(Entre o antes e o depois)
Naquela altura, eu era bastante solitária, porque os adultos à minha volta não tinham tempo para ouvir ou falar pausadamente. Éramos cinco irmãos e a família andava sempre atarefada. Eu era a segunda filha mais velha e tinha também de olhar pelos meus irmãos mais pequenos. Não havia tempo para perguntas e respostas, para dúvidas e esclarecimentos, para afetos ou ternuras. Talvez por isso não partilhei a minha tristeza causada por esta graçola de Adélia. Não disse a ninguém nem à minha irmã do meio, com quem me entendia muito bem, porque ela estava a ajudar a minha tia. Lembrei-me de ir ter com elas, mas acabei por não ir, porque as imaginei tão ocupadas a bordar que ouviria com certeza pela voz da minha tia: - 'Deixa-nos, porque tenho prazo de entrega e gosto de cumprir'.
Foi mais um momento em que me senti um ser invisível. Como se falasse mas ninguém me visse nem ouvisse e rasguei o desenho, porque não haveria, por certo, ninguém disponível para me ajudar, a não ser para me dizer: 'Deixa lá isso, não ligues, isso passa!'
E eu, Maria dos Anjos, fui crescendo e, vejo agora, era até uma jovem bonita. Foi quando o Manuel começou a sorrir-me e a aproximar-se de mim. Um dia, convidou-me para um baile de garagem, com muito calor e muitos slows. Quando veio o casamento, eu tinha dobrado os vinte anos há pouco. Ganhara uma companhia. O Manuel chamava-me Maria dos Anjos com todas as letras. Era amor. A minha solidão foi-se esbatendo. Tinha com quem falar. Tinha quem me ouvisse. Manuel começou então a chamar-me 'meu anjo da guarda', mas a expressão não me agradava, porque aprisionava, lembrava-me o distante domingo da procissão em que me vesti de anjo, obrigada pela minha mãe, com receio do olhar trocista de Adélia. Aquele tempo havia ficado de tal modo inculcado na minha memória que qualquer estímulo me fazia revivê-lo. Comecei a mostrar desagrado por ouvir tantas vezes 'meu anjo da guarda'.
(Por mim, gostava de contar um pouco mais).