A menina sentou-se à mesa.
Junto à janela, estavam três sacos com resíduos para reciclar.
Por cima do que que estava mais cheio, jazia uma folha de árvore de tons outonais.
Vendo-a, a menina disse pesarosa:
- Oh! A minha folha está no lixo.
- Deve ter sido a empregada, responderam-lhe.
A menina continuou, pensativa, a jantar e perguntou:
- Se a minha folha for para reciclar, dá outros presentes para a mãe?
terça-feira, 12 de novembro de 2019
sábado, 9 de novembro de 2019
Travessia da infância
Travessia da infância
Quietos fazemos as grandes viagens
só a alma convive com as paragens
estranhas
lembro-me de uma janela
na Travessa da Infância
onde seguindo o rumor dos autocarros
olhei pela primeira vez
o mundo
não sei se poderás adivinhar
a secreta glória que senti
por esses dias
só mais tarde descobri que
o último apeadeiro de todos
os autocarros
era ainda antes
do mundo
mas isso foi depois
muito depois
repito
José Tolentino de Mendonça
Quietos fazemos as grandes viagens
só a alma convive com as paragens
estranhas
lembro-me de uma janela
na Travessa da Infância
onde seguindo o rumor dos autocarros
olhei pela primeira vez
o mundo
não sei se poderás adivinhar
a secreta glória que senti
por esses dias
só mais tarde descobri que
o último apeadeiro de todos
os autocarros
era ainda antes
do mundo
mas isso foi depois
muito depois
repito
José Tolentino de Mendonça
Felizmente caiu o muro de Berlim
Quando eu era era criança, havia duas famílias que partilhavam um quintal há vários anos, embora cada família vivesse na sua própria casa. Uma das casas possuía um poço que servia as duas famílias porque o tempo ainda não era de água canalizada.
Um dia, dois homens chegaram com tijolos e começaram a levantar um muro, sem que as duas famílias tivessem dialogado sobre o assunto.
A família dona do poço pensava que tinha direito à sua privacidade.
A família que se habituara a atravessar o quintal para ir buscar água passou a ter de fazer um percurso maior.
O que era harmonia entre as duas famílias passou a ser ressentimento.
Há tantos muros. Uns pequenos como o da aldeia da minha infância; outros grandes a separar países ou povos, ficando sempre um poço de água do outro lado que é necessária para todos viverem melhor.
Em muitos casos, os muros impedem qualquer travessia ou alteração de percurso.
Felizmente o muro de Berlim caiu há trinta anos.
Oxalá caiam outros e outros não cheguem a erguer-se.
Será ainda possível?
A Estrada Branca
deste-me a tua mão, a vida parecia
difícil de estabelecer acima do muro alto
folhas tremiam
ao invisível peso mais forte
Podia morrer por uma só dessas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamovíveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate
José Tolentino Mendonça, in 'A Estrada Branca'
quinta-feira, 7 de novembro de 2019
O jardim e a casa
Joaquín Sorolla |
Não se perdeu nenhuma coisa em mim.
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago o terror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.
Sophia de Mello Breyner Andresen | "Poesia", 1944
Sem palavras
Ainda bem que me trouxe estes biscoitos de que gosto tanto. Gosto mais deles fresquinhos e estaladiços, mas não digo nada senão deixa de trazer ou, o que é ainda pior, deixa de vir visitar-me. Não gosto de estar aqui. Não me habituo, embora não me queixe muito. A televisão está sempre muito alto. Mas estão a saber-me bem os biscoitos. Em casa, costumava pô-los num frasco de vidro que punha sempre em cima da mesa da cozinha ao lado da garrafa de termos com chá quente.
Não para de comer os biscoitos. Nem levanta os olhos. Não deve estar a pensar em nada, apenas nos biscoitos que está a comer. Ainda bem que os tinha lá em casa. É curioso que ainda os guardo no mesmo frasco de vidro. Enquanto come, posso responder a estas mensagens e a alguns e-mails em atraso. Agora, quando venho cá, fala pouco. Talvez por isso, apetece-me vir cá cada vez menos.
