Ontem de manhã, veio uma única utente na repartição. À chegada, perguntou-me com alguma agressividade se tinha de tirar a senha. Eu disse-lhe que não, porque não havia mais ninguém. Olhou à volta como que amedrontada. Perguntei-lhe qual era o assunto e ela começou a tossir. Instintivamente, afastei- me ainda mais do que é exigido. Ela pôs o cotovelo à frente do rosto e começou a chorar.
Fiquei sem saber o que fazer, enquanto a minha colega, sem dizer nada, espalhava spray desinfetante no balcão.
A utente, mulher de uns 40 anos maltratados, disse, com crescente agressividade, que não estava infetada, que tinha feito teste e deu negativo. E quem se julgava a funcionária para vir logo desinfetar vírus que não tinha.
- Se calhar, é você que os tem na sua cabeça.
Vi-me na necessidade de intervir.
- Vamos, então, tratar do seu assunto.
A utente continuava voltada para a minha colega.
- Queria ver se fosse uma pessoa chique, se você vinha logo limpar. E sem uma palavrinha nem um olhar. Como se eu fosse um monte de vírus. Estou farta de ser humilhada dentro e fora de casa. Venho aqui, desinfetam; vou à polícia queixar-me, dizem-me que desinfete por enquanto!!!
De repente, a utente saiu, batendo com a porta e sem dizer o assunto que a tinha trazido ali.
À noite, ouvi notícias sobre o aumento da violência doméstica em tempo de confinamento social e senti vontade de falar com a utente. Se ela voltar.
quarta-feira, 8 de abril de 2020
terça-feira, 7 de abril de 2020
O solitário da rua - 3a f.
Durante muito tempo, fui o solitário da rua. Os dias da semana eram passados casa-trabalho/trabalho-casa. Dizia bom dia ou boa tarde aos vizinhos e poucas palavras trocávamos porque andava cada um na sua vida.
Um grupo de vizinhas passava longo tempo à porta a conversar, depois da casa limpa, roupa lavada e passada... Isto imaginava eu, porque, apesar de ser o solitário da rua, também dava comigo a recriar algumas vidas.
Quando eu passava, sorriam-me, boa tarde, sr António, como vai, Sr António, e, após uns momentos de parado silêncio, retomavam o falar alheio, repetindo os gestos e as palavras interrompidos à minha passagem.
Sou uma espécie de ave rara que vive na rua. Vivo sozinho, trato da casa, do jardim e do quintal e não recebo muitas visitas. Agora nem visito ninguém nem ninguém cá vem, porque o tempo é de pandemia e todos os tornámos solitários da nossa rua.
Tenho cumprido o meu horário na repartição, mas, quando regresso a casa, não tenho visto as vizinhas, o que me faz sentir saudades. Talvez tenham criado um grupo doWhatsapp. Mesmo assim, a quarentena deve estar a custar-lhes bastante.
Os fins de tarde eram sagrados para mim, depois de ter respondido a tantas perguntas, ajudado a preencher papéis, ouvido a máquina a chamar pelo número da senha dos utentes, tentado acalmar os mais infelizes e exaltados...
Agora faz-me impressão ver a repartição vazia, a rua vazia. E não ouvir boa tarde, Sr António; como vai, Sr António...
Quando passar, vou olhar para a janela. Se alguma delas lá estiver, vou acenar-lhe.
Um grupo de vizinhas passava longo tempo à porta a conversar, depois da casa limpa, roupa lavada e passada... Isto imaginava eu, porque, apesar de ser o solitário da rua, também dava comigo a recriar algumas vidas.
Quando eu passava, sorriam-me, boa tarde, sr António, como vai, Sr António, e, após uns momentos de parado silêncio, retomavam o falar alheio, repetindo os gestos e as palavras interrompidos à minha passagem.
Sou uma espécie de ave rara que vive na rua. Vivo sozinho, trato da casa, do jardim e do quintal e não recebo muitas visitas. Agora nem visito ninguém nem ninguém cá vem, porque o tempo é de pandemia e todos os tornámos solitários da nossa rua.
Tenho cumprido o meu horário na repartição, mas, quando regresso a casa, não tenho visto as vizinhas, o que me faz sentir saudades. Talvez tenham criado um grupo doWhatsapp. Mesmo assim, a quarentena deve estar a custar-lhes bastante.
