sexta-feira, 26 de março de 2021

'Que me saiba perder...'

   

Tive de ir à cidade do outro lado do rio e já não foi a primeira vez que tal me aconteceu: perdi-me. Quando preciso, costumo usar o GPS do telemóvel, mas tinha-o no banco de trás, dentro da carteira e nem pensava sequer usá-lo porque a cidade fica aqui tão perto! Porém, em vez de entrar por uma via, entrei por outra. Ao dar conta, já era tarde, porque vinham carros atrás e qualquer desvio podia dar choque.

A solução era mesmo seguir em frente. E andei às voltas nos arredores profundos até encontrar a placa salvadora, depois de ter feito uns quilómetros a mais, ter desligado o rádio que já era só ruído, ter olhado o relógio várias vezes e ter vociferado bastante. Quando encontrei o rumo certo, respirei de alívio e liguei de novo o rádio.

Há uns dois ou três anos, fui com uma filha a uma cidade do sul da Holanda. Ela ia fazer uma formação e quis que eu fosse com ela. Para mim era bom, porque lhe fazia companhia no tempo livre e conhecia um pouco de um país onde eu nunca tinha estado. Ora, durante a manhã e a tarde, enquanto a minha filha aprendia mais sobre o seu mister, eu passeava pela cidade. Visitei igrejas, museus e uma tarde resolvi andar a pé à descoberta, com a consciência de que podia perder-me, mas não me importei porque a cidade era bonita, calma, plana e pequena. Assim aconteceu, mas voltei ainda a tempo ao local de partida e com imagens bonitas no meu telemóvel que à noite, enquanto jantávamos, mostrei à minha filha.

Outra vez, no tempo em que éramos todos vivos, fomos a Paris. À noite, resolvemos passear nas imediações do hotel e a uma certa altura já não sabíamos como regressar. Uns eram de opinião que o melhor era apanhar um táxi, outros nem pensar porque estávamos perto de certeza. Continuámos a caminhar e, de facto, não estávamos longe do hotel. Como chegámos irritados, fomos para os quartos e boa noite que se faz tarde. Só no dia seguinte, ao pequeno almoço, e já relaxados, falámos do assunto e ainda nos rimos.

O título destas peripécias de perdidos e achados foi roubado a Florbela Espanca, que eu lia vezes sem conta na minha adolescência. Aprendi até vários sonetos de cor e um dia fiz um à maneira de Florbela. Para mim, era uma obra-prima que segurava ufanamente na mão numa folhinha manuscrita e arrancada de um caderno. Logo mostrei à minha irmã, que nunca dizia sim só porque sim. Traduzindo a reação dela, dá mais ou menos isto: 'deixa-te disso de imitações'. Afinal, a minha 'obra-prima' nem parente afastada devia ser! Continuei, porém, a folhear o livro (ainda o tenho), a ler os sonetos e outros poemas, mas fiquei-me por ali. Obrigada, mana, só é pena já não leres estas minhas palavras nem os livros que eram  das páginas mais importantes da tua vida.


'Amar!

(...)

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...'

Florbela Espanca

 (Vila Viçosa - 1894 / Matosinhos - 1930)


quarta-feira, 24 de março de 2021

'Kafka e a boneca viajante' - Miguel Falabella

 
Um dia destes, uma amiga enviou-me este vídeo, onde o ator Miguel Falabella conta muito bem uma história, atribuída a Kafka. Verdadeira ou não, achei-a bonita. Oxalá gostem também, se ainda não a conhecerem.

terça-feira, 23 de março de 2021

Conversa com bâton!

 

- Mamã, posso pintar-me e usar vestido no aniversário da tia Ana?

- Querida, como vais para a escola, não podes usar vestido nem ir pintada.

- A tia Ana gosta de usar vestido e de se pintar; ela ia ficar contente.

- Já fica muito feliz quando te vir, falar contigo e ouvir-te cantar os parabéns pelo skype.

- Mamã, posso ao menos pôr bâton? 

 

 

segunda-feira, 22 de março de 2021

Desculpem a maçada. Vou voltar ao post anterior.

 

Resolvi decorar a pequena história que escrevi e ontem partilhei. Se for em papel, talvez fique mais apelativa assim. Também achei bonito o vídeo que ontem partilhei com a história, e que foi feito pelo pelouro da educação da CMG e não por mim.

