quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Os leitores e o cantor

Como de costume, chegaram as duas ao hospital. Na carteira, iam as fotocópias dos textos que levavam para partilhar com as pessoas internadas nos serviços continuados.
Um poema de J.P. Messeder sobre janeiro, uns provérbios também sobre este mês, umas quadras e a letra de 'Vamos cantar as janeiras', se o tempo desse e alguém pedisse para cantar.
Quem quer ler? A esta pergunta, como sempre, houve as mesmas respostas: gostava mas estou sem voz, não trouxe os óculos, não sei ler, não estou com disposição...
Mas também: 
Posso tentar, consigo ler sem óculos, sempre gostei de ler, quero ler porque é bonito...
Depois das leituras, lá estava ele a olhá-las com ternura. Por trás dele, via-se o sol e o céu porque a janela era larga.
Quer cantar? Gostávamos de o ouvir.
Sim, pode ser um fado de Coimbra.
E começou a cantar com a voz timbrada e macia, pronunciando muito bem as palavras.
No fim, houve aplausos e todos, mesmo os que não cantaram nem leram, ficaram com a cantiga e com as palavras a dar pequenos mimos à memória.


segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Para a sra Isabel dos Santos


Cinco quadras de António Aleixo

Acho uma moral ruim
trazer o vulgo enganado:
mandarem fazer assim
e eles fazerem assado.

Sou um dos membros malditos
dessa falsa sociedade
que, baseada nos mitos,
pode roubar à vontade.

Esses por quem não te interessas
produzem quanto consomes:
vivem das tuas promessas
ganhando o pão que tu comes.

Não me deem mais desgostos
porque sei raciocinar...
Só os burros estão dispostos
a sofrer sem protestar!

Esta mascarada enorme
com que o mundo nos aldraba,
dura enquanto o povo dorme,
Quando ele acordar, acaba.

domingo, 19 de janeiro de 2020

sábado, 18 de janeiro de 2020

Conversa com ou sem paisagem

- Vamos tomar um café?
- Onde sugeres?
- Há uma confeitaria bonita perto da estação.
- Não conheço, mas concordo. E fica perto.
- Não tem é paisagem.
- Não é preciso.
- Temos a das palavras e a nossa!



Não sou original, mas voto nas coisas simples e boas

Obrigada, Dulce, por esta foto do parque oriental da cidade do Porto.
Cada vez me convenço mais que pequenos pormenores agradam aos olhos e à alma.
E fazem-lhes tão bem.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

A menina grande

Andava no oitavo ano pela terceira vez. Mesmo ouvindo as matérias várias vezes, o rendimento era negativo. Ou melhor, nem sempre as ouvia porque faltava vezes sem conta. O corpo crescia e as ausências também. Quando vinha às aulas alguns dias seguidos, os professores e os colegas estranhavam. Como era maior do que todos os alunos da turma, chamavam-lhe a grande. 
A grande parece que encarreirou.
Vamos lá ver se ganha juízo.
Até quando virá à escola?
Mas não, não demorou muito a voltar a faltar. Porém, uns dias antes de uma sessão do Parlamento Jovem, pediu à professora dinamizadora que a deixasse assistir. Vinha uma deputada da Assembleia da República e o tema era a violência doméstica.
A professora disse-lhe que, para assistir, teria de estar inscrita e que, como andava a faltar, não o tinha feito. 
Ó setora, deixe-me vir. É muito importante. Nem durmo de noite a pensar nisso. Ó setora, preciso mesmo de vir.
Perante tanta insistência, a professora acabou por aceitar o pedido. E ia pensando por que razão queria ela participar se nada na escola lhe interessava. Seria pelo facto de a deputada ser muito conhecida? Se calhar. Só esperava era que não viesse para estar na conversa e perturbar a sessão. Talvez quisesse recolher imagens para o instagram...
No dia do debate, com tudo a postos e algumas câmaras de televisão no exterior do anfiteatro da escola, lá estava a grande, mais concentrada do que habitualmente, e sentada numa ponta para não tapar as vistas a quem estava atrás.
Depois da apresentação de argumentos dos diferentes grupos participantes, foi a vez de o público intervir. E foi quando a menina se levantou para dar o seu testemunho. Houve um sururu na sala. O que iria a grande dizer?
Com calma e seriedade, contou que vivia com os avós e tinha assistido muitas vezes a cenas de violência doméstica. Um dia, o avô deu facadas na avó e as marcas ficaram-lhe para sempre. Apesar das queixas e do tempo que a avó passou no hospital, nada tinha acontecido ao avô.
A sala ouvia-a atentamente. Com um discurso bem articulado, nem parecia a grande que faltava tantas vezes às aulas e parecia não levar nada a sério. E a mensagem dela foi tão clara e sentida que foi saudada com carinho por todos, incluindo a deputada.
A menina grande era, afinal, uma grande menina. 
Não sei se deixou de faltar à escola, mas a escola, afinal, tinha-lhe permitido dizer presente quando quem de direito muitas vezes se afastara.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Conversa (s)em sala de professores

