sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Reflorir, sempre



Não é já de Natal esta poesia.
E, se a teus pés deponho algo que encerra
e não algo que cria,
é porque em ti confio: como a terra,
por sobre ti os anos passarão,
a mesma serás sempre, e o coração,
como esse interior da terra nunca visto,
a primavera eterna de que existo,
o reflorir de sempre, o dia a dia,
o novo tempo e os outros que hão-de vir.

Jorge de Sena, Poesia-I

Diário de Mariana


23 de dezembro 2011
Querido diário,

Há tanto tempo que não te escrevo, querido amigo diário. Já tinha mesmo saudades. Desde a última vez que te contei o meu dia, houve tantas cenas: os testes, os trabalhos, os relatórios, o conto de Natal… Já estava cansada. Agora é muito fixe porque estou de férias. Posso dormir até mais tarde, mandar mensagens quando quero e preciso (se o cartão estiver carregado, é claro), não tenho de estar sempre a pensar se já tocou, se tenho a mochila arrumada… É chato é a minha mãe estar sempre a lembrar-me que tenho os tê pê cês para fazer:
- Mariana, aproveita o tempo; Mariana, já começaste a estudar?...
Ontem à noite, felizmente, não ouvi isso. Fomos jantar a um restaurante no Porto. Quando entrámos, pensei que era para velhotes, mas depois até gostei. Foi altamente. Estava eu, as minhas irmãs, duas primas mais novas do que eu e uma amiga de uma delas. Ah, e também estava a minha mãe. 
Escolhemos filetes de peixe com arroz. Mas nós, as mais novas, queríamos também batatas fritas, mas pensei: népia, porque uma das minhas irmãs não gosta mesmo nada de infrações à regra. Ela disse logo:
- Meninas, nada de batatas fritas porque vocês hoje já ingeriram muitas calorias.
Mas foi mesmo fixe, porque o empregado parece que adivinhou e trouxe-nos uma travessinha com batatas fritas às rodelas e estaladiças. Até a minha mãe comeu algumas pegando nelas com a pontinha dos dedos.
Para além da comida, a gente falou de muitas coisas, tipo os adolescentes que às vezes parecem um bocadinho parvinhos, as nossas escolas, as mães que gostam que os filhos sejam estudiosos, os nossos professores preferidos, os professores que berram como se estivéssemos muito looonge…
Toda a gente diz que há a idade da parvoíce, mas ninguém pergunta porquê nem diz que também já foi assim. Às vezes, vejo adultos que são mais parvinhos do que muitos adolescentes. E o pior é que falam deles como uma árvore limpinha que perdeu todas as folhas secas. Que horror! Às vezes, dizem assim: ai, ele é tão amoroso ou tão amorosa e vem logo um mas… Mas é teimoso, mas é distraído, mas é descuidado…
Parece que só eles, os adultos, é que têm juízo e fazem tudo bem. Também não fazem tudo mal, porque lembro-me sempre do que a minha Dê Tê diz: não se pode generalizar.
A minha irmã do meio não gosta de assuntos muito sérios à mesa e lembrou-se de coisas engraçadas. Eu às vezes olhava para a minha mãe e quase adivinhava o que ela estava a pensar: que uma das minhas primas é uma princesa; a outra é uma boneca; a amiga de uma delas é muito engraçada e tem um nome que rima com maresia…
Foi um jantar altamente e a minha mãe, quando se despediu, disse que todas tinham sido muito boa companhia.
Fico por aqui, querido diário. Não falei do Gi. Esteve com gripe e teve de faltar nos dois últimos dias de aulas. Tínhamos combinado ir ver os torneios mas népia.
Fiz-lhe um postal de Natal com colagens de pano e de papel. Ficou mesmo fixe. Fiz em tons de azul e pedi ao Rui, que é vizinho dele, se lho entregava. O Rui depois disse-me que o Gi tinha gostado, mas preferia que fosse vermelho. Que nervos!
Muitos abracinhos. Sabes que mesmo no Natal, estarás perto de mim, porque os amigos também são para as boas ocasiões.
Mariana