Os fins de tarde eram sagrados para mim, depois de ter respondido a tantas perguntas, ajudado a preencher papéis, ouvido a máquina a chamar pelo número da senha dos utentes, tentado acalmar os mais infelizes e exaltados...
Agora faz-me impressão ver a repartição vazia, a rua vazia. E não ouvir boa tarde, Sr António; como vai, Sr António...
Quando passar, vou olhar para a janela. Se alguma delas lá estiver, vou acenar-lhe.
segunda-feira, 6 de abril de 2020
A janela aberta
Eu tinha pensado em continuar a minha rotina durante a quarentena. Levantar-me às 8 h, tomar o pequeno almoço - agora com mais calma - tratar da casa, e depois fazer coisas de que gosto, como ler, escrever um pouco, etc.
Ora, uma prática que sempre tive foi a de abrir as janelas quando me levanto.
Em dias mais frios, ou de um pouco mais de preguiça, às vezes, o meu propósito adormece e as janelas ficam fechadas também até mais tarde.
Como o tempo é de grande crise pandémica, os vizinhos estão mais atentos uns aos outros, sobretudo em ruas e lugares em que todas as pessoas se conhecem.
Por isso, quando demoro a abrir as janelas, recebo um telefonema pra ver se está tudo bem.
Noutra altura, seria incómodo; nestes dias, sabe bem.
E ficamos todos ainda mais iguais e mais humanos. E mais fortes na nossa fragilidade.
domingo, 5 de abril de 2020
'Afinal, gosta de mim!'
Viviam juntos há dezenas de anos. Comiam à mesma mesa. Dormiam na mesma cama. Viviam as mesmas preocupações familiares.
Porém, sempre sentiram ambos bastante solidão. Cada um à sua maneira.
Ela, em voz alta; ele, em silêncio. Ela, tentando preencher vazios; ele, parecendo indiferente.
Ela, exteriorizando a falta que lhe fazia ouvir palavras de amor e partilhando-o com pessoas em quem confiava; ele, guardando as coisas mais íntimas para si porque havia certas confianças que nunca se habituou a trocar com ninguém.
Veio a quarentena e passaram a sair muito menos.
A ele, sobrou mais tempo para ruminar tristezas. Ela ficou com mais tempo para sentir ainda mais a falta de um mimo, de uma palavra amorosa, de um olhar mais terno, de um sorriso mais cúmplice, de um gesto de valorização.
Ele nunca tinha gostado dela - concluía.
Ela começou a ter tosse. Muita tosse. Teve de ser internada.
Ele ligava-lhe várias vezes ao dia. E chorava mais do que falava.
Ela dizia-lhe que estava melhor e que em breve ia ter alta.
Ele respondia que era o que mais desejava.
E ela começou a dizer para si própria:
- Afinal, ele gosta de mim!
Porém, sempre sentiram ambos bastante solidão. Cada um à sua maneira.
Ela, em voz alta; ele, em silêncio. Ela, tentando preencher vazios; ele, parecendo indiferente.
Ela, exteriorizando a falta que lhe fazia ouvir palavras de amor e partilhando-o com pessoas em quem confiava; ele, guardando as coisas mais íntimas para si porque havia certas confianças que nunca se habituou a trocar com ninguém.
Veio a quarentena e passaram a sair muito menos.
A ele, sobrou mais tempo para ruminar tristezas. Ela ficou com mais tempo para sentir ainda mais a falta de um mimo, de uma palavra amorosa, de um olhar mais terno, de um sorriso mais cúmplice, de um gesto de valorização.
Ele nunca tinha gostado dela - concluía.
Ela começou a ter tosse. Muita tosse. Teve de ser internada.
Ele ligava-lhe várias vezes ao dia. E chorava mais do que falava.
Ela dizia-lhe que estava melhor e que em breve ia ter alta.
Ele respondia que era o que mais desejava.
E ela começou a dizer para si própria:
- Afinal, ele gosta de mim!
Quarentena cinéfila - Medeia filmes
A Medeia filmes está a disponibilizar, gratuitamente, 3 filmes por semana que podem ser vistos no seu site.
De hoje até à próxima 3a f, está disponível Rouge, da trilogia das cores Bleu, Blanc, Rouge, de Kieslowski.
