domingo, 28 de agosto de 2011

Uma flor na lapela

100 palavras


Quem o conheceu dificilmente o esquece. Era magro, elegante, de fato irrepreensível. Punha diariamente uma flor fresca na lapela. Quase sempre vermelha e volumosa.

Tinha apelido de ave e as pessoas pronunciavam-no carregando nos erres.

Eu era muito nova e aquele homem era um mistério. Quem lhe arranjaria as flores? Quem as colocaria de modo tão perfeito? Só que nesse tempo a poucas questões se dava resposta. Por essa altura, li, julgo que às escondidas, a Dama das Camélias de Alexandre Dumas e comecei a imaginá-lo personagem de um outro livro que também gostaria de ler.

sábado, 27 de agosto de 2011

O desenho (im)perfeito

Há tempos, um professor da UC pediu um texto a várias pessoas sobre recordações da escola. O que lhe enviei foi o que se segue.

Esta semana, uma amiga perguntou-me: então, quando é que falas de Mariana? Para já, posso dizer que ela acha que ainda é muito cedo para voltar à escola. Diz que não teve tempo para saborear o verão!!!


Nunca tive jeito para o desenho.

Um dia, a minha professora da 4ª classe mandou as alunas – nesse tempo, as raparigas estavam separadas dos rapazes – desenhar uma caravela. Estudávamos os Descobrimentos e haveria uma pequena exposição dos trabalhos produzidos pela turma.

Tal como todas as meninas, fiz o meu desenho. Ficou imperfeito. Dei-lhe os retoques que sabia e podia. Continuava autêntico mas longe da perfeição.

Chegou o dia da exposição – que foi feita pela professora sem a intervenção dos alunos. Na parede exterior da sala de aula, víamos as mais diversas embarcações. Procurei a minha, não a encontrava. Olhei melhor, continuava sem a descobrir. Foi então que saltou aos meus olhos uma bela caravela com o meu nome. A professora, sozinha, tinha-a aperfeiçoado tanto que eu quase não a reconhecia. O mesmo espanto vi no rosto de outras alunas.

Olhando aquelas embarcações tão perfeitas, passaram a navegar mais dúvidas nos olhos das meninas cujo desenho deixou de ser o seu.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Lobo do mar em terra

100 palavras


Todos os dias anda perto do mar: a varrer os passeios, a regar os jardins, na sua bicicleta, a passear rente à praia…

É um homem bonito, de barbas quase brancas, muitas vezes só, embora sorrindo e respondendo à saudação. Faz-me lembrar um velho lobo do mar, um pirata, um aventureiro dos mares que a terra impediu de prosseguir viagem. Daqueles que aparecem em quadros antigos com olhar sereno, sábio e um cachimbo bem seguro nos lábios finos.

Não sei se já conheceu outras terras, mas a terra sem ele ficaria mais distante do mar.

Instantâneos


A trepadeira do muro enleou-se no silvado

E os picos estranharam a maciez das outras folhas

A ameixoeira caiu.

Não aguentou tantos frutos.

O tronco estava frágil e o vento foi mais forte

A romãzeira tem flores laranja

Que dão romãs rosa

Por entre as roseiras vermelhas.

A flor de laranjeira

É neve perfumada suspensa nas folhas em concha

Os narcisos abrem-se no início de Fevereiro.

Eu penso: são velas acesas para celebrar o teu aniversário

Descobri a olaia

Quando um menino a pôs num poema.

Olhai-a, dizia ele no espontâneo haiku

A relva pisada ficará menos macia

E precisará de mais chuva

Para poder olhar o céu

As boninas eram flores pequeninas

Que enfeitavam os muros da minha infância.

Com pampilhos fazíamos colares

perfumados e macios

que faziam cócegas no pescoço

A rosa vermelha trepava no muro cinzento

Em busca de luz mais clara

A nossa casa tinha uma laranjeira

Dava laranjas e sombra em dias de Verão

terça-feira, 23 de agosto de 2011

A menina-princesa


Era uma vez uma menina que também era princesa.

Tinha um nome muito comprido. Chamava-se Isabel Ana Lúcia Inês Mafalda Mariana Sofia Leonor Maria.

Como demorava algum tempo a dizer, muita gente chamava-lhe Maria que era o último nome, simples e bonito. Mas também é muito comum. Por isso se diz que há muitas Marias na Terra. E princesas só há algumas.

Outras pessoas diziam a princesa, a menina, se faz favor, sua alteza real…

Porém, às vezes, diziam-lhe Olhe lá ou Olha lá. Mas, francamente, a menina- princesa não gostava nada que a tratassem assim. Parecia que estavam a atirar-lhe uma pedra afiada.