Já perguntei por todos lá de casa e gostava de saber notícias de algumas vizinhas, mas fica já de mau humor e diz que tem mais que fazer do que saber da vida dos outros. Também não vale a pena perguntar sobre o trabalho. Diz logo que está tudo bem e não desenvolve. Sei que estão a reparar em mim, porque pareço esfomeada, mas é como se estivesse à minha mesa a comer biscoitos e a tomar chá. Gostava muito do frasco de vidro onde guardava os biscoitos. Lavava-o muitas vezes para estar sempre limpinho e brilhante.
Bem, os biscoitos já estão quase no fim. Vou responder à última mensagem e vou para casa. Estou cansado. O dia não foi fácil. Raisparta o meu chefe que se arma em sherife. Vou pirar-me logo que possa. Preciso de apanhar ar e deixar de ouvir estes malditos berros da televisão.
Já foi embora. Fechei os olhos e deve ter pensado que eu estava a dormir. Também deve andar cansado. Até compreendo. E ainda falta bastante tempo para o jantar. Deve ser peixe porque já cheira.
Podia-lhe ter dito para levar o restinho dos biscoitos para comer pelo caminho. Como quando lhe dava a saquinha com o lanche da escola.
Podia-lhe ter dito para levar o restinho dos biscoitos para comer pelo caminho. Como quando lhe dava a saquinha com o lanche da escola.
terça-feira, 5 de novembro de 2019
'O meu maior desgosto'
Segurando o pequeno postal bonito que foi lido sobre o outono nas mãos brancas e quietas de doente há muito no hospital, ela perguntou a quem lho deu:
- Posso pôr na minha mesinha de cabeceira?
Em resposta, teve um sorriso e palavras:
- Claro que pode. Que bom ter gostado.
De repente, os seus olhos enchem-se de lágrimas e diz com voz de menina, apesar dos seus noventa anos:
- Só tenho pena de não saber ler. É o meu maior desgosto.
- Posso pôr na minha mesinha de cabeceira?
Em resposta, teve um sorriso e palavras:
- Claro que pode. Que bom ter gostado.
De repente, os seus olhos enchem-se de lágrimas e diz com voz de menina, apesar dos seus noventa anos:
- Só tenho pena de não saber ler. É o meu maior desgosto.
segunda-feira, 4 de novembro de 2019
Escorregar, escorreganço e escorrega
Li numa revista de um avião um belo texto de Gonçalo M. Tavares e guardei esta frase:
'A viagem? Uma forma intencional de escorregar para outro sítio. Um escorreganço controlado'.
Recordei, então, a pergunta que ouvi de um menino, num outro avião:
- Pai, vamos sair pelo escorrega?
'A viagem? Uma forma intencional de escorregar para outro sítio. Um escorreganço controlado'.
Recordei, então, a pergunta que ouvi de um menino, num outro avião:
- Pai, vamos sair pelo escorrega?
sábado, 2 de novembro de 2019
Conversa com sotaque brasileiro numa fila de museu
- Vald(j)i, não imagina a beleza de fotos que tirei.
- Imagino, Rose.
- Imagina não, tem que ver.
- Verei, então, Rose.
- Nossa, Geraldo está dizendo que está vindo pra cá de omnibus.
- Que bom!
- Valdi, eles assim poupam bom dinheiro.
- Bom exemplo, sim senhora.
- Você é muito acomodado, Valdi, é filho de pobre com espírito de rico, Valdi.
- Pois serei, Rose!
- Eu bem gostava, Valdi, de andar de omnibus e metro em vez de uber ou táxi.
- E podemos andar, claro que sim.
- Valdi, vou tirar fotos aos pássaros do jardim. Já viu como são lindos?
- Eu fico na fila.
- Claro, Valdi, você tem que ficar!
- Então, os pássaros não fugiram?
- De jeito nenhum, Valdi. Finalmente, vamos comprar o bilhete, Valdi.
- Vou usar cartão.
- Não, Valdi, usa dólar!
- Uso não, seria mais demorado e complicado.
- Valdi, compra meu bilhete com guia.
- Não, Rose, não é preciso.
- Eu quero, Valdi.
- É muito mais caro e não há necessidade.