Vale a pena ver ou rever este filme de 1994. Um tema presente é a fraternidade, um dos emblemas da bandeira francesa, simbolizada nas três cores.
De hoje até à próxima 3a f, está disponível Rouge, da trilogia das cores Bleu, Blanc, Rouge, de Kieslowski.
Vale a pena ver ou rever este filme de 1994. Um tema presente é a fraternidade, um dos emblemas da bandeira francesa, simbolizada nas três cores.
E hoje, pelo menos aqui no grande Porto, o tempo chuvoso está propício a umas duas horinhas cinéfilas. Para além disso, a quarentena passa melhor também com um pouco de boa ficção.
sábado, 4 de abril de 2020
Eu medito, tu me ditas...
Sim, como estou de quarentena e os contactos sociais têm de ser evitados, procurei, então, um vídeo que ensinasse a fazer meditação. Felizmente não me falta que fazer, mas parar um bocadinho mal não faz. Pelo contrário.
É curioso que, há bastantes anos, falar de meditação era sinónimo de oração, geralmente, numa igreja.
Porém, mudam-se os tempos e mudam-se as palavras, havendo mudanças sociais rápidas e muitas vezes imprevisíveis. Há um mês, ainda não excluía a hipótese de ir a Londres visitar a família e agora essa ideia seria logo rejeitada.
Mas voltemos à meditação, uma prática tão atual de bem-estar.
Abri o vídeo, sentei-me no sofã de costas bem direitas e toca a seguir as instruções pela voz e pelos gestos melodiosos de uma brasileira bastante zen, a começar logo pela camisola de malha branca que usava.
Começou por dizer que era domingo, um dia propício à meditação. Hoje é sábado, mas, claro, pouca diferença faz do domingo ou de qualquer outro dia de semana.
Mas o que pude aprender?
Sobretudo que importa saber respirar: inspirar, expirar, inspirar, expirar...
Durante algum tempo, pratiquei yoga e os exercícios de respiração eram também prática regular.
Seja como for, vou repetir, logo que possa e tenha vontade, os movimentos que vi e ouvi.
E quem não precisa de relaxamento nesta altura da quarentena?
É curioso que, há bastantes anos, falar de meditação era sinónimo de oração, geralmente, numa igreja.
Porém, mudam-se os tempos e mudam-se as palavras, havendo mudanças sociais rápidas e muitas vezes imprevisíveis. Há um mês, ainda não excluía a hipótese de ir a Londres visitar a família e agora essa ideia seria logo rejeitada.
Mas voltemos à meditação, uma prática tão atual de bem-estar.
Abri o vídeo, sentei-me no sofã de costas bem direitas e toca a seguir as instruções pela voz e pelos gestos melodiosos de uma brasileira bastante zen, a começar logo pela camisola de malha branca que usava.
Começou por dizer que era domingo, um dia propício à meditação. Hoje é sábado, mas, claro, pouca diferença faz do domingo ou de qualquer outro dia de semana.
Mas o que pude aprender?
Sobretudo que importa saber respirar: inspirar, expirar, inspirar, expirar...
Durante algum tempo, pratiquei yoga e os exercícios de respiração eram também prática regular.
Seja como for, vou repetir, logo que possa e tenha vontade, os movimentos que vi e ouvi.
E quem não precisa de relaxamento nesta altura da quarentena?
quinta-feira, 2 de abril de 2020
Não sei se terei paciência!
Quando eu era miúda, parece que era muito sossegada e ficava longo tempo a fazer roupinha para as bonecas. O tempo de uma criança na aldeia era muito pouco volumoso em termos de variedade de solicitações e brincadeiras.
Com a passagem do tempo, deixei de gostar de fazer costura e a paciência passou a ser mais limitada. Havia sempre tanta coisa a fazer ou à espera de ser feita!
Agora, com este interregno que ninguém tinha vivido, há mais tempo disponível, ainda que tenha de ser preenchido de modo mais racional e menos livre.
E, em muitos casos, voltamos a ter mais paciência ou, então, a sentir a necessidade de a ter. Talvez por isso, hoje de manhã procurei e estive a ver vídeos de meditação. Defini logo um critério: não poderiam ser demorados e teriam de se destinar a principiantes.
