quinta-feira, 24 de maio de 2012

Rosa Quiroga

É mulher do Teatro: atriz, encenadora, formadora... 
Nasceu e vive em Gondomar.

Ontem à noite, esteve na Biblioteca Municipal de Gondomar para falar da obra de Anton Tchékhov - O tio Vânia.

Os participantes da Comunidade de leitores puderam partilhar as suas leituras da peça de teatro, escrita no século XIX, mas que continua atual. Só os génios conseguem esta intemporalidade.

Também se leram excertos em voz alta. E repetiu-se a leitura. Porque ler implica pausas, silêncios...

Com Rosa Quiroga, aprendeu-se. 

É bem verdade o que afirmou: a arte ajuda a viver melhor.

A menina do pinhal

Van Gogh

quarta-feira, 23 de maio de 2012

De tarde

Merse

Naquele «pic-nic» de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,

Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,

Nós acampámos, inda o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão de ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro, a sair da renda

Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas.


Cesário Verde 

Nota: 
Tantas sensações neste poema: visuais, olfativas, tácteis, gustativas...
Muitos poemas também contam histórias.
E mostram muitos dos sabores de coisas simples e belas.
Que dariam coloridas "aguarelas".
Os olhos de Cesário Verde, que viveu no século XIX, ainda guiam e as suas palavras continuam a pintar
Só os génios o conseguem.


"Oh, é só isto?"


Beijo pouco, falo menos ainda.

Mas invento palavras

Que traduzem a ternura mais funda

E mais cotidiana.

Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.

Intransitivo:

Teadoro, Teodora

Manuel Bandeira


Nota:
Como o prometido é devido, levei este poema para o 11º 2. Os alunos ouviram-no em silêncio. 
No final, uma aluna disse: "Oh! é só isto?" 

Foi uma oportunidade para vermos que a riqueza de um poema não advém da sua extensão.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Dalton Jérson Trevisan - Prémio Camões 2012

"Dalton Jérson Trevisan é o escritor distinguido com o Prémio Camões, acabou de anunciar o júri em Lisboa. Esta distinção foi atribuída por unanimidade.

O escritor brasileiro, que completa dia 14 de junho 87 anos, foi premiado pela sua "dedicação ao fazer literário", disse Silviano Santiago, um dos membros do júri.

O escritor brasileiro tem-se destacado no conto e "O Vampiro de Curitiba" (1965) é uma das suas obras mais conhecidas. Recentemente, escreveu "Vozes do Retrato - Quinze Histórias de Mentiras e Verdades" 
(1998), "O Maníaco do Olho Verde" (2008), "Violetas e Pavões" (2009), "Desgracida" (2010) e "O Anão e a Ninfeta" (2011).

Dalton Trevisan é também conhecido por viver afastado da vida pública. O escritor não dá entrevistas e não gosta de ser fotografado. Assina apenas como D. Trevis e vive "escondido" dos media em Curitiba, cidade onde nasceu.

"Escondeu-se no anonimato para vencer um concurso de contos no Paraná, em 1968. Gosta de filmes de bangue-bangue [cowboys] e de passear pelas ruas da capital paranaense", diz a biografia publicada no site da sua editora, o grupo editorial "Record". 

Dalton Trevisan, antes de ter livros impressos, chegou a publicar os seus contos em folhetos. Licenciado em Direito, foi crítico de cinema e, em 1996, recebeu, no Brasil, o prémio Ministério da Cultura de Literatura. Os seus livros já foram traduzidos para inglês, espanhol e italiano. 

No site do brasileiro "Record", lê-se ainda que, em 1945, a sua vida esteve em risco, após sofrer um acidente com o forno de olaria. "Trevisan foi internado com fratura de crânio, mas recuperou para editar, a partir do ano seguinte, a revista 'Joaquim', que duraria até 1949." 

A "Joaquim" lançou escritores como António Cândido, Mário de Andrade e Otto Maria Carpeaux e poemas inéditos, como "O Caso do Vestido", de Carlos Drummond de Andrade". 

Um conto do "Prémio Camões" 2012


  Encontrei este curtíssimo conto de Dalton Trevisan. 

Tanta coisa contada, sentida, sugerida, imaginada...
 em tão poucas palavras!




Dois velhinhos

Dois pobres inválidos, bem velhinhos, esquecidos numa cela de asilo.

Ao lado da janela, retorcendo os aleijões e esticando a cabeça, apenas um podia olhar lá fora.

Junto à porta, no fundo da cama, o outro espiava a parede úmida, o crucifixo negro, as moscas no fio de luz.

Com inveja, perguntava o que acontecia. Deslumbrado, anunciava o primeiro: 

— Um cachorro ergue a perninha no poste.

Mais tarde: 

— Uma menina de vestido branco pulando corda.

Ou ainda: 

— Agora é um enterro de luxo.

Sem nada ver, o amigo remordia-se no seu canto. O mais velho acabou morrendo, para alegria do segundo, instalado afinal debaixo da janela.

Não dormiu, antegozando a manhã.

Bem desconfiava que o outro não revelava tudo.

Cochilou um instante — era dia. 

Sentou-se na cama, com dores espichou o pescoço:

entre os muros em ruína, ali no beco, um monte de lixo.