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Todas as Cartas de Amor são Ridículas


           Todas as cartas de amor são
       Ridículas.
       Não seriam cartas de amor se não fossem
       Ridículas.
       Também escrevi em meu tempo 
       cartas de amor, 
       Como as outras,
       Ridículas.
       As cartas de amor, se há amor, 
       Têm de ser
       Ridículas.
       Mas, afinal,
       Só as criaturas que nunca escreveram 
       Cartas de amor 
       É que são
       Ridículas.
       Quem me dera no tempo 
       em que escrevia 
       Sem dar por isso
       Cartas de amor
       Ridículas.
       A verdade é que hoje 
       As minhas memórias 
       Dessas cartas de amor 
       É que são
       Ridículas.
       (Todas as palavras esdrúxulas,
       Como os sentimentos esdrúxulos,
       São naturalmente
       Ridículas.)
Álvaro de Campos
(heterónimo de Fernando Pessoa)

Fernando e Ofélia



CARTA A OFÉLIA QUEIRÓS - 27 DE ABRIL DE 1920

Meu Be«be»zinho lindo:
     
Não imaginas a graça que te achei hoje á janella da casa de tua irmã! Ainda bem que estavas alegre e que mostraste prazer em me ver (...).
     
Tenho estado muito triste, e além d'isso muito cansado - triste não só por te não poder ver, como também pelas complicações que outras pessoas teem interposto no nosso caminho. Chego a crer que a influência constante, insistente, hábil d'essas pessoas; não ralhando contigo, não se oppondo de modo evidente, mas trabalhando lentamente sobre o teu espírito, venha a levar-te finalmente a não gostar de mim. Sinto-me já differente; já não és a mesma que eras no escriptorio. Não digo que tu própria tenhas dado por isso; mas dei eu, ou, pelo menos, julguei dar por isso. Oxalá me tenha enganado...
     
Olha, filhinha: não vejo nada claro no futuro. Quero dizer: não vejo o que vãe haver, ou o que vãe ser de nós, dado, de mais a mais, o teu feitio de cederes a todas as influencias de familia, e de em tudo seres de uma opinião contraria á minha. No escriptorio eras mais dócil, mais meiga, mais amorável.
     
Enfim...
     
Amanhã passo  á mesma hora no Largo de Camões. Poderás tu apparecer à janella?
     
Sempre e muito teu
     
Fernando

Uma mesa para Fernando Pessoa - café Martinho da Arcada


Lisboa, em dezembro, com muito sol


segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

DESEJOS


Queria ser um poema lindo
cheirando a terra
com sabor a cana

Queria ver morrer assassinado
um tempo de luto
de homens indignos

Queria desabrochar
— flor rubra —
do chão fecundado da terra
ver raiar a aurora transparente
ser r´beira d´julion
em tempo de são João
nos anos de fartura d´espiga d´midje

E ser
riso
flor
fragrante
em cânticos na manhã renovada

Vera Duarte
Nascida em Mindelo, Cabo Verde

Para cantar saudade

Sodade

Cesaria Evora

Quem mostra' bo
Ess caminho longe?
Quem mostra' bo
Ess caminho longe?
Ess caminho
Pa São Tomé

Sodade sodade
Sodade
Dess nha terra Sao Nicolau

Si bô 'screvê' me
'M ta 'screvê be
Si bô 'squecê me
'M ta 'squecê be
Até dia
Qui bô voltà

Sodade sodade
Sodade
Dess nha terra Sao Nicolau

Marcadores de Boas Festas




Doçuras do Natal


sábado, 17 de dezembro de 2011

A boneca


            
Gosto de bonecas de trapos. Lembram-me a minha infância e  pode ser um presente bonito para crianças, juntando-lhes uma estória.  
Lembro-me de uma boneca que tive quando era pequena. Poucas meninas tinham bonecas de celulóide, como dizíamos, e menos eram as que as levavam ao hospital quando um bracinho sou uma perna se partiam, etc.
Eu tinha uma de papelão. Um dia, esqueci-me dela lá fora durante a noite. Veio uma chuvada e a boneca desfez-se. A minha mãe viu-me triste e fez-me uma de trapos. Se calhar é por isso que eu gosto de as ver nascer também das minhas mãos.
Sei, porém, que a vida nunca se repete.