Gostei de dois que vi: simples e claros, mas ainda não os pus em prática. Agora vou ler um bocadinho. Talvez amanhã faça a primeira tentativa. Procurarei ter paciência para ter cada vez mais paciência.
Com a passagem do tempo, deixei de gostar de fazer costura e a paciência passou a ser mais limitada. Havia sempre tanta coisa a fazer ou à espera de ser feita!
Agora, com este interregno que ninguém tinha vivido, há mais tempo disponível, ainda que tenha de ser preenchido de modo mais racional e menos livre.
E, em muitos casos, voltamos a ter mais paciência ou, então, a sentir a necessidade de a ter. Talvez por isso, hoje de manhã procurei e estive a ver vídeos de meditação. Defini logo um critério: não poderiam ser demorados e teriam de se destinar a principiantes.
Gostei de dois que vi: simples e claros, mas ainda não os pus em prática. Agora vou ler um bocadinho. Talvez amanhã faça a primeira tentativa. Procurarei ter paciência para ter cada vez mais paciência.
quarta-feira, 1 de abril de 2020
Dia 1 de abril: mentiras mil?
Raramente me recordo das anedotas que oiço. Só me lembro delas quando as volto a ouvir, sobretudo se têm piada.
Passa-se o mesmo com os enganos do dia 1 de abril: desde ser convidada a ir à janela para ver alguma coisa improvável no céu ou na rua, já devo ter caído muitas vezes que nem patinho, mas de poucas coisas me lembro.
Uma das patranhas que ainda tenho presentes foi ouvir que a Apple ia mudar o símbolo para uma pera, alterando também o logotipo. E houve quem acreditasse!!!
Um dia, ligaram-me logo de manhã cedo, dizendo que tinha caído um nevão durante a noite e que estava tudo coberto de neve.
Como no dia anterior tinha estado bom tempo, lembrei-me que era 1 de abril, não acreditei e nem sequer fui verificar.
Uns minutos mais tarde, abri a porta e lá estava ela, a tal neve abundante que tinha caído. Com a verdade me enganas - concluí eu.
E se o mesmo se passasse se alguém dissesse que já estamos em maio ??!!
Seria bom seria, mas o vírus não engana!
Mas será que se engana?!
Passa-se o mesmo com os enganos do dia 1 de abril: desde ser convidada a ir à janela para ver alguma coisa improvável no céu ou na rua, já devo ter caído muitas vezes que nem patinho, mas de poucas coisas me lembro.
Uma das patranhas que ainda tenho presentes foi ouvir que a Apple ia mudar o símbolo para uma pera, alterando também o logotipo. E houve quem acreditasse!!!
Um dia, ligaram-me logo de manhã cedo, dizendo que tinha caído um nevão durante a noite e que estava tudo coberto de neve.
Como no dia anterior tinha estado bom tempo, lembrei-me que era 1 de abril, não acreditei e nem sequer fui verificar.
Uns minutos mais tarde, abri a porta e lá estava ela, a tal neve abundante que tinha caído. Com a verdade me enganas - concluí eu.
E se o mesmo se passasse se alguém dissesse que já estamos em maio ??!!
Seria bom seria, mas o vírus não engana!
Mas será que se engana?!
segunda-feira, 30 de março de 2020
Arcos-íris e ursinhos
Em diferentes países, estão a aparecer arcos-íris, mostrados em muitas janelas. São pintados por crianças que também escrevem mensagens bonitas e positivas.
Enquanto os fazem, passam melhor o tempo, divertem-se e estimulam as pessoas para que fiquem em casa. Ao mesmo tempo, transmitem uma mensagem de esperança de que vale a pena a quarentena e que há sempre coisas boas que podem ser feitas.
Em Londres, a Clarinha também já os desenhou.
Enquanto os fazem, passam melhor o tempo, divertem-se e estimulam as pessoas para que fiquem em casa. Ao mesmo tempo, transmitem uma mensagem de esperança de que vale a pena a quarentena e que há sempre coisas boas que podem ser feitas.
Em Londres, a Clarinha também já os desenhou.
Também em Londres, em diferentes janelas, há ursinhos de peluche para que os meninos os possam ver das suas próprias janelas ou em passeios curtinhos dados com os pais.
São inúmeros os gestos simples e eficazes em tempos tão complexos.
É que, no fundo, somos sensíveis âs coisas simples e essenciais que estamos a aprender a valorizar mais.