- Sabias que os professores de línguas vão poder dar aulas de português?
- Não sabia, mas como vivemos numa aldeia global...
- Se calhar, é por isso que sei contar até 100 em alemão!
- Ainda te vão chamar para ensinares essa língua!!!!


Por falar em idade...

Obrigada, Manuel Maria, pela partilha deste vídeo - que faz lembrar os bailes de garagem, os gira-discos, os vinis...

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Finos recortes


Conversa com muita idade

- Que idade é que ela tem?
- Noventa e três anos.
- Já é uma idade bonita.
- Apesar de ela sentir que aumentam as dificuldades. Sobretudo físicas.
- Mas que é uma bonita idade, lá isso é.
- Também acho. Só é pena a vida ir impedindo de ver como a vida é bonita.



terça-feira, 14 de janeiro de 2020

'To love. To be loved'

“To love. To be loved. To never forget your own insignificance. To never get used to the unspeakable violence and the vulgar disparity of life around you. To seek joy in the saddest places. To pursue beauty to its lair. To never simplify what is complicated or complicate what is simple. To respect strength, never power. Above all, to watch. To try and understand. To never look away. And never, never to forget.”


 Arundhati Roy, The Cost of Living 

 

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Tiempo y silencio - Cesaria Evora & Pedro Guerra

Procurava uma outra música e encontrei esta de que gostei e que agora partilho. Também o título é inspirador.
Boa semana!

Conversa com teoria e prática

- Não conhecias esta tesoura de poda?
- Só teoricamente.
- Trabalhas na terra e nunca a usaste?
- Não, só a conhecia teoricamente.
- Achas que estes ramos ainda cabem no trator?
- Teoricamente, acho que sim.
- Então, vai levando estes mais grossos.
- Teoricamente, acho que cabe tudo.
- O pior é se o trator vira, o que não é nada prático!


sábado, 11 de janeiro de 2020

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Janvier

Postal enviado pelo Clube das Histórias


Frédéric Chopin - The Nocturnes [Maria João Pires]

Noturnos - perfeitos

A noite estava fria. Entrou em casa e sentiu um brando calor que a fez tirar o casaco. Contrariamente ao habitual, hoje ia deitar-se mais tarde. O clube dela ia jogar e também queria ver o Governo Sombra. Até lá, aproveitaria para ler. Parecia ouvir: mãe, quem gosta de escrever tem de ler muito. 
A partir de hoje, iria disciplinar-se mais e encharcar-se menos do ruído da televisão. Seria até um bom propósito de ano novo. Não podia consentir que Contos Escolhidos de Guy de Maupassant ou Berta Isla de Javier Marías continuassem no monte dos livros à espera de serem lidos. E a releitura da Sibila de Agustina ou de O Ano da Morte de Ricardo Reis. Para quando?
Pôs a girar os Noturnos de Chopin, tocados por Maria João Pires e ia sentar-se no sofá. O ambiente era quase perfeito para a leitura. E mais ainda seria com um cálice de Porto ao lado, mas a garrafa, infelizmente, tinha-se esvaziado à mesa de vários serões natalícios em família.
Afinal, faltava alguma coisa. Reduziu a luz e releu algumas páginas de O Ano da Morte de Ricardo Reis, enquanto o dia ia morrendo nos suaves braços Noturnos. Esses, sim, perfeitos.