 

 

Pus papel vegetal em cima de uma folha (neste caso, uma das folhas é de loureiro) e raspei com lápis de cor. Ficou logo a folhinha com as nervuras naturais e depois foi só cortar (Obrigada, Cristina, por me teres ensinado a técnica. Desculpa as imperfeições).

 

 Mostrei à minha neta e acho que gostou. Pensei logo que outras crianças também poderiam gostar.

Bom Dia! Boa semana!

 

domingo, 21 de março de 2021

Bom Dia!

  

 

Era uma vez uma árvore,

uma árvore florida,

e, chegada a primavera,

cobriu-se de nova vida

e pássaros multicores,

incluindo o negro melro,

de bicos de várias cores

sendo um deles amarelo.

 

Um dia,  soprou o vento

e um ramo quase caía;

segurou-se bem ao tronco,

sua forte companhia.

E uma abelha pousou

na pétala de uma flor

que daria uma cereja

ou pera de bom sabor.

 

Fragmento de um desenho de Cristina Pinto

 

 

Foi chegando uma menina

que veio devagarinho

junto da árvore florida,

ouvindo-se um passarinho.

E foi com muita ternura

que ela disse: Bom Dia!

E olhando aquela árvore:

- És tão frágil como nós,

temos de te respeitar;

sem ti, ficamos mais sós,

sem podermos respirar.

 

E a menina foi pr'à escola

a pensar na Poesia

que lá iam celebrar,

a par da Árvore amiga,

e pensou em desenhar

aquela muito florida

que, logo de manhãzinha,

ternamente foi saudar.

E as palavras Bom Dia

entrariam numa quadra,

pensou com muita alegria:

 

Árvore, muito Bom Dia!

dás mais Vida à nossa vida

e às palavras bonitas

que dão Vida à Poesia.

 

 
DG, março 2021

 
 
 


 

 

 

sábado, 20 de março de 2021

Hoje chega a primavera e amanhã celebra-se a Poesia

 

 Ao ler o texto que a seguir partilho, lembrei-me dos Poetas da blogosfera, sobretudo os que conheço porque visito com frequência. São todos homenageados no Dia 21 de março, ainda que a Poesia possa surgir a cada instante e de cada instante. Parabéns!

Poesia

Maria do Rosário Pedreira

'Estes tempos de pandemia são tempos prosaicos e sem graça. Mas neste domingo celebra-se mais um dia da Poesia e convém, pelo menos nesse dia, ler poemas, mesmo que os Extraordinários sejam mais dados à ficção e alguns digam até que a poesia lhes diz pouco (suponho que apenas porque ainda não encontraram o poeta que os convenceu; ele há tantos e tão diferentes que o mais importante é insistir). Para este domingo, convidaram-me (a mim e a outros poetas, bem entendido) da Casa da América Latina para ler cinco poemas de autores latino-americanos. Escolhi José Emilio Pacheco do México, Eucanaã Ferraz do Brasil, José María Zonta da Costa Rica, Juan Gellman e Roberto Juarroz da Argentina (e não me venham chatear por serem tudo homens, porque aqui o que me interessou foram os poemas, não os poetas, como diz o próprio José Emilio Pacheco no texto que elegi). E, de cada vez que gravo estes pequenos vídeos e investigo, fico feliz por encontrar textos tão bonitos que não conhecia e por vezes até autores que nem sabia que existiam. Façam o mesmo neste domingo: procurem, para variar, um poeta qualquer de um país que escolham. Verão como a descoberta dará bons frutos'.

Retirado do blogue Horas extraordinárias, 18 de março 2021 

 

sexta-feira, 19 de março de 2021

'Pai, Dizem-me que Ainda Te Chamo'

'Pai, dizem-me que ainda te chamo, às vezes, durante
o sono - a ausência não te apaga como a bruma
sossega, ao entardecer, o gume das esquinas. Há nos
meus sonhos um território suspenso de toda a dor,
um país de verão aonde não chegam as guinadas
da morte e todas as conchas da praia trazem pérola. Aí

nos encontramos, para dizermos um ao outro aquilo
que pensámos ter, afinal, a vida toda para dizer; aí te
chamo, quando a luz me cega na lâmina do mar, com
lábios que se movem como serpentes, mas sem nenhum
ruído que envenene as palavras: pai, pai. Contam-me

depois que é deste lado da noite que me ouvem gritar
e que por isso me libertam bruscamente do cativeiro
escuro desse sonho. Não sabem

que o pesadelo é a vida onde já não posso dizer o teu
nome - porque a memória é uma fogueira dentro
das mãos e tu onde estás também não me respondes'.