Necessariamente.
É que, no fundo, somos sensíveis âs coisas simples e essenciais que estamos a aprender a valorizar mais.
Necessariamente.
Há vento e vento em março a acabar
Logo de manhãzinha, comecei a ouvir o vento. Forte e invernoso. Março marçagão de manhã inverno à tarde verão.
Quando eu era miúda, apesar de viver numa aldeia com árvores, havia uma muito alta que nos indicava o sentido do vento e, logo, o tempo que iria fazer.
Quando havia muito vento, soprasse ele do Norte ou do Sul, o pátio da casa enchia-se de folhas das árvores que ajudávamos a minha mãe a varrer, logo que a fúria do vento amainava.
Julgo que acontecia muitas vezes em março, em que o vento soprava tal como hoje.
Só que naquela altura ninguém queria que já fosse maio.
É que ainda é março, final de março. Quem dera que já fosse abril. Para não dizer maio.
Mas voltemos ao vento.Quando eu era miúda, apesar de viver numa aldeia com árvores, havia uma muito alta que nos indicava o sentido do vento e, logo, o tempo que iria fazer.
Quando havia muito vento, soprasse ele do Norte ou do Sul, o pátio da casa enchia-se de folhas das árvores que ajudávamos a minha mãe a varrer, logo que a fúria do vento amainava.
Julgo que acontecia muitas vezes em março, em que o vento soprava tal como hoje.
Só que naquela altura ninguém queria que já fosse maio.
domingo, 29 de março de 2020
Desculpa, querido computador
Querido computador,
Estou necessariamente em casa porque o tempo é de coronavírus que impede aproximações físicas. Mas de ti podia aproximar-me à vontade. Para além de muitas coisas que diariamente via através da tua janela, guardavas as pequenas histórias que gosto de escrever, reescrever, modificar, acrescentar... Assim, a quarentena era bem mais leve.
Mas, sabes, com tantos apelos à desinfeção das superficies que utilizamos, ontem deixei cair sobre ti demasiadas gotas de produto de limpeza. E não gostaste mesmo nada do excesso, ficaste amuado e bloqueaste. Como que a dizer-me que devia ser mais gentil e cuidadosa. E que lá por se ter de desinfetar as superfícies, maçanetas, mãos, etc., os olhos têm de ser preservados.
Estou necessariamente em casa porque o tempo é de coronavírus que impede aproximações físicas. Mas de ti podia aproximar-me à vontade. Para além de muitas coisas que diariamente via através da tua janela, guardavas as pequenas histórias que gosto de escrever, reescrever, modificar, acrescentar... Assim, a quarentena era bem mais leve.
Mas, sabes, com tantos apelos à desinfeção das superficies que utilizamos, ontem deixei cair sobre ti demasiadas gotas de produto de limpeza. E não gostaste mesmo nada do excesso, ficaste amuado e bloqueaste. Como que a dizer-me que devia ser mais gentil e cuidadosa. E que lá por se ter de desinfetar as superfícies, maçanetas, mãos, etc., os olhos têm de ser preservados.
E as teclas são os teus olhos, eu sei, e devia ter-lhes prestado mais atenção. Se calhar, esqueci o que sempre ouvi: com os olhos não se brinca. Acredita que não quis brincar, mas apenas manter-te limpo para podermos comunicar ainda melhor.
Vou deixar-te em paz por uns dias a ver se os teus olhos secam e se me olhas de novo, com alegria e saúde, para guardares as minhas palavras e eu poder ver muitas imagens através da tua janela.
Se, mesmo com o descanso, não recuperares, tenho mesmo que tratar de ti, mas terá de ficar para mais tarde, porque, neste momento, qualquer urgência é problemática.
Agora, não é para te substituir, mas estou a utilizar o tablet. Sabes perfeitamente o que significas para mim e que 'isto' não é a mesma coisa.
Aceita o meu pedido de desculpas e compreende que os tempos vão difíceis, por isso de ti, querido computador, espero e desejo amiga compreensão. E que em breve possamos comunicar. Se possível, durante a quarentena, para que o bom calendário apareça em todas as janelas.
sábado, 28 de março de 2020
Sem sombra de dúvida!
Ontem, neste mesmo espaço, voltei a pôr um texto que já tinha partilhado há muito tempo.
