Um conto do Tamil Nadu (1)
Era uma vez uma menina chamada Priya que vivia com o
seu querido pai e a madrasta em Tamil Nadu, no sul da Índia. A madrasta de
Priya era atraente e andava sempre muito bem vestida, mas quem a olhasse
atentamente conseguia descobrir-lhe um brilho de aço nos olhos. Priya era
resplandecente como uma flor de lótus, mas havia tristeza no fundo dos seus
olhos meigos. A mãe de Priya tinha morrido há alguns anos e o pai, como era
vendedor ambulante, andava sempre em viagem. Priya levava a vida confinada a
quatro paredes, satisfazendo todo e qualquer capricho da sua madrasta cruel.
Quando o pai de Priya estava em casa, a madrasta
chamava a enteada com voz doce e aveludada. “Priya querida, onde estás?”,
cantarolava. No entanto, quando estava para fora, a sua língua afiada golpeava
o ar como a faca do carniceiro. “Ó sua estúpida, chega aqui imediatamente!” ou
“Sua lesma, nunca mais te despachas!”, gritava, então. O que quer que Priya
fizesse, nunca estava bem.
Na manhã do seu décimo segundo aniversário, Priya
acordou particularmente triste. Na semana anterior, o pai tinha partido numa
longa viagem e ainda não tinha regressado. Curvou-se perante a imagem da Deusa
Durga (2) que a mãe lhe tinha dado. “Durga Ma, ajuda-me,” pediu. Estava
ainda a rezar quando ouviu a madrasta chamar por ela aos gritos. Pôs-se de pé
de um salto. A madrasta esperava-a com aquele brilho malvado nos olhos e um
sorriso velhaco nos lábios. “Chegou a altura de ganhares a tua vida,” disse.
Rapou o arroz da véspera do fundo do tacho, embrulhou-o num pano sujo e
atirou-o a Priya, que o agarrou com as suas mãozinhas frágeis. “Vai!” E
empurrou Priya para fora de casa, batendo de seguida com a porta.
Priya ficou a olhar para o imenso céu azul, soluçando
amargamente. Para onde é que ia agora? Com quem iria viver? As tias e os tios
viviam a centenas de quilómetros dali e os poucos amigos que tinham eram
pobres. Como poderia ela sobrecarregá-los com o fardo que seria terem mais uma
boca para alimentar?
Caminhou até as pernas lhe doerem e não conseguir dar
mais um passo. Parou num parque junto a uma banyan (3). “Ninguém
me expulsará daqui”, pensou. Atou a trouxa da comida a um ramo da banyan e
sentou-se no meio das raízes retorcidas da árvore. Minutos depois, estava a
dormir.
Enquanto dormia, o fruto verde e redondinho da banyan
abriu-se e de lá de dentro saíram minúsculas ninfas da floresta, as vanadevata.
Viram Priya a dormir e a trouxa suspensa do ramo. Desataram a trouxa e provaram
o arroz azedado. “Que suculento!”, disseram. Era a primeira vez que as vanadevata
comiam arroz azedado; no céu que habitavam, comiam sempre pratos delicados.
Olharam Priya, semiadormecida, e gostaram dos seus olhos bondosos. “Antes de
nos irmos embora, ofereceremos à menina algo em troca”, decidiram.
Quando Priya acordou, sentiu fome. Pegou na trouxa e
abriu-a. Na vez do arroz, que tinha desaparecido, estava uma tigela de barro
vazia. Segurou na tigela com ambas as mãos e os seus olhos encheram-se de
lágrimas. “Quem é que terá comido o meu arroz?”, balbuciou. Nesse preciso
momento, as minúsculas vanadevata surgiram de dentro da tigela. Fizeram
uma vénia a Priya e disseram: “Somos espíritos da floresta e estamos muito
tristes por termos comido o teu arroz. Para te compensarmos, faremos chegar até
ti toda a comida que desejares. O que é que gostarias de comer?” Priya piscou
os olhos de perplexidade. A única pessoa que alguma vez lhe perguntara o que
queria comer tinha sido a mãe, mas passara-se tanto tempo que já mal se
lembrava disso.
“O que é que gostarias de comer?”, perguntaram de novo
as vanadevata.
Priya estava cheia de fome. “Qualquer coisa”,
respondeu.
As vanadevata serviram-lhe, então, pratos de
caril, arroz de açafrão, romãs maduras e papaias doces como o mel.
“Obrigada”, exclamou Priya com o coração cheio de
gratidão. “Muito obrigada!” Uniu as palmas das mãos e agradeceu aos espíritos,
certa de que Durga Ma os enviara. Começou, então, a comer aqueles pratos
deliciosos, mas sentiu dificuldade em acabá-los. “É comida a mais para mim”,
disse.
As vanadevata apareceram prontamente e pegaram
nas sobras e nos pratos sujos.
“ A tigela de barro que deixámos provirá sempre às
tuas necessidades de cada vez que a segurares nas tuas mãos e chamares por
nós”, disseram. A seguir, curvaram-se ante Priya e desapareceram. Priya agarrou
com força na tigela de barro. Era mágica! Nunca mais teria de passar fome.
