sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Diário de Mariana

11 de novembro

Querido diário,

Hoje, o que te vou contar vai ser diferente. Vou transcrever o conto de Natal que escrevi com o Gi. Quero só explicar-te isto: para participarmos no concurso “Vamos escrever um conto de Natal”, tínhamos que pôr, obrigatoriamente, duas personagens: um sem-abrigo e um ou uma adolescente e o espaço tinha de ser a cidade.

Um dia, vi uma notícia no jornal sobre um homem que tentou roubar chocolates no Lidl e teve bué de problemas por isso. Achei que este caso ficava altamente num conto de Natal. O Gi ainda disse: oh, vamos falar de grandes superfícies? Era melhor, então, falarmos do comércio tradicional! Tive de lhe explicar que se puséssemos a história numa mercearia não era a mesma coisa, porque é tudo mais pequeno e as pessoas veem-se melhor. Ele acabou por dizer: ‘ta bem, vamos lá. Depois eu disse-lhe que tínhamos de escrever está e não ‘ta. Ele acendeu-me os faróis e começámos a trabalhar, porque não me quis chatear e queria era escrever.

O resultado foi este (mas já sei que a setora vai sugerir algumas mudanças, dar outras sugestões… Depois conto-te).

Muitos beijinhos

Mariana

Quase noite de Natal

O dia tinha estado ameno, mas, com o cair da noite, as nuvens carregadas começaram a ameaçar tempestade. António, um sem-abrigo, afastou o cartão em que todas as noites dormia, assim como o cobertor escuro com que se cobria. Se procurasse um supermercado, sempre podia entrar e proteger-se da forte chuvada que não parecia demorar muito. Viu, então, ao fundo da rua, o anúncio bem luminoso. Assim fez. Quando entrou, sentiu o quentinho de um espaço abrigado, de gente lavadinha e com companhia para falar. O dia não lhe tinha corrido muito bem. Compraria um sumo de laranja, porque o desenho do pacote fazia-lhe lembrar as laranjeiras da aldeia onde tinha vivido a infância.

Ao aproximar-se da prateleira dos sumos, passou pelos chocolates e teve uma ideia, ou melhor, uma tentação: meter seis chocolates ao bolso para oferecer na noite de Natal a seis pessoas que olhassem para ele com carinho. De repente, vê um funcionário e um adolescente junto dele. Um rapaz tinha assistido à tentativa de roubo, chamou o funcionário que disse apenas ao sem-abrigo: tira os chocolates do bolso e volta a pô-los no lugar.

António limitou-se a obedecer à ordem, porque já era velho e não podia correr ou fugir. E o que mais lhe custou foi ser tratado por tu. Enquanto estava a pôr os chocolates na prateleira, olhou para o rapaz que o tinha acusado. Tinha ar de quem tinha tudo e não gostava de nada nem de ninguém.

O funcionário, com ar de falso Pai Natal, disse assim: não chamo a polícia só por causa do espírito natalício. António voltou para o seu sítio habitual, também sem o sumo que queria comprar. Felizmente, a chuva já não caía.

Umas horas depois, já deitado, reparou que a rua estava deserta. De repente, começou a ouvir alguém a correr. Levantou a cabeça para ver o que se passava. Era uma rapariga. Vendo o sem-abrigo, parou e perguntou-lhe se tinha visto um rapaz de cabelo claro, alto, magro, de blusão de couro… Mostrava muita aflição e disse que o irmão tinha fugido de casa porque estava farto de tudo e de todos, até dos pais que chegavam no dia seguinte para o Natal.

Pela descrição, o sem-abrigo reconheceu o jovem que o tinha denunciado no supermercado. Em poucas palavras, apontou-lhe o final da rua.

A jovem retomou a corrida em busca do irmão. Encontrou-o sentado num dos bancos do jardim. Os dois irmãos abraçaram-se e ela convenceu-o a voltar para casa e passar o Natal em família.

Na volta, passaram pelo local onde a rapariga tinha visto o sem-abrigo. Estava lá o cartão, o cobertor, o saco de plástico, mas António já lá não estava.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Boas-vindas

S/cem palavras

Há muitos muitos anos, a estudar no Porto, dirigia-me diariamante à paragem da camioneta, pela hora do almoço. Uma porta abria-se numa casa em frente e saía uma mulher alta, de cabelo negríssimo, atado com um laço. Encostava a porta e punha-se do lado de fora à espera de alguém. Semblante expectante, sério e convicto.

Passados uns instantes, a morena mexia-se, esboçava um sorriso. Era ele que chegava. Beijavam-se, ele punha o braço por cima dos ombros dela, entravam e fechavam a porta. Sem nunca olharem para mais ninguém. No dia seguinte, o ritual repetia-se. Belo par. Estranho caso.