Não é que ela fosse convencida, tivesse a mania das grandezas ou se sentisse superior aos outros. Nada disso.

É verdade que nunca esquecia que era princesa. O palacete onde vivia era grande, confortável, com loiças muito fininhas e adornos que tinham vindo de continentes estranhos e distantes. Tinha também um grande jardim com muitas camélias que davam muita sombra no verão e flores de muitas cores no inverno.

A avó, uma princesa já muito velhinha e que usava sempre um anel azul, chamava-lhes japoneiras porque há muitos muitos anos as sementes tinham sido trazidas do Japão para Portugal.

Um dia, a menina-princesa deu um passeio pelos jardins do palacete e começou a contar as diferentes variedades de camélias pelos dedos da mão, mas eram tantas que lhes perdeu a conta. Havia camélias brancas, rosa clarinho, rosa forte, vermelhas, matizadas… Umas tinham poucas pétalas, outras pareciam rosas…

Decidiu, então, olhar e observar sem pressa. Como ela gostava de fazer com as magnólias no final do Inverno e com as buganvílias no Verão. Outro dia, traria um caderninho para desenhar o que os seus olhos viam.

Descobriria até, mais tarde, que este trabalho a ajudava a limpar a alma, como a mãe dizia a propósito do mar.

A menina princesa era também muito responsável e muito estudiosa. Tinha resultados muito bons na escola onde andavam outros príncipes e princesas e muitos meninos que não eram de sangue azul, como se costuma dizer.

Como a menina-princesa gostava sempre de saber mais, aprendeu que se diz que as pessoas são de sangue azul, porque, como as famílias nobres não iam para o campo, a pele ficava mais clarinha, fininha e a cor das veias notava-se melhor.

Se calhar, estão a pensar que as qualidades da menina-princesa se deviam a ter nascido num berço de ouro com muita gente a prestar-lhe atenção.

De certeza que isso a tinha ajudado, mas posso garantir-vos que a menina-princesa era amiga, responsável e estudiosa. Ah, era bonita e um bocadinho vaidosa. Gostava de andar sempre de cabelo bem sedoso e escovado. Também gostava de roupas bonitas, embora não desbaratasse o dinheiro em luxos desnecessários.

Um dia, a mãe reparou que a menina-princesa andava triste e com vontade de chorar. Começou a falar com ela.

- Que tens, filha? Por que andas triste?

- Não é nada, mãe.

- Ai isso é que é e gostava que me dissesses o que te preocupa para eu te poder ajudar.

- Não é naaada, acentuou a menina-princesa, mostrando que tinha vontade de acabar o diálogo, porque às vezes não gostamos de falar de coisas que nos inquietam.

- Se não quiseres falar agora, pode ficar para depois, mas se te calares, não resolves o problema.

A menina princesa demorou um bocadinho e disse então que tinha chegado à conclusão que toda a gente só gostava dela porque era princesa e não por ser menina.

E contou que muitas vezes as pessoas se aproximavam dela só para pedirem coisas e não para falarem naturalmente como ela gostaria. Não a convidavam porque achavam que não tinha tempo ou não queria que a incomodassem. Quando ela dizia alguma graça, as pessoas não achavam piada ou riam-se muito só para lhe agradarem. Quando ela dizia que não, as pessoas zangavam-se e achavam que ela estava a desprezá-las.

Gostava de ser natural como outros meninos e meninas e achava que não podia porque era princesa.

E a menina-princesa confessou-se triste, muito triste. Para mais, umas colegas haviam-lhe dito na escola que os professores gostavam mais dela porque era princesa. Não falavam das horas que ela passava a estudar para ter as lições sempre em dia.

A mãe ouviu-a com atenção e disse:

- Filha, tu és uma boa menina e assim deves continuar. Toda a gente encontra pedras no caminho. Às vezes, as pessoas atiram-nas sem querer ou para se verem livres delas.

- Mãe, era muito melhor não ser princesa, porque seria mais feliz.

- Não, minha filha, porque não deixarias de ter pedras no teu caminho.

Não sei muito bem como acabou esta estória. Ou se terminou, porque na vida, seja-se só menina ou seja-se também princesa, as histórias continuam sempre.

O que sei é que, embora não seja nada mau ser princesa, também não deve ser tudo muito bom.

Que o diga a Isabel Ana Lúcia Inês Mafalda Mariana Sofia Leonor Maria.

Ai que até fiquei cansada de dizer o nome.

Pior seria se se chamasse Procópia.