- Mas eu quero, Valdi, então eu pago, Valdi.
- Você, Rose, também é filha de pobre com espírito de rica!!!
domingo, 27 de outubro de 2019
Conversa perto de livros e de pôr do sol
- Então, já escreveste o teu conto de Natal?
- Tenho tanta coisa escrita, mas não tem interesse para os outros. Fica para os meus filhos.
- Muita gente pensa assim mas nem sempre assim acontece.
- Eu gosto de falar de pequenas coisas como as pedrinhas que vejo na praia.
- Olha que há muita gente que gosta também de olhar as pedrinhas da praia ou pode até começar a reparar nelas.
- Não sei. Acho que ainda sei pouco.
- Todos sabemos tão pouco. Partilhar algumas coisas que escrevemos pode ser um modo simples de aprendermos todos um pouco mais.
- Tenho tanta coisa escrita, mas não tem interesse para os outros. Fica para os meus filhos.
- Muita gente pensa assim mas nem sempre assim acontece.
- Eu gosto de falar de pequenas coisas como as pedrinhas que vejo na praia.
- Olha que há muita gente que gosta também de olhar as pedrinhas da praia ou pode até começar a reparar nelas.
- Não sei. Acho que ainda sei pouco.
- Todos sabemos tão pouco. Partilhar algumas coisas que escrevemos pode ser um modo simples de aprendermos todos um pouco mais.
Diferentes mimos de outubro
Ontem, foi apresentada no Porto (julgo que) a quarta coletânea de textos poéticos dedicados aos diferentes meses do ano, com o título de Mimos de... das Edições Mimos e Livros.
Desta vez, foram Mimos de outubro
ANTES
E
DEPOIS
Esperada
liberdade de horários
Sofreguidão trabalhosa das horas
Dias longos
abertos ao esplendor
Noite apressada pela pequenez do dia
Uvas maduras
a escorrer nas mãos ceifeiras
Bagos perdidos nas folhas ressequidas
Poentes
avermelhados nos mares dos horizontes
Nuvens cinzentas de lágrimas prestes a
cair
Afã fremente
de formiga
colhendo
frutos maduros
Canto livre
de cigarra
com tempo de
cantar
mas sem tempo para qualquer depois
Sê bem-vindo,
outubro!
Trazes
contigo as eiras de milho ao sol da minha infância.
sexta-feira, 25 de outubro de 2019
Conversa em voz alta na farmácia ou problemas que também lá moram
- Tem algum jeito ter de pagar taxa? Gostava era que eles ganhassem o que eu ganho!
- Isso é verdade e não vão ao mesmo hospital.
- Se eu ganhasse mil euros, não me importava de pagar a taxa.
- Mas eles ganham muitos mil euros.
- Então se ganham tanto que paguem a taxa moradora que eu só ganho quatrocentos.
- Isso é verdade e não vão ao mesmo hospital.
- Se eu ganhasse mil euros, não me importava de pagar a taxa.
- Mas eles ganham muitos mil euros.
- Então se ganham tanto que paguem a taxa moradora que eu só ganho quatrocentos.
Conversa ao pé do supermercado ou palavras comuns e outras menos
- Viva! Dá cá um beijinho.
- Há tanto tempo que não te via! Estás sempre na mesma.
- Ai, estou! Tenho muitos problemas de saúde.
- Mas não parece, estás sempre bonita.
- Tu é que estás! Sempre a mesminha!
- Há tanto tempo que não te via! Estás sempre na mesma.
- Ai, estou! Tenho muitos problemas de saúde.
- Mas não parece, estás sempre bonita.
- Tu é que estás! Sempre a mesminha!
Há poucos dias assim!
Poder andar devagar. Tomar o pequeno almoço sem olhar para o relógio. Arrumar calmamente a mesa de trabalho. Acabar de ler o capítulo do livro que ainda/já vai a meio (neste caso, O Ano da Morte de Ricardo Reis de José Saramago). Fazer, sem pressa, a lista de pequenas coisas que faltam para o jantar em família. Saber que à mesa podemos falar de mil e uma coisas com o amor habitual, mesmo que haja desacordo.