Maria do Rosário Pedreira, in 'Nenhum Nome Depois' 



quinta-feira, 18 de março de 2021

Há estados e Estados!

 

Ontem tive de me dispersar por múltiplos afazeres e faltou-me aquele bocadinho do dia de que gosto muito: sentar-me ao computador, ver alguns blogues amigos e escrever um texto que tantas vezes é sugerido pelo que está ou vive à minha volta. Logo de manhã, um trolha começou a arranjar um passeio esburacado do quintal. O tempo está bom e assim as coisas ficam mais bonitas. Acho que o que fiz foi útil e bom, não por ser nada de especial, mas porque era preciso ser feito, ou fiz com gosto, como assar peixe com batatas, acompanhado de arroz de cenoura, para a minha filha que fazia anos. E comprar-lhe um ramo bonito de flores e ouvir com um sorriso: 'Que bonito, mãe'.

Ontem à noite, no Joker, ouvi a concorrente dizer que uma das coisas que a relaxa é descrever os diferentes estados dos Estados Unidos da América. Achei aquilo bizarro. Melhor seria que fizesse a relação das pequenas coisas boas que lhe aconteceram durante o dia sem se focar diretamente no que a chateou, embora, muitas vezes, seja bom e necessário referi-las porque são humanas e nós somos humanos.

Muitas vezes, a minha mãe refere o rol de tristezas que lhe contaram, que viu, que ouviu, que sentiu... Chego a um ponto que lhe digo: 'Mãe, e o que é que aconteceu de bom?' Pensa um bocadinho e lá se lembra de uma coisita ou outra.

Porém, não sou exemplo de nada nem de otimismo, mas, talvez pela idade, acho que sou um bocadinho mais do que era há uns anos, talvez por ter aprendido a valorizar pequenas coisas que vão alegrando os meus estados de alma. E neste tempo do meu dia, como pude tranquilamente sentar-me ao computador, aproveito para dizer BOM DIA!




terça-feira, 16 de março de 2021

Notícia do meu dia: fui ao cabeleireiro!

 

Ainda estava a ouvir a última comunicação do primeiro ministro sobre as datas do desconfinamento, ou melhor, reabertura, e já mandava uma mensagem à minha cabeleireira para marcação.

Passados uns minutos, tinha o dia e hora marcados e ontem lá fui eu. Tive ainda de esperar uma meia hora fora do salão. Já lá dentro, o telefone não parava de tocar. Na lavagem do cabelo, fechei os olhos porque aqueles momentos para mim são apaziguadores ou até redentores. A menos que a água me caia na cabeça demasiado fria ou demasiado quente. 

Soube-me pela vida. Há dois meses que não sentia o mesmo prazer de estar sentada e sentir que o meu cabelo estava a ficar bem lavado e que ainda por cima ficaria um bocadinho mais bonito, porque não tenho muita paciência para o secar bem. Entrego, quase sempre, essa tarefa ao ar que se respira e que, neste caso, também seca.

Pelo que vi e ouvi, eu fui uma das imensas pessoas que foram ontem ao cabeleireiro ou ao barbeiro. O dia deve ter ficado marcado pela melhoria de visual de milhares e milhares de portugueses e portuguesas (para ser mais atual!). Aos contentores do lixo devem ter chegado sacos e mais sacos de cabelo que a vassoura varreu do chão há muito seco e careca. 