Correu para casa rapidamente para contar à madrasta o que tinha acontecido.
A madrasta, contudo, não queria deixá-la
entrar. “Estou farta das tuas histórias! Vai-te embora! Desaparece!” E empurrou
Priya para fora de casa.
Enquanto caminhava, Priya lembrou a história que a mãe
lhe contava sobre Durga Ma: a deusa haveria sempre de protegê-la. Por isso, foi
com a tigela ao templo. Aí, encontrou um swami (4) que
gentilmente a autorizou a ficar. A tigela mágica proporcionava-lhe todas as
refeições, tal como as vanadevata haviam dito. Uns dias mais tarde,
porém, pensou consigo mesma: “De que me serve tanta comida se não a posso
partilhar?”
Acompanhada pelo swami, decidiu, então, ir de
porta em porta convidar as pessoas para uma refeição no templo. Também foi a
casa convidar os pais.
Quando a madrasta viu Priya, pôs os olhos em frincha e
fungou: “Sua parva! Porque é que voltaste? Bem sabes que o teu pai não está
aqui.”
“Vim convidar-vos para jantar amanhã no templo”, disse
Priya com determinação.
“O quê??!”, escarneceu a madrasta. “Para comer bagas e
ossos, não é?” E desatou a rir com tanta força que quase caiu. Não, ela não
iria ao templo e muito menos diria ao marido fosse o que fosse.
Na noite do jantar, uma multidão de pobres reuniu-se
no jardim do templo. Priya apareceu com a sua tigela.
“Que linda tigela!”, disseram.
Priya contou-lhes como a tinha arranjado e como tinha
sido abençoada por Durga Ma. Agarrou na tigela e disse: “Divinos espíritos da
floresta, por favor abençoem os meus convidados com a vossa generosidade.”
Tomadas de surpresa, as pessoas ficaram em silêncio.
Para espanto de todos, minúsculas vanadevata foram
saindo da tigela, transportando travessas de prata repletas dos manjares mais
suculentos e requintados. À medida que os convidados iam comendo, novos pratos
eram prontamente servidos pelas encantadoras ninfas. As pessoas não paravam de
comer. Não tardou que, na cidade, não se falasse senão da tigela milagrosa de
Priya e das iguarias que ela providenciava. As pessoas conversavam sobre os
espíritos benignos da floresta e como a menina tinha sido abençoada pelos
deuses.
Assim que as notícias chegaram aos ouvidos da
madrasta, esta mordeu os lábios com tanta força que fez sangue. Como era
possível que a sua enteada se tivesse saído tão bem?! A seguir, distendeu os
lábios feridos num sorriso malévolo. “Vou fazer a mesma coisa que Priya fez”,
disse. Então, na manhã seguinte, a madrasta de Priya embrulhou doces num pano
limpo e foi até ao parque. Sentou-se debaixo da mesma
banyan que Priya, fechou os olhos e fingiu dormir. “Quando os
seres da floresta aparecerem”, maquinou ela, “ vou pedir-lhes que me tragam
joias, saris de seda e moedas de ouro.” Enquanto esperava, foi ficando cada vez
mais sonolenta até que acabou mesmo por adormecer.
Ao ouvirem o estrondoso ressonar da madrasta a dormir,
as vanadevata aproximaram-se. Repararam na trouxa dependurada da árvore
e logo pensaram que devia pertencer a Priya. Abriram-na e provaram os doces.
“Arghh…”, exclamaram, cuspindo-os. Os doces tinham o sabor das más intenções.
Viram em seguida a madrasta de Priya a dormir debaixo da árvore. “Arghh…”,
exclamaram de novo, “parece mesmo uma bruxa má!” Colocaram na trouxa uma tigela
de madeira com uma forma estranha e desapareceram.
Quando a madrasta acordou, mordeu o lábio ferido,
aborrecida por se ter deixado dormir. Provavelmente, tinha deixado escapar as vanadevata
e, assim, a oportunidade de lhes pedir joias, saris e moedas de ouro. Num
salto, pôs-se de pé e agarrou na trouxa. Quando viu as sobras dos doces,
empanturrou-se. “Azar o delas, se não comeram tudo.” Depois, reparou na tigela
de madeira e riu-se. “Foi tão fácil, mas tão fácil!”
A madrasta de Priya foi a correr para casa e convidou
todos os amigos ricos para um enorme banquete. Para grande alívio seu, não teve
de convidar Priya, uma vez que o pai ainda estava fora. À noite, a madrasta
surgiu resplandecente de ouro e seda, toda ela inchada de vaidade, para receber
os convidados em sua casa. Os convidados foram-se sentando confortavelmente nas
cadeiras muito elegantes. A seguir, a madrasta de Priya foi buscar a tigela de
madeira e colocou-a em cima da mesa para que todos a vissem. “E agora, um
momento de magia”, disse.
Pediu, então, uma série de pratos exóticos. Os
hóspedes fixaram o olhar ávido na tigela. Fez-se um profundo