(...)
Combinámos, então, tomar o chá às quatro. Assim, eu teria tempo para, depois, ir ao infantário buscar o bebé. Confesso que estive para não aceitar o convite. O que iria encontrar naquela casa? Era tudo tão estranho. Porém, a vizinha já não me inspirava receio: um pouco corpulenta, tinha o tique de encarocolar uma pequena madeixa de cabelo enquanto falava. Às quatro horas, desci as escadas e nem sequer precisei de bater à porta. Apareceu logo a mulher da voz meiga e disse-me, em tom muito baixo como a segredar, que desculpasse mas, afinal, não podia estar comigo e que o chá deveria ficar para outra tarde de sol. Sorriu com ternura e fechou a porta sem qualquer ruído. Vi o lado positivo da situação, aproveitando para ir buscar o bebé mais cedo e dar um passeio pelo parque.
Com o tempo sempre a passar veloz, no fim de semana regressei a Portugal sem ter voltado a ver a vizinha.
Quando,
semanas depois, voltei a Londres, deparei, à porta do nº 39, com uma pequena carrinha de mudanças. Não
chegara a deslindar o mistério: o porquê daquele inusitado silêncio, o convite
para o chá feito em tom normal e a desistência comunicada em surdina. E por que
razão tinha dito ela que naquele dia não tinha limitações? Quem lhas imporia? O
homem do violino? Que laços os uniriam? Se vinham outras pessoas morar para aquela
casa, nunca mais teria resposta para estas questões. Como era uma situação que eu
não dominava, subi e, olhando pela janela que dava para o jardim das traseiras,
vi que já lá não estavam os vasos de flores.
Uns dias depois, tocaram à campainha logo de manhã cedo. Ainda estávamos todos em casa e o café, borbulhando, perfumava a pequena cozinha.
- Hello,
disse eu, pegando no intercomunicador.
Era uma voz masculina.
- Vivo no nº 39, e gostava de vos fazer um pedido. Peço desculpa por vir tão cedo.
Entreolhámo-nos. Voluntariei-me para descer até à porta da rua, porque não tinha horários rígidos a cumprir.
Estranho. Era o homem do violino que eu tinha visto semanas antes a tocar no jardim ao lado da mulher da voz meiga. Disse-me, semicerrando os olhos, como se a minha presença ou a minha voz o enfastiassem, que era músico e que passara a viver só, não deliberadamente, mas porque os ruídos próximos de outrem eram nefastos à sua necessária concentração. Sem me olhar nunca nos olhos, fez o pedido:
- Seria possível não fazerem ruídos? Toco e estudo enquanto há a luz do dia. Só saio de casa quando tenho audições. Durante a noite, preciso igualmente de silêncio para ouvir os sons das raposas que também me inspiram para as minhas composições que deixarei à Humanidade. Atendendo à minha idade, não posso perder tempo.
Eu ia perguntar-lhe pela senhora da voz meiga, mas tive de subir as escadas depressa porque o meu filho e a minha nora estavam a descer com o bebé e a porta poderia, inesperadamente, fechar-se, apesar de não se ter pressentido qualquer sinal de vento.
Nota:
Sempre que ia a Londres (espero lá voltar sem esperar tanto tempo), trazia algumas notas que ia registando no caderno ou na cabeça. Foi de lá que fui trazendo (esboços de) alguns contos e quase todas as histórias e rimas das Histórias da Clarinha.
Quando lá fui pela última vez, ainda não tinha havido a invasão da Ucrânia. Uma vez por semana, ia lá a casa uma senhora moldava - a D. Vitória. Julgo que também entrou numa história. Desta vez, apesar de o meu inglês não ser nada fluente e o dela ainda menos, acho que terá outras histórias a contar. Nem que seja pelos silêncios.