Acho que me vi ao espelho, ao lavar as mãos quando cheguei a casa. Logo depois, vi que a minha filha que não vive cá me tinha mandado fotos. Não sei se era porque me sentia  um pouco mais apresentável, olhando as imagens floridas (ela sabe que eu gosto), o mundo e a vida pareceram-me mais bonitos.


segunda-feira, 15 de março de 2021

Por falar em deixar tudo para trás

 

Já ouvi Carlos Moedas a dizer várias vezes que 'deixou tudo' para se candidatar à Câmara Municipal de Lisboa. Não entendo esse abandono. O que fez está feito e ninguém lho tira. O que estava a fazer e já não faz, porque é candidato à autarquia, é mudança de vida assumida de livre vontade. 

Se ele optasse por um trabalho tipo não remunerado, se se despojasse de tudo para aderir a uma causa, por exemplo de ajuda social, etc. compreenderia que deixasse tudo para trás, o que não é o caso, acho eu.

Pelo que se sabe, uma presidência de Câmara, para mais das mais importantes do país, implica dedicação, trabalho árduo sem horários, mas um serviço público deste teor será sempre assim. Porém, quem o desempenha tem bom salário, regalias, janelas abertas...

Não gosto nada de ver os políticos no papel de vítimas. Eles (nem todos, é claro) são muito úteis à sociedade, mas isto de dizerem que deixam a sua vida para trás, quando se candidatam a um cargo público, é apenas um chamariz de votos. E a vitimização muitas vezes colhe.

Por falar em deixar ou abandonar, embora não tenha nada a ver, gosto muito desta canção de Jacques Brel: 'Ne me quitte pas'. Neste momento, penso que o melhor é deixar o resto para trás.

sábado, 13 de março de 2021

Bem-vinda, quase primavera!

 

'Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
Duma manhã futura'.

Sophia de Mello Breyner

 






sexta-feira, 12 de março de 2021

Um frasco de Bien-Être

 

Quando eu era menina e moça, de longos cabelos muito negros, vi numa revista (julgo que foi na Flama) um concurso de textos. Já não me lembro qual era o tema, mas aderi logo e tenho bem presente o assunto que abordei no pequeno texto que escrevi e enviei. Em jeito de manifesto, discordava do facto de as raparigas não irem estudar porque se considerava que o destino das mulheres era a vida doméstica e esta dispensava estudos. 

Ainda não existia o ensino obrigatório para todos, como, felizmente, viria a acontecer embora muito mais tarde.

Na altura, o meu texto foi selecionado e, como prémio, recebi em casa um frasco de Bien-Être. Senti-me orgulhosa. Até poderia ser reconhecida na rua (nem que fosse só na minha)  pelo cheirinho da água de colónia Bien-Être! Nem sei se ainda continua à venda.

E depois, quando me li na revista, fiquei ainda mais feliz por ser a autora do texto que tinha partilhado sobre aquele assunto que era e  continua a ser muito importante para mim.  Li-o e reli-o. Foi quando reparei no uso do verbo ter. Em vez de 'têm', eu tinha escrito e enviado 'tenhem'. Estava, obviamente, corrigido. 

 

quinta-feira, 11 de março de 2021

Melhor era impossível

 

Está uma belíssima publicação no blogue 'Palavras daqui e dali' com um diálogo fantástico entre uma senhora de 101 anos e várias crianças. Intervindo na sua vez, cada menino ou menina ia pondo questões sobre a vida e até sobre a morte e a tudo a senhora respondia com amor, verdade, delicadeza e sem os infantilizar, sem se queixar, sem se rir das perguntas...

De facto, apesar da idade tão avançada, a senhora parecia ouvir bem e ter as ideias tão arrumadas como arejadas, numa bonita celebração da vida. A senhora do vídeo, se calhar com uma dose de imaginação de minha parte, fez-me lembrar a outra avó da minha neta. Apesar da diferença de idades, encontrei algumas semelhanças no tom de voz, no teor dos diálogos, sendo também comum a língua inglesa.

Há uns tempos, a minha neta pôs-me umas questões para um trabalho de escola: se quando eu era pequena tinha frigorífico em casa e se já havia supermercados.

Ora, a minha resposta foi que não às duas perguntas e expliquei-lhe, de forma breve, como conservávamos os alimentos, assim como lhe falei da primeira vez que tinha visto um supermercado.

No mesmo dia e às mesmas questões, a outra avó, americana e um ou dois anos mais velha do que eu, respondeu que sempre tinha tido frigorífico e sempre vira supermercados onde morava.

