Como será no futuro?

Os meios de comunicação social estão a divulgar mais um caso de um político que tirou um curso universitário à pressa. A confiar nas notícias, bastou um ano para Miguel Relvas obter uma licenciatura. Ou provavelmente menos tempo porque parece ter feito apenas quatro exames dos trinta e tal que era suposto fazer.

Segundo a orientação dos diferentes canais televisivos, há comentadores que condenam ou justificam esse procedimento. Ouvi argumentos como: não seria justo pedir a um político com uma experiência tão vasta que frequentasse as aulas como outro aluno qualquer.

Pois bem, este raciocínio aproxima-se do projeto das Novas Oportunidades, tão criticado nomeadamente pelo atual Governo.

Com estas práticas trapalhonas de políticos, que orientam uma grande parte das nossas vidas, muitos jovens ficarão mais desmotivados para o estudo sério e honesto. Para quê estudar tanto se muitos singram na vida sem essa necessidade? Como se tal não bastasse, ainda há mentiras pelo meio. E são pessoas que são defendidas na praça pública por aqueles que entraram na mesma teia.

Será que os jovens de hoje acreditarão um dia nos políticos?  Ou deixar-se-ão arrastar por tão maus exemplos?

O futuro o dirá, mas a mudança de mentalidades é urgente. O salve-se quem puder não traz bem para ninguém. Ainda que alguns pensem isso. Eles pensam?

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Dunas - GNR


Dunas são como divãs,
Biombos indiscretos de alcatrão sujo
Rasgados por cactos e hortelãs,
Deitados nas Dunas, alheios a tudo,
Olhos penetrantes,
Pensamentos lavados.

Bebemos dos lábios, refrescos gelados (refrão)
Selamos segredos,
Saltamos rochedos,
Em câmara lenta como na TV,
Palavras a mais na idade dos "PORQUÊ"

Dunas, como que são divãs
Quem nos visse deitados de cabelos molhados bastante enrolados
Sacos camas salgados,
Nas Dunas, roendo maçãs
A ver garrafas de óleo boiando vazias nas ondas da manhã
Bebemos dos lábios, refrescos gelados,
nas dunas!

Em câmara lenta como na TV,
Nas dunas..
Nas dunas..
Naasss duunas...
Naasss duunas..
Refrescos gelados...
Como na Tv.
Nas duunas...


Rui Reininho, 1985




 Dunas de Mindelo

Mindelo, julho 2012



O rico e o remendão


Era uma vez dois vizinhos que viviam numa terra vulgar. Mas não viviam os dois da mesma maneira! Um era o mais rico senhor daquela terra e muitas noites levava sem poder dormir, preocupado com as suas riquezas, com a sua casa cheia de preciosidades…
O mais pobre era mesmo muito mais pobre: não tinha quase nada e vivia numa casa velhinha, à porta da qual tinha montado uma espécie de oficina de remendão. Ele remendava tudo: carteiras velhas, sapatos, albardas, maletas, enfim, trabalho assim era coisa que nunca faltava! E todo o dia cantava! Tivesse muito ou pouco trabalho, nunca deixava de cantar!
Na casa ao lado, o rico senhor não compreendia como é que com a sua vida de sacrifício e canseira, e tanta miséria que bem se via, o seu vizinho passava o dia em cantorias!!! Aquilo fazia-lhe imensa espécie...
Um dia mandou chamá-lo à sua presença e disse-lhe:
− Ó mestre, vossemecê quanto é que ganha num ano inteiro?
O remendão coçou a cabeça, o que era sinal de que não fazia a mínima ideia, e disse:
− É impossível calcular isso... pois há tantos domingos e tantos feriados que as contas ficam muito complicadas...
Mas o homem rico insistiu:
− Ó mestre, mas diga assim mais ou menos...
Respondeu o remendão:
− Mais ou menos, mais ou menos, ganho o que me dá para o comer do dia! Só sei que não morro de fome, lá isso não!
Então o homem rico disse-lhe:
− Pois tome nota: eu quero que vossemecê viva sem cuidados e com fartura, pois bem o merece, já por tanto ter trabalhado!
E dizendo isto, entregou-lhe uma bolsa bem recheada de moedas de ouro.
O remendão foi às nuvens!!! Nem sabia como havia de agradecer! Julgou-se o homem mais rico da terra e correu para o seu telheiro a enterrar a bolsa de moedas. A partir daí, nunca mais cantou, pois o menor ruído o punha em sobressalto, com medo dos ladrões... Deixou de ter o sono ferrado e descansado que sempre tivera, e então cantar?! Isso foi coisa que nunca mais fez, com medo de dar nas vistas a sua alegria!!!
Um dia reparou que até o andar do seu gato o fazia tremer... Então foi ter com o vizinho rico e levou-lhe a bolsa de moedas de ouro, dizendo-lhe:
− Muito lhe agradeço, meu senhor, a sua bondade, mas aqui tem o seu dinheiro. Guarde-o, que eu por mim guardarei as minhas cantorias e o meu rico soninho descansado!!!

E assim, o remendão
Preferiu o que mais queria.
Mais que a riqueza enterrada,
Vale a sua cantoria!
Maria Alberta Menéres
100 Histórias de todos os tempos
Porto, Ed. Asa, 2003

segunda-feira, 2 de julho de 2012

"Árvores como nós"


         

Existe uma planta chamada agave. Alguns exemplares vivem no Jardim Botânico, no Porto.

A planta-mãe cresce durante dez anos. 
Enquanto se eleva em direção ao céu, vai espalhando sementes que germinam e crescem à sua volta.
Depois de um ciclo de dez anos, a planta-mãe morre para que o alimento não falte aos seus rebentos.


Dos filhotes crescerão outras árvores e destas, a seu tempo, novas crias.


domingo, 1 de julho de 2012

Carta a Ruben A.






Que tenhas morrido é ainda uma notícia 
Desencontrada e longínqua e não a entendo bem 
Quando – pela primeira vez – bateste à porta da casa e te sentaste à mesa 

Trazias contigo como sempre alvoroço e início 
Tudo se passou em plenos e projectos 
E ninguém poderia pensar em despedida 

Mas sempre trouxeste contigo o desconexo 
De um viver que nos funda e nos renega 
- Poderei procurar o reencontro verso a verso 
E buscar – como oferta – a infância antiga 

A casa enorme vermelha e desmedida 
Com seus átrios de pasmo e ressonância 
O mundo dos adultos nos cercava 
E dos jardins subia a transbordância 
De rododendros dálias e camélias 
De frutos roseirais musgos e tílias 

As tílias eram como catedrais 
Percorridas por brisas vagabundas 
As rosas eram vermelhas e profundas 
E o mar quebrava ao longe entre os pinhais 

Morangos e muguet e cerejeiras 
Enormes ramos batendo nas janelas 
Havia o vaguear tardes inteiras 
E a mão roçando pelas folhas de heras 

Havia o ar brilhante e perfumado 
Saturado de apelos e de esperas 
Desgarrada era a voz das primaveras 

Buscarei como oferta a infância antiga 
Que mesmo tão distante e tão perdida 
Guarda em si a semente que renasce 


Sophia de Mello Breyner