Será que em tempo de crise, "S. Martinho vem carregadinho de pão e vinho"?

Os provérbios é que ninguém os tira.

Mas, pelo sim, pelo não, aqui vão alguns:

§ No dia de S. Martinho, vai à adega e prova o vinho.

§ No dia de S. Martinho com duas castanhas se faz um magustinho.

§ Dia de S. Martinho, lume, castanhas e vinho.

§ Do S. Martinho ao Natal, o médico e o boticário enchem o bornal.

§ Pelo S. Martinho, mata o teu porquinho e semeia o teu cebolinho.

§ Pelo S. Martinho, deixa a água pró moinho.

§ Por S. Martinho semeia fava e o linho.

§ Se o Inverno não erra o caminho, tê-lo-ei pelo S. Martinho.

§ O Verão de S. Martinho, a vareja de S. Simão e a cheia de Santos, são

três coisas que nunca faltam nem faltarão.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Desejo de futuro

S/cem palavras

Hoje, duas alunas, sentadas uma ao lado da outra na sala de aula, a propósito de um texto que estava a ser analisado, disseram à professora que nunca tinham ido a Paris, mas que adoravam conhecer essa cidade. Olharam uma para a outra e os olhos sorriam de tantos sonhos, que, provavelmente, demorariam a realizar.

E a professora disse: ainda têm muito tempo para viajar. E elas voltaram à mesma expressão festiva de desejo de futuro. Quase ânsia.

Há muito muitos anos atrás, a professora ansiava por ter dezoito anos. Tal como elas adoravam agora fazer quinze.

Diário de Mariana

9 de novembro 2011

Querido diário,

Hoje na primeira aula da manhã fiz aquilo que adoro fazer: escrever. A setora já tinha dito que queria que nós participássemos do concurso de contos de natal. Leu-nos o regulamento e ficámos a saber que tinha de haver um sem-abrigo e um ou uma adolescente e a história tinha de se passar na cidade. Podíamos fazer sozinhos ou em pares. E foi então que o Gi disse logo: ó setora, posso fazer com a Mariana? E eu que preferia fazer com a Bia, ele vem lá com aquela. E a setora: Ó Gil, por mim, tudo bem, se querem assim…

Se querem assim?! Essa é boa. Eu nem sequer fui ouvida. Às vezes, os setores têm cada uma! O que uns dizem parece sagrado, o que dizem outros já tem de se ver melhor. A Bia ficou a olhar para mim. E o Gi também. Os olhos dele pareciam faróis. A Bia, então, disse assim: ó setora, quando é para escrever, eu prefiro fazer sozinha. É a minha melhor amiga, mas às vezes não a percebo.

Enquanto a setora explicava o que tínhamos a fazer, o Gi ainda me falou outra vez do voto na Associação de Estudantes. Que nervos. Eu até lhe dei uma cotovelada porque queria ouvir tudo sobre o conto. E pra mais é das coisas de que mais gosto.

Achei altamente, a prof dizer assim: tentem ouvir os vossos sentimentos e não tenham medo das emoções. Depois, uma rapariga perguntou-lhe se podia pôr coisas imaginárias e a setora disse outra coisa que eu achei mesmo fixe: nós, com a escrita, podemos fazer tudo.

A prof depois disse-nos depois que tinha estado num workshop de escrita com um escritor famoso americano mas que vive em Portugal e que ele tinha dito estas coisas e ela tinha gostado muito e queria dizer-nos também. Eu então pensei que há uma cadeia de conhecimentos como há uma cadeia alimentar.

Depois começámos a pensar no conto. Ainda estivemos, o Gi e eu, algum tempo para chegar a acordo e a uma conclusão, mas acho que vai ficar fixe.

Muitos beijinhos, tantos como as letras do abecedário que agora são 26.

Mariana

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Palco

s/cem palavras

Chamaram-na para a consulta. Levantou-se, cambaleante. Em breve, regressou à sala de espera. Ao lado, outra mulher sentada. A doente, com Parkinson, começou a falar, avassaladora. Tinha oitenta anos, fora empresária de espetáculos, o marido morrera, o filho deixara de vir almoçar com ela, tinha perdido o contacto da filha, não gostava da família do genro porque mostrava desprezo quando ela não segurava o prato e sujava o chão em dias de festa...

Com flor de lantejoulas no cabelo, risco desalinhado nos olhos, decote pronunciado, prótese a soltar-se na boca estreita, saiu sozinha. Diva sem pose. Público com pena.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Frase de Agustina Bessa-Luís

"A Cultura é, em princípio, um sentimento de afeto pelo mundo que nos rodeia".