terça-feira, 29 de dezembro de 2020

O menino da lágrima - 3

 

Lurdes Castro

 

"Para a minha mulher e para a minha filha

Deixo-vos esta carta porque preciso de vos dizer algumas coisas que me atormentam a alma há muito tempo.

 Maria, passas os teus dias calada a tratar da casa e do jardim, eu, a ver filmes. A Natércia anda mais triste desde a separação do Fernando. Às vezes penso que é infeliz nesta casa. Nunca trocamos sorrisos, nem falamos abertamente dos nossos problemas. Fazemos cerimónia uns com os outros e parece que temos medo de ser felizes ou fomo-nos convencendo de que só os outros têm esse direito. Parecemos o menino triste da lágrima. Como gostei de o ver coberto com as flores que a Natércia desenhou. Foi pena ter sido por tão pouco tempo.

Maria, foste a pessoa que mais amei em toda a minha vida. Sei que nem sempre fui o marido que desejavas. Tinhas razão em ter ciúmes, porque eu elogiava mulheres bonitas e a ti apontava-te defeitos.

 Natércia, quero dizer-te, talvez pela primeira e última vez: amo-te muito e tenho imenso orgulho em ti. Sei que já é demasiado tarde para mudar a nossa vida, mas não quero morrer sem te dizer isto que já te devia ter dito muitas vezes. Se o tivesse feito, de certeza que eras mais feliz e eu também o seria agora!

Ando a sentir-me pior e julgo que não passarei deste Natal. E olhem que não é conversa de velho. Quero escrever esta carta enquanto posso e vou guardá-la até ao dia em que sinta que é o último.

Amo-vos, querida mulher e querida filha.

Por que raio passamos uma vida juntos sem nunca dizer que gostamos uns dos outros?  E isso faz tanta falta.

Só quando pensamos que vamos morrer é que ganhamos coragem para dizer o que devíamos ter repetido ao longo da nossa vida.

Tentem ser mais felizes que, esteja onde eu estiver, também serei.

Beijos. Adeus.

José"

Natércia saltou a leitura do final da carta e foi a correr ao quarto dos pais. A mãe ainda dormia e o pai, aparentemente, estava já sem vida, o que foi confirmado pelo 112, minutos depois.

No dia a seguir ao Natal, despediram-se, tristemente, de José. 

Dezembro ia terminando ameno. Numa tarde de sol, mãe e filha sentaram-se num banquinho do jardim em conversa mais longa do que o usual.  Natércia desenhava flores numa cartolina para substituir o menino da lágrima do fundo do corredor, agora a pedido da mãe.

Nesse momento, passaram na rua as vizinhas com a loura criança ao colo. O brinquedo eletrónico tinha avariado e, numa das faces rosadas do menino, corria uma lágrima.

 Natércia e Maria sorriram-lhe, o menino acenou-lhes com a mãozinha papuda e, de repente, deixou de chorar. 

 

 Maria Dolores Garrido

 

 Este conto foi publicado em Lugares e Palavras do Natal, Editora Lugar da Palavra, 2020

 

Nota:

Talvez a história seja um pouco triste, mas espero que o final traga um pouco de alegria e de esperança.

8 comentários:

  1. Eu gostei. O ano passado também participei desse livro, mas este ano com a netinha bebé me casa e o problema dos olhos não me foi possível.
    Abraço e saúde

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    1. Obrigada, querida Elvira. Às vezes, realmente 'valores mais altos se levantam'.
      Oxalá os olhos vão mantendo as suas luzes que, a avaliar pelo seu blogue (SEXTA-FEIRA), são muitas as que partilha.
      Beijinhos

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  2. Gostei do conto, embora seja triste. Mas é verdade que não dizemos sempre o que sentimos; creio que a partir do momento em que nos tornamos adultos, temos mais pudor em o fazer e partimos do princípio que os outros sabem dos nossos sentimentos, o que pode nem sempre ser verdade.

    Continuação de boas festas.🎄😊

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    1. Que bom ter chegado ao fim, amiga Isabel. Sim, se calhar, uma das ideias principais que eu queria transmitir era essa: muita coisa que fica por dizer ao longo da vida.
      Beijinho

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  3. Vai continuar?
    Foi tão triste como verdadeiro tantas vezes!
    .
    Gostaria tanto de vos dizer...
    .
    Beijo e continuação de Boas Festas, com saúde.

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  4. O próximo conto que escolher será mais alegre!!!! Como esperamos que seja o novo ano.
    Beijinhos, amiga Cidália.

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  5. Obrigada, Gábi. Também gosto muito do que escreves.

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