Perante estas respostas tão diversas, a minha neta, que tem cinco anos, ficou muito admirada e logo perguntou à mãe se eu era mais velha do que a outra avó, já que não tinha tido coisas a que ela sempre teve acesso.

Sendo sempre diferentes as realidades de cada país e da vida de cada um, não me importava nada de, um dia mais tarde, ter um bocadinho do saber e da lucidez daquela senhora de 101 anos. Até nem era preciso chegar aos três dígitos!

 

 

quarta-feira, 10 de março de 2021

O avental

 

Às vezes, mandavam-lhe vídeos ou histórias que a faziam sorrir ou até mesmo rir às gargalhadas. Outras mensagens eram mais ou menos neutras. A última era sobre o avental e as suas utilidades: proteger a roupa, segurar nas panelas, limpar as mãos ou as carinhas dos filhos, etc.

Como estava nas arrumações, abriu a gaveta onde tinha alguns aventais, dois deles já vinham do tempo anterior ao casamento. Eram coloridos e tinham sido feitos por uma costureira muito habilidosa que morava perto. Um deles tinha uma nódoa que nunca conseguira tirar, noutro viam-se  sinais de ter sido utilizado para pegar em qualquer coisa que esquentava. Mesmo assim, usava-os porque gostava do feitio e das cores. Tinha tido ainda um terceiro avental dessa época, mas um dia, que não foi nada belo dia, deitara-o no contentor da roupa. Usava-o quando houve a maior discussão entre eles.  Logo a seguir, tirou-o e não conseguiu vesti-lo mais, por isso se quis desfazer dele o mais depressa possível. Foi um modo que arranjou de tentar apagar o momento da memória. No entanto, nunca tinha perdido o hábito de usar avental em trabalhos domésticos. E, neste dia, ao lembrar-se desse dia, o avental teve mais uma função: limpar umas lágrimas que não pôde conter.

 

terça-feira, 9 de março de 2021

Um homem à janela

 

Quando eu era pequena, havia várias mulheres que, durante o dia, se punham à janela. Apoiavam os braços no parapeito e repetiam, longamente, os olhares para a direita, para a esquerda, para a direita, para a esquerda... e assim iam sabendo o que se passava na rua, quem passava na rua, como passavam na rua, com quem passavam na rua. Recordo-me que a minha mãe e as minhas tias criticavam muito esse hábito e, como estavam sempre ocupadas nas tarefas da casa, nos lavores ou na costura, diziam estranhar essa prática. Eu achava graça, embora achasse incómodo aquela revisão constante do bocado da rua através dos olhos das mulheres à janela. Mais tarde, viria a novela Gabriela Cravo e Canela, e havia uma personagem - julgo que se chamava Glorinha - que se punha fogosamente à janela em busca de fantasia que não encontrava dentro de casa. Talvez essas mulheres da minha aldeia procurassem, ao seu modo, um pouco de fantasia que, fechada a janela, também se fechava para elas.

Ora, para já, isto não está a condizer com o título: 'Um homem à janela'. Pois não. Ele mora num primeiro andar. Passo lá com alguma frequência e também com frequência o vejo à janela. Responde a quem lhe diz bom dia ou boa tarde, mas alguns vizinhos fazem de conta que não o veem. Talvez por ser novo ou por preconceito, como, se calhar, é o meu, embora não goste de ter preconceitos. Daqui a pouco, tenho de lá passar outra vez. Impossível não olhar para a janela.  Se lá estiver, vou dizer-lhe bom dia.

 

segunda-feira, 8 de março de 2021

Celebrar também é lembrar



Emília Nadal
'Pequena cantiga à mulher
 
Onde uma tem
O cetim
A outra tem a rudeza
Onde uma tem
A cantiga
A outra tem a firmeza
Tomba o cabelo
Nos ombros
O suor pela
Barriga
Onde uma tem
A riqueza
A outra tem
A fadiga
Tapa a nudez
Com as mãos
Helena Almeida
Procura o pão
Na gaveta
Onde uma tem
O vestígio
Tem a outra
A pele seca
Enquanto desliza
O fato
Pega a outra na
Enxada
Enquanto dorme
Na cama
A outra arranja-lhe
A casa'
Maria Teresa Horta