Fazer festas à Castanha com tempo e paciência, sem pensar sobretudo no cocó que é preciso apanhar. Olhar a planta que está a secar no canteiro, sem nostalgia porque a pujança e beleza foram duradouras.
Sair na possível certeza de ver o largo rio ao longe. Sentar-me num banco de pedra olhando os ouriços a parir castanhas luzidias. Colher dióspiros e tangerinas ouvindo vários silêncios das folhas das árvores.
Ah! Não fossem algumas más notícias! Não fossem algumas más certezas irreversíveis!
Mas talvez esteja a pedir de mais!
quinta-feira, 17 de outubro de 2019
Há boas trocas de mensagens!
Hoje de manhã recebi esta mensagem de uma amiga.
Julgo que seria resposta para outra pessoa.
Porém, como penso de igual forma, partilho a ideia
- que não será, de certeza, só da minha amiga nem só minha!
Desejo a todos um dia com boas mensagens, sejam elas trocadas ou não!
Não nos comportamos da mesma maneira, mas se formos autênticos, há algo que nos liga a tudo'.
terça-feira, 15 de outubro de 2019
Conversa ao pé da porta
- Continuo a despojar-me de muitas coisas.
- Faço o mesmo há muito tempo.
- Não há necessidade de encher gavetas que nunca são abertas.
- Um dia mais tarde só dão trabalho a quem as tem de arrumar!
- Faço o mesmo há muito tempo.
- Não há necessidade de encher gavetas que nunca são abertas.
- Um dia mais tarde só dão trabalho a quem as tem de arrumar!
terça-feira, 1 de outubro de 2019
Há sempre uma estação perto de nós!
A Confraria do Corpo Santo de Massarelos realiza regularmente visitas a lugares de referência no Porto.
O objetivo principal é a angariação de fundos para o restauro da Igreja.
A
visita que foi realizada na última sexta-feira permitiu conhecer a
estação de metro do Campo 24 de Agosto - Mijavelhas - e espaços da Senhora da Hora, incluindo as sete bicas que deram o nome a uma estação.
A atividade teve, como sempre, muita adesão e foi orientada pelo professor Joel
Cleto.
Parte do percurso foi feito de metro - do Campo 24 de Agosto à
Senhora da Hora.
Uma boa maneira de conhecer melhor espaços públicos e muita(s) da(s) sua(s) história(s).
Em Mijavelhas - Porto |
Portão da antiga fábrica dos carrinhos - Senhora da Hora |
Ruínas de parte da antiga fábrica |
As sete bicas que deram o nome à estação de metro |
Imagens da capela junto à fonte |
domingo, 22 de setembro de 2019
Gosto do outono!
Canção de Outono
Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.
De que serviu tecer flores
pelas areias do chão
se havia gente dormindo
sobre o próprio coração?
E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.
Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força estão
velando e rogando aqueles
que não se levantarão...
Tu és folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
- a melhor parte de mim.
E vou por este caminho,
certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão...
Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.
De que serviu tecer flores
pelas areias do chão
se havia gente dormindo
sobre o próprio coração?
E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.
Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força estão
velando e rogando aqueles
que não se levantarão...
Tu és folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
- a melhor parte de mim.
E vou por este caminho,
certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão...
Cecília Meireles
OUTONO
Tarde pintada
Por não sei que pintor.
Nunca vi tanta cor
Tão colorida!
Se é de morte ou de vida,
Não é comigo.
Eu, simplesmente, digo
Que há tanta fantasia
Neste dia,
Que o mundo me parece
Vestido por ciganas adivinhas,
E que gosto de o ver, e me apetece
Ter folhas, como as vinhas.
Miguel Torga
Conversa ao pé da porta
- Vejo que anda muito ocupada.
- Sim, aproveito os tempos livres para fazer arrumações.
- Curioso, também ando numa fase semelhante.
- Não entendi.
- Quero despojar-me das coisas que me afastam a mim.
- Sim, aproveito os tempos livres para fazer arrumações.
- Curioso, também ando numa fase semelhante.
- Não entendi.
- Quero despojar-me das coisas que me afastam a mim.
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