Texto extraído do livro de Dalton Trevisan  Mistérios de Curitiba, Editora Record — Rio de Janeiro,1979.


Caso do Vestido




Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, dizei depressa
que vestido é esse vestido.

Minhas filhas, mas o corpo
ficou frio e não o veste.

O vestido, nesse prego,
está morto, sossegado.

Nossa mãe, esse vestido
tanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.

Era uma dona de longe,
vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado,
se perdeu tanto de nós, 

se afastou de toda vida,
se fechou, se devorou,

chorou no prato de carne,
bebeu, brigou, me bateu,

me deixou com vosso berço,
foi para a dona de longe,

mas a dona não ligou.
Em vão o pai implorou.

Dava apólice, fazenda,
dava carro, dava ouro,

beberia seu sobejo,
lamberia seu sapato.

Mas a dona nem ligou.
Então vosso pai, irado,

me pediu que lhe pedisse,
a essa dona tão perversa,

que tivesse paciência
e fosse dormir com ele...

Nossa mãe, por que chorais?
Nosso lenço vos cedemos.

Minhas filhas, vosso pai
chega ao pátio.  Disfarcemos.

Nossa mãe, não escutamos
pisar de pé no degrau.

Minhas filhas, procurei
aquela mulher do demo.

E lhe roguei que aplacasse
de meu marido a vontade.

Eu não amo teu marido,
me falou ela se rindo.

Mas posso ficar com ele
se a senhora fizer gosto,

só pra lhe satisfazer,
não por mim, não quero homem.

Olhei para vosso pai,
os olhos dele pediam.

Olhei para a dona ruim,
os olhos dela gozavam.

O seu vestido de renda,
de colo mui devassado, 

mais mostrava que escondia
as partes da pecadora.

Eu fiz meu pelo-sinal,
me curvei... disse que sim.

Sai pensando na morte,
mas a morte não chegava.

Andei pelas cinco ruas,
passei ponte, passei rio, 

visitei vossos parentes,
não comia, não falava,

tive uma febre terçã,
mas a morte não chegava.

Fiquei fora de perigo,
fiquei de cabeça branca,

perdi meus dentes, meus olhos,
costurei, lavei, fiz doce,

minhas mãos se escalavraram,
meus anéis se dispersaram,

minha corrente de ouro
pagou conta de farmácia.

Vosso pais sumiu no mundo.
O mundo é grande e pequeno.

Um dia a dona soberba
me aparece já sem nada,

pobre, desfeita, mofina,
com sua trouxa na mão.

Dona, me disse baixinho,
não te dou vosso marido,

que não sei onde ele anda.
Mas te dou este vestido, 

última peça de luxo
que guardei como lembrança

daquele dia de cobra,
da maior humilhação.

Eu não tinha amor por ele,
ao depois amor pegou.

Mas então ele enjoado
confessou que só gostava

de mim como eu era dantes.
Me joguei a suas plantas,

fiz toda sorte de dengo,
no chão rocei minha cara,

me puxei pelos cabelos,
me lancei na correnteza,

me cortei de canivete,
me atirei no sumidouro,

bebi fel e gasolina,
rezei duzentas novenas,

dona, de nada valeu:
vosso marido sumiu.

Aqui trago minha roupa
que recorda meu malfeito

de ofender dona casada
pisando no seu orgulho.

Recebei esse vestido
e me dai vosso perdão.

Olhei para a cara dela,
quede os olhos cintilantes?

quede graça de sorriso,
quede colo de camélia?

quede aquela cinturinha
delgada como jeitosa?

quede pezinhos calçados
com sandálias de cetim?

Olhei muito para ela,
boca não disse palavra.

Peguei o vestido, pus
nesse prego da parede.

Ela se foi de mansinho
e já na ponta da estrada

vosso pai aparecia.
Olhou pra mim em silêncio,

mal reparou no vestido
e disse apenas: — Mulher,

põe mais um prato na mesa.
Eu fiz, ele se assentou,

comeu, limpou o suor,
era sempre o mesmo homem,

comia meio de lado
e nem estava mais velho.

O barulho da comida
na boca, me acalentava,

me dava uma grande paz,
um sentimento esquisito

de que tudo foi um sonho,
vestido não há... nem nada.

Minhas filhas, eis que ouço
vosso pai subindo a escada.

Carlos Drummond de Andrade


Plantar uma floresta




                                                                          
Quem planta uma floresta
Planta uma festa.

Planta a música e os ninhos,
Faz saltar os coelhinhos.

Planta o verde vertical,
Verte o verde,
Vário verde vegetal.

Planta o perfume
Das seivas e flores,
Solta borboletas de todas as cores.

Planta abelhas, planta pinhões
E os piqueniques das excursões.

Planta a cama mais a mesa.
Planta o calor da lareira acesa.
Planta a folha de papel,
A girafa do carrocel.

Planta barcos para navegar,
E a floresta flutua no mar.
Planta carroças para rodar,
Muito a floresta vai transportar.
Planta bancos de avenida,
Descansa a floresta de tanta corrida.

Planta um pião
Na mão de uma criança:
A floresta ri, rodopia e avança.



Luísa Ducla Soares
A gata Tareca e Outros Poemas Levados da Breca
Lisboa, Teorema, 1990