'O mar dos meus olhos 

Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma

E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes

Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os homens...
Há mulheres que são maré em noites de tardes...
e calma'


Sophia de Mello Breyner Andresen

 
'Espaços de Permeio
 
Sonho-te à pressa 
entre coisas a despropósito: 
certos filmes a preto e branco, 
fazer a cama de manhã, 
um livro, 
aquela pausa enquanto o leite ferve
e o olhar se perde, atento. 
Só invadires-me o espaço entre o meu espaço 
à pressa me traz frágil: 
nunca sei se aconteces porque sim,
nem quando me aconteces. 
Um sonho inoportuno entre o meu dia 
E tantas coisas.'
 
Ana Luísa Amaral 
 
 

 Nina Simone - nasceu em 1933 na Carolina do Norte, Estados Unidos da América.
Faleceu em 2003, em França.

 

domingo, 7 de março de 2021

Bom seria que todos pudessem sonhar!

sexta-feira, 5 de março de 2021

Quinquagésimo dia

 

 Diário com vontade de deixar de contar os dias,

 mas com vontade de viver todos os dias.

 

E tanta coisa aconteceu de há cinquenta dias até agora:

 - Os números de óbitos (há quem prefira dizer 'fatalidades') e infetados covid-19 diminuíram em um ou dois dígitos, o que é bastante bom, embora não seja o ideal.

- As magnólias estavam em botão, neste momento já floriram e as folhas vão substituindo as flores.

- Trump estava no poder e já não está, embora queira voltar e tente segurar tentáculos à sua volta.

- As escolas fecharam, mas estará para breve a reabertura. As crianças e os jovens estão ansiosos e os pais também.

- Marcelo terminava o seu mandato e outro está a iniciar.

- Do avião português e a jato, com meia tonelada de droga apreendida no Brasil, ainda não se falava, agora fala-se muito, ainda que se saiba pouco.

- As árvores de fruto estão floridas e há cinquenta dias eram estacas secas ou despidas.

- Rui Rio talvez já tivesse Moedas na cartola, que tirou nos últimos dias.

- A chuva e frio do inverno abundavam e agora a primavera está à porta.

- O campeonato estava ao rubro por causa do leão que não deixou de rugir e de reinar sozinho ao longo deste tempo.

- As lojas fechavam e muitos gritam agora pela sua reabertura porque abrem os bolsos e encontram-nos vazios.

- O turismo ficou pela hora da morte e agora os ingleses anunciam nova vida, sobretudo para o Algarve.

- O papa Francisco não saiu em tempo de pandemia; neste momento, está em visita ao Iraque, país nunca pisado por outros papas.

- As vacinas anti covid-19 eram promessa e ainda causavam receio; agora já vários milhares de pessoas a tomaram, muitos mais a querem e desejam, mas as reservas sabem a pouco.

- ...

E tanta coisa deixou de acontecer no mesmo espaço de tempo.

 

Vou deixar de contar de contar os dias, 

mas gostava de continuar a contar momentos dos meus dias. 

Obrigada.


quinta-feira, 4 de março de 2021

Quadragésimo nono dia

 

Diário com vontade de melhores dias

Sou um ser perfeitamente comum, acho eu, mas há uma coisa em que não devo ser comum: tenho medo de fazer exames médicos. Ou melhor, não me custa fazê-los, custa-me é saber os resultados desses exames. Penso sempre que me vão descobrir doenças. Talvez isto tenha a ver com traços de hereditariedade, ou com uma situação que vivi há muito, muito tempo. Eu tinha uns dezoito anos e coube-me a mim ir ao hospital saber o resultado de um exame do meu pai que, na altura, nem cinquenta anos tinha. Pois, o veredicto foi este: o seu pai tem um tumor maligno no intestino, tem de ser operado e, dada a gravidade, o sucesso não é garantido e que continue a viver também não.

Eu era ainda uma miúda, fiquei sem palavras e, quando cheguei a casa, nem sabia que palavras dizer. No entanto, tudo correu tudo bem e o meu pai ainda viveu mais uns cinquenta anos. Felizmente. O momento é que me ficou gravado.

