O amor e uma carta
Hoje, finalmente, prevê-se chuva.
Se, neste momento, o telefone tocasse ou
me batessem à porta, julgo que não responderia. A menos que fosse o meu filho a
ligar-me de Paris. Ou o Félix a falar de Moçambique, mas ele prefere escrever
cartas à moda antiga.
Sinto-me dentro do que escrevo e leio,
neste computador que abri há pouco. Será uma forma de egoísmo?
Não sei muito bem como, ocorrem-me temas
que são considerados perenes, mas que assumem a forma que cada um lhes dá. O
amor, por exemplo. Camões escreveu que "O amor é um fogo que arde sem se
ver".
Nas obras de arte, o amor surge quase
sempre como pano de fundo e, muitas vezes, revelado através de cartas.
Contudo, muitas vezes, como escreveu
Fernando Pessoa, através do seu heterónimo Álvaro de Campos, "as cartas de
amor são ridículas".
Ainda assim, muitas cartas ridículas se
escreveram, se rasgaram, se guardaram, se desprezaram, se recordaram... Eu
também as recebi e escrevi.
E interrogo-me: como será uma carta de
amor sem ser ridícula? E chego à conclusão que não sei escrever uma carta de
amor, porque, para tal, é necessário estar imbuído de um sentimento que afasta
qualquer laivo de sensatez.
Seria eu capaz de me despojar de modo a
escrevê-la? E, paradoxalmente, neste momento, sinto vontade de escrever uma
carta, não sei se de amor. E logo me surgem estas palavras que junto e registo:
Escrevo-te não apenas para dizer que te
amo, mas para te sentir mais próximo de mim. Estás longe, incrivelmente longe,
mas, escrevendo-te, sinto que as nossas mãos se aproximam, como da última vez
em que estivemos juntos.
Não sei se nascemos um para o outro,
embora muitas vezes pense nisso. Há casais tão empáticos que chegam a ter
semelhanças físicas. Acho isso maravilhoso. Nesse caso, poder-se-á dizer que nasceram
para se encontrarem. Mesmo de forma imperfeita, sei que nos amamos. E este
verbo, talvez por ser tão mal utilizado, causa-me pruridos.
Sei, contudo, que somos seres comuns que
nos zangamos, que às vezes nos afastamos, mas que nos procuramos em bons e maus
momentos. E que sorrimos. E que nos abraçamos. E que brindamos às coisas boas
da vida. E que nos completamos como seres diferentes que somos. Raramente te
digo, por palavras, que te amo, mas sabe-lo porque nasceste mais confiante do
que eu. Tu repetes-mo com mais frequência porque sabes que preciso de o ouvir.
E a cumplicidade é um sol necessário em todas as estações da nossa existência.
Não somos originais, mas temos a nossa
singularidade que nos aproxima, senão o puzzle
pessoal estaria incompleto. Conhecemos o calor das nossas mãos e dos nossos
rostos quando se juntam, mesmo mantendo abertos os olhos.
Interrogo-me como é possível viver sem
amor, embora o amor não viva apenas numa pessoa em especial. Talvez seja lugar
comum, mas repito-o. Revela-se pelos filhos, por uma causa, pela família, por
uma arte, por um trabalho, por uma casa... Tu habitas no meu pensamento, és um
facilitador de todas essas formas de amor.
Falamos de tudo, ouvimo-nos, expressamos
os nossos estados de alma, partilhamos
os valores que para ambos são importantes.
E, para além disso, ainda nos
aconchegamos como folha que se liga amorosamente ao seu ramo.
Afinal, vou dizer-te: Amo-te, Félix.
No dia do lançamento deste meu livro,
a Ana Cardoso, minha amiga e que tão generosamente o apresentou,
disse que não concordava com o destino que dei a Félix.
Talvez por isso, nuns contos que ando a escrever,
Félix regressa.
Oxalá a viagem seja boa!!!