Colhe


Colhe
todo o oiro do dia
na haste mais alta
da melancolia. 

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Sentidos/sensações

IA
Prelúdio de Natal 


Tudo principiava
pela cúmplice neblina
que vinha perfumada
de lenha e tangerinas
Só depois se rasgava
a primeira cortina
E dispersa e dourada
no palco das vitrinas
a festa começava
entre odor a resina
e gosto a noz-moscada
e vozes femininas
A cidade ficava
sob a luz vespertina
pelas montras cercada
de paisagens alpinas
David Mourão-Ferreira

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Trabalho de marqueterie

J. Martins

Flores dobradas ao sol


Quando o homem/a mulher quiser

Júlio Resende

Tu que dormes a noite na calçada de relento
Numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
Tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que dormes só no pesadelo do ciúme
Numa cama de raiva com lençóis feitos de lume
E sofres o Natal da solidão sem um queixume
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em dezembro
Mas em maio pode ser
Natal é em setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher

Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
Tu que inventas bonecas e comboios de luar
E mentes ao teu filho por não os poderes comprar
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
Fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
Pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em dezembro
Mas em maio pode ser
Natal é em setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher

José Carlos Ary dos Santos

Rumo

Manet

E ele disse:
Nunca mando a minha filha fazer nada. Eu digo-lhe: queres vir dar uma ajuda no quintal ou estudar? Ela diz sempre que prefere estudar. Vai para o quarto e fica lá horas. Depois, pergunto-lhe se estudou e ela diz-me que sim. É claro que não vou ver, porque ela já sabe mais do que eu. Quando chega a casa da escola, pergunto-lhe sempre: correu tudo bem?  Ela responde-me sempre que sim. É verdade que não lhe faço mais perguntas. Ela não gosta e diz que não responde a interrogatórios.
Por isso, achava que estava tudo bem e que nem era preciso vir à escola. Para mais, ela disse-me que a senhora tem sempre vários pais para atender e o tempo é pouco! Eu não gosto de incomodar. Nunca gostei. E afinal, só cá estou eu! E veja-me bem isto: negativas, faltas de material, faltas às aulas… Que desgosto. E logo agora que estou desempregado e a minha sogra veio lá para casa porque não podia pagar a renda da casa.
Quando chegar a casa, vou ter uma conversa com ela. Ela nem sabe o que lhe vai acontecer. Fique descansada, senhora professora, porque as coisas vão mudar. Ela vai ver com quantos paus se faz uma canoa.
Desculpe, está o telefone a tocar. Posso atender? Obrigada.
Diz, filha, onde estás? Está bem, está bem, eu digo. Pronto, não te enerves. Sim, claro que acredito em ti.
Senhora professora, desculpe, mas a minha filha diz que a senhora não gosta dela. E eu sei que ela não mente. São as companhias que estragam tudo. A senhora tem de reparar melhor no que se passa na sala de aula. E não acha que tem de ser mais compreensiva? A minha filha é uma adolescente. A senhora está a esquecer-se disso. Os professores também não erram? E também não têm filhos?
Oh, outra vez o telefone.
Sim, sim, filha, vou já. Tem calma. Não demoro nada.
Esta minha filha é terrível. Quer ver os Morangos com açúcar. Desculpe, senhora professora, tenho de ir, senão ela fica chateada e eu é que tenho de a aturar; já me basta a minha sogra a dar-me cabo da cabeça por tudo e por nada.
Mas, peço-lhe, tente ajudá-la. Tenho tanto medo que ela vá por maus caminhos. A gente ouve tantas coisas. Desculpe, tenho de ir; o telefone está a tocar outra vez. Eu vou e assim faço-lhe a vontade, mas não pense que a minha filha manda em mim…