Lembrei-me dele, talvez à espera de um pouco de imaginação para o continuar, embora as minhas 'habilidades' de escrita se estendam mais para textos de conteúdo mais simples.
Hoje, porém, uma amiga ligou-me a estranhar logo o título do texto.
- 'Casa assombrada'? Perguntava ela, nesta altura do campeonato? Estava à espera de coisas mais leves!!
Sim, realmente, pôr um post com o título de 'Casa assombrada', em tempo de Covid 19, não foi a melhor ideia.
Por isso, já o eliminei. Pra pior já basta assim!!!
Talvez um dia o continue. À minha maneira.
Notas felizes de pessoas (e não só) que querem também ser felizes:
1 - Um dos jornais de hoje dá conta de uma professora de Educação Física que, durante a tarde, vai para o jardim do seu bairro fazer exercícios para os vizinhos. O marido põe música e as pessoas, de todas as idades, vêm para as suas varandas e seguem os exercícios da professora.
2 - Há uma rua, onde as pessoas pouco se encontravam, apesar de serem vizinhas. Agora, de vez em quando, vêm à janela, acenam, atiram beijinhos, sorriem e desejam saúde.
3 - A Castanha, a minha cadela, continua a sentar-se junto do portão. Se está frio, procura o sol; se está calor, senta-se à sombra. Parece-me que anda um bocadinho mais triste porque há muito pouca gente na rua.
Hoje pareceu-me ver nos olhos dela um sinalzito de esperança que melhores dias virão.
quinta-feira, 26 de março de 2020
Era uma vez uma menina e algumas perguntas que fazia
Era uma vez uma menina que todos os dias saía.
Durante a semana, logo de manhã, ia para a escolinha, gostava das aulas, porque estava com a professora, com os coleguinhas e podia aprender e partilhar muitas coisas. E também gostava, se calhar ainda mais, dos intervalos porque brincava, corria, saltava... com os outros meninos que também brincavam, corriam, saltavam...
Ao fim da tarde, ainda ia muitas vezes com o pai ou com a mãe, ao parque infantil perto de casa. E andava no escorrega e no baloiço e jogava à macaca, à bola...
E, quando a tarde já estava quase a dizer adeus, ainda queria ficar mais um bocadinho, sobretudo se chegavam ao parque outros meninos ou meninas que ela conhecia.
Ao fim de semana, saía quase sempre com os pais para irem a um parque muito bonito e muito grande, onde podia correr, brincar, comer um gelado, ver as flores e os pássaros e as árvores e muita gente feliz com piqueniques sobre a relva...
E ia muitas vezes em grupo: amigos dos pais que tinham filhos que também eram seus amigos.
E, sem haver soldados na rua, começou a ouvir falar de uma guerra com armas que ninguém via mas que obrigavan as pessoas a ficarem em casa.
Sem compreender muito bem o que se passava, embora os pais tentassem explicar-lhe, a menina deixou de sair todos os dias e passou a ficar em casa.
E os dias ficaram estranhos e muito fechados. Para os pais, mas sobretudo para a menina.
E a menina perguntava muitas vezes por que não podiam ir ao parque, por que não podiam convidar as amigas para brincarem com ela em casa e, como lhe custava compreender as respostas, começava a chorar. E a fazer birras.
E dizia que não queria fazer mais desenhos, nem escrever mais vogais e consoantes, nem fazer mais números, nem construir mais legos, nem ouvir mais histórias.
E que queria mirtilos mas já não havia em casa. E yogurtes que tinham acabado. E cookies diferentes dos do pacote...
E a menina, através da janela, via os pássaros a voar. E a mãe ou o pai aproveitavam para cantar uma canção, ou para inventar uma história, mas a menina pouco ouvia.
De repente, a menina pegou numa folha, nos lápis de cor e desenhou uma gaiola.
Sem ninguém nem pássaro dentro.
Ficou a olhar a gaiola e perguntou à mãe:
- Quantos dias faltam para irmos ao parque?
- Quantos dias faltam para irmos ao parque?
quarta-feira, 25 de março de 2020
Em abril, esperanças mil!
Gostei sempre de poder estar mais tempo em casa. Ter tempo para estender roupa ao sol, tirar ervas dos vasos ou dos canteiros, ir ao quintal, ver as camélias floridas...
Fazer isto, sem pensar no passar das horas e nas saídas urgentes para coisas às vezes urgentes mas nem sempre, embora nos parecessem sempre urgentes.
E poder ler mais páginas seguidas de um livro. E escrever algumas histórias que ponho em pastas à espera que alguma luz as ilumine. E arrumar livros e papeladas que se vão amontoando à espera de dias de mais organização.
Agora, estou o mais possível em casa e, felizmente, posso fazer algumas destas coisas, mas não é a mesma coisa, apesar de achar cada vez mais que temos de nos adaptar sempre a novas situações.
Muitos de nós podem e devem fazê-lo. Por nós e pelos outros.
Ainda que os dias, que habitualmente chegam ao fim tão depressa, agora demorem a passar.
Quantos dias faltam até meados de abril, o mês das águas mil? É a questão recorrente.
Pode continuar o provérbio, mas, como tanta coisa mudou nas últimas semanas, quero pensar noutra possibilidade:
Em abril, esperanças mil!
Fazer isto, sem pensar no passar das horas e nas saídas urgentes para coisas às vezes urgentes mas nem sempre, embora nos parecessem sempre urgentes.
E poder ler mais páginas seguidas de um livro. E escrever algumas histórias que ponho em pastas à espera que alguma luz as ilumine. E arrumar livros e papeladas que se vão amontoando à espera de dias de mais organização.
Agora, estou o mais possível em casa e, felizmente, posso fazer algumas destas coisas, mas não é a mesma coisa, apesar de achar cada vez mais que temos de nos adaptar sempre a novas situações.
Muitos de nós podem e devem fazê-lo. Por nós e pelos outros.
Ainda que os dias, que habitualmente chegam ao fim tão depressa, agora demorem a passar.
Quantos dias faltam até meados de abril, o mês das águas mil? É a questão recorrente.
Pode continuar o provérbio, mas, como tanta coisa mudou nas últimas semanas, quero pensar noutra possibilidade:
Em abril, esperanças mil!
terça-feira, 24 de março de 2020
Li no Expresso Curto e gostei muito. Quem não gosta(ria)?
Hoje o Expresso Curto é escrito por Germano Oliveira - editor online.
Do que li, destaco o seguinte que quero partilhar.
Assim, podemos proteger-nos ainda mais deste pesadelo,
pensando na maravilha que será o pós-pesadelo.
'...pedi ao meus amigos que me dissessem o que mais querem fazer no pós-quarentena, reivindiquei-lhes uma frase, “uma coisa curta mas forte”, e o que eu ando a ler e aqui exponho são os meus amigos, a melhor literatura da minha vida, e isto é o que eles vão cumprir imediatamente depois de vencermos seja lá o que for que está em curso:
Quero abraçar pais e irmãos, quero uma cerveja gelada na praia, quero voltar a respirar maresia e perder o medo do abismo;
Abraçar a minha mãe, o meu pai e a minha irmã. Com a força com que nunca os abracei;
Abraçar pessoas. Família, amigos, colegas, talvez até pessoas random;
Abraçar alguém;
Quero que a minha casa seja assaltada pelos meus, beijá-los e abraçá-los infinitamente;
Demorar-me lá fora. Viver como se todo os dias fossem uma manhã de sábado;
Quero ir para a praia e ficar a olhar para o mar;
Voltar a abraçar a minha neta;
Ir de Lisboa ao Porto a pé;
O que eu mais quero fazer no pós-apocalipse é chegar à conclusão de que não aprendemos nada com isto;
Abraçar e beijar o Miguel;
Abraçar e beijar, rir-me sem pôr a mão à frente da boca num jantar cheio dos meus;
Quero voltar a olhar para o mundo sem ter medo. Que é o que sinto neste momento quando me cruzo seja lá com quem for. E é um sentimento horrível, descontrolado, estúpido;
quero voltar a beijar as lágrimas da miúda e dizer-lhe que está tudo bem: já não caem por medo, é alegria. quero abraçar os meus pais e fingir que não perdemos tempo. quero ser inconsciente com os amigos de sempre e com os amigos que chegaram há dois dias. quero beber e cantar na rua. seguir sem retrovisor, ser sem me apertarem o pescoço;
Beber. O meu vinho acabou de acabar;
Abraçar e olhar todos nos olhos. Tê-los comigo por inteiro;
Levar a minha filha ao parque, ao maior de Lisboa. O do Alvito;
Abraçar-te, minha joia, meu amor, meu calor de quarentena;
A primeira coisa que faria seria um jantar com as minhas pessoas, mesmo que num sítio barulhento, com vinho de pressão servido num jarro mal amanhado e um prato de comida sensaborona e provavelmente oleosa. Lá no fundo, e porque a insatisfação com o presente está na natureza do ser humano, sei que iria reclamar com a falta de cuidado do serviço, irritar-me-ia com os tiques daquele amigo mais maniento e juraria que não mais tornaria àquele lugar. Mas não ia estar a pensar em tudo o que se passou, comigo e com o país, entre o momento em que escrevo e esse jantar. Creio que é isso que quero ter: um pretexto para ter a certeza de que tudo já passou;
Sentir um beijo na cara da minha mãe e apertá-la num abraço;
Dar abraços;
Ir a um concerto com amigos, abraçá-los, sentir-me pequeno no meio da multidão e encontrar conforto na minha pequenez, porque ninguém é sozinho;
Render-me (ao contacto e não à distância);
Depois de o caos acabar, e pensando que provavelmente já vamos estar no verão, quero sentar-me a beber vinho branco gelado com os meus melhores amigos numa noite em que até a brisa seja quente;
Abraçar a minha mãe com muita força, cheirar o ar do verão à noite, ir a Fátima, beber às gargalhadas com os meus amigos à volta da mesma mesa.
Este país vai acabar todo abraçado, alcoolizado e aos beijos depois disto, é uma emergência ficarmos nesse estado triunfante: tenho uma amiga, na verdade não é uma amiga mas um planeta, que está a escrever um diário do seu isolamento, eu li partes e um dos dias acaba assim: “Estamos a ganhar em amor”.
Tenha um bom dia'.
Mais palavras para quê?
Felizmente, também tenho bons grupos de Whatsapp.
Depois do pesadelo, quero dar-vos a todos abraços.
Celebrar ainda mais a família, a amizade
e tantas coisas boas que nos rodeiam e que pareciam invisíveis!
segunda-feira, 23 de março de 2020
Li hoje no Expresso Curto
"Que
a quarentena não seja só um violento recurso forçado, do qual vemos
apenas os aspetos negativos. Este pode ser o momento para irmos ao
encontro daquilo que perdemos; daquilo que deixamos sistematicamente por
dizer; daquele amor para o qual nunca encontramos
nem voz nem vez; daquela gratuidade reprimida que podemos agora
saborear e exercer",
José Tolentino Mendonça, no ensaio "Redescobrir o poder da esperança", publicado no passado sábado na revista do Expresso.
José Tolentino Mendonça, no ensaio "Redescobrir o poder da esperança", publicado no passado sábado na revista do Expresso.
domingo, 22 de março de 2020
No tempo em que se saía ao domingo...
... o mar ficava mais próximo, havia mais sol nas esplanadas, os jornais traziam notícias mais diversas, as crianças brincavam à vontade com os mesmos objetos, os livros eram lidos e partilhados, os telemóveis utilizados por diferentes mãos, as pessoas abraçavam-se quando se encontravam, os restaurantes estavam abertos e cá fora cheirava a comida quente, as famílias visitavam-se e às vezes até se esqueciam de lavar as mãos, ofereciam-se presentes sem receio do vírus que lhes podia vir agarrado e logo transmitido...
No tempo em que se saía ao domingo, o domingo era diferente dos outros dias e não como outro dia qualquer.
No tempo em que se saía ao domingo, apetecia vestir uma roupa diferente, mas nunca um roupão.
No tempo em que se saía ao domingo, havia cinemas abertos. E centros comerciais de casais tristes ou de jovens ruidosos que ainda não sabiam o que era um domingo sem poder sair nem o que era a vida dos casais tristes à mesa triste de um centro comercial.
No tempo em que se saía ao domingo, havia a marginal de todas as cidades com a maravilha do mar ou do rio cheia de gente a caminhar ou a correr para vencer todas as torrentes diárias.
E como será o tempo em que se vai poder sair de novo ao domingo?
Não sei e julgo que ninguém sabe. Apesar de hoje ser domingo.
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