Desde que me lembro, faço os exames médicos que são necessários, mas depois demoro imenso tempo a ir levantar os resultados, se não puderem vir por mail. Será isto comum? Se calhar, é ou então, sendo eu um ser comum, também aqui há seres mais comuns do que outros.


 Bom fim de tarde para todos - os que têm medo de fazer exames e os que não têm!

quarta-feira, 3 de março de 2021

Quadragésimo oitavo dia


 Diário confiando em melhores dias



Hoje fui muito feliz à volta de quatro livros de Luís Sepúlveda, de que já falei num dos posts anteriores. Colaborei  na fase concelhia, em Gondomar, do Concurso Nacional de Leitura e vi crianças e jovens, do 1º ciclo ao secundário, com o livro aberto, a ler excertos, a argumentar sobre um aspeto da história, o que é maravilhoso, mesmo online. De forma voluntária, todos eles mostravam interesse, empenhamento e amor pelos livros. E a cumplicidade dos professores com os alunos também é fantástica. De facto, quando as redes de bibliotecas escolares e as autarquias trabalham para o bem comum,  esta interação acontece. E saber do desempenho ativo de tantas crianças e jovens, em relação ao saber e à leitura, em muitas regiões do país, leva mesmo a acreditar em melhores dias. Por isso, para mim, foi mesmo um dia feliz.

 

terça-feira, 2 de março de 2021

Quadragésimo sétimo dia

 

Diário à espera de melhores dias


Nota 1. Os novelos que tinha em casa tinham chegado ao fim. Talvez a minha mãe tivesse alguns restinhos nas sacas intermináveis onde guarda tudo que, um dia, pode dar jeito. Logo que pude, comecei a desatar os nós das sacas, procurei, procurei mas só 

via lãs e fazer malha nunca foi o meu forte. Precisava era de novelos de linha, para fazer crochet ao sabor da vontade, do tempo disponível e da imaginação. Perante aquele emaranhado de restinhos de lã, fitas, elásticos e tecidos, perdi a paciência e desisti, para mais uns sacos de papel já estavam quase a rasgar. Pronto, o melhor era ir ao supermercado. Fui ao Continente, porque há uns tempos tinha visto novelos na prateleira das agulhas, alfinetes, carrinhos de linhas... Quando entrei, dirigi-me logo lá. As linhas eram a minha prioridade. Oh, não havia novelos, o que foi confirmado por uma funcionária sempre em andamento. Regressei então a casa com pão, yogurtes, mas sem as desejadas linhas para continuar o trabalho de mãos já começado. Sim, os novelos, uns simples novelos, faziam-me falta. E foi quando me lembrei da senhora que faz bordados, rendas e também vende linhas. E se lhe ligasse? E se lhe pedisse que me vendesse as linhas? O pior era se alguém via e fazia queixa dela. Coitada, ainda era multada por minha causa. Não, o melhor era não ligar e esquecer as linhas, mas que me faziam falta lá isso faziam. Não imaginava era ouvir da minha mãe no dia seguinte:  Olha os novelos de linha que estavam caídos junto às sacas!


Nota 2. Gosto imenso de retrosarias. Com novelos e linhas de todas as cores, botões de todas as formas e feitios, fitas, galões... Na rua das Flores, no Porto, há uma retrosaria e, sempre que lá passava - falo no passado porque há um ano que não passo lá - paro sempre para ver a harmonia da montra e da loja, com muitas coisas, se calhar inúteis e desnecessárias, mas que regalam os olhos. Ah, e há também tecidos de todos os desenhos e espessuras para trabalhos de patchwork. É um lugar que quero revisitar quando houver desconfinamento. E se a manhã ou a tarde estiver fria, há um pouco mais acima um pequeno espaço  com esplanada onde o chocolate quente é de regalar a alma.


Nota 3. 'O piano', de Jane Campion, é um filme de que gosto imenso. A história, as  paisagens, a música tornam aquele trabalho encantatório. Recordo-me da casa da protagonista, situada, julgo, na Nova Zelândia, onde não faltam linhas de múltiplas cores, como num quarto de costura da minha infância. Claro que no filme há outros fios violentos, mas, felizmente, vence a coragem, o entendimento e o amor que vão tecer uma nova vida.


Nota 4. E partilho um excerto da música e do filme.