O perfume

A casa tinha pó e a roupa das camas precisava de ser mudada. 
A empregada tinha chegado à idade da reforma e estava cansada e queria acompanhar mais o marido que sozinho entristecia com os dias tristes de inverno e queria ter mais mais tempo para si e não queria ter de cumprir tantos horários...
Mas tinha pena e se a senhora precisar, já sabe, venho de vez em quando, mas não todas as semanas e, muito menos, vários dias seguidos.
Sim, claro, não esquecia que sempre foram seus amigos e que a respeitavam, mas o trabalho era muito, porque a casa tinha quintal e jardim e uma cadela que espalhava o pelo por onde passava e sobretudo onde dormia.
Pressentia que a casa tinha pó e que a roupa das camas precisava de ser mudada, mas a decisão tinha sido partilhada e aceite.
Até sugeriu uma pessoa para a substituir. Muito séria. Nunca faltava. Muito trabalhadeira. E com menos idade e mais força.
Agora, tinha direito a descansar, a fazer mais longas caminhadas durante o dia e não apenas à noite, a ler alguns livros que lhe foram oferecidos.
Tinha saudades sobretudo da juventude, do vigor antigo, das pernas sem doer, mesmo que subisse ou descesse as escadas vezes sem fim, e da família que tinha visto crescer e da casa que aumentara e das pessoas que partiram... 
Hoje era o dia da primeira visita depois do adeus à casa onde tinha trabalhado várias décadas.
Tocou à campainha, trocou beijinhos, sentou-se no sofá como visita que era e já não a empregada que não queria deixar as coisas por fazer.
Com ela, raramente a casa tinha pó ou a roupa das camas demorava a ser mudada.
Quando saiu, olhou para o marido e pensou que estavam velhos, por isso abriria o perfume oferecido logo que chegasse a casa.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Como um rebuçado doce

Quando lhe estava a ser atribuído um grande prémio, um grande escritor leu o seu discurso que foi aromatizando com boas memórias do seu quotidiano também de menino.
E uma delas foi a comparação do prémio aos rebuçados doces que a avó lhe oferecia na infância. Vinham sempre embrulhados em papel de prata colorido e com uma fitinha a condizer.
Perante o sorriso empático do público, o grande escritor assumiu uma doce inocência, apesar de a idade e a obra serem bem maduras.
Esta peripécia fez-me pensar como, apesar da fama e reconhecimento de toda uma obra, o ser humano mantém as mesmas necessidades que outras pessoas a quem ninguém atribui vitórias. Todos têm necessidade de amor, traduzido em pequenos gestos, como receber chocolates com um sorriso carinhoso.
Também nesta história sucinta está a importância da presença de um avô ou de uma avó. Pessoalmente, não tenho grandes recordações porque os meus avós maternos morreram cedo e eu não os conheci. Dos meus avós paternos, recordo sobretudo os olhos marotos do meu avô que contava aventuras na travessia do rio Douro em dias de cheias ou tempestades. Também nos tranquilizava quando havia fortes trovoadas. Olhava o céu, fazia as suas previsões de acalmia e nós confiávamos nas suas palavras de bonança que ia chegar.
Da minha avó, lembro-me do chá escuro que ela fazia todas as tardes e que era bebido durante o folhetim da rádio, a que chamávamos Tide.
Não me lembro se púnhamos açúcar, mas sabia bem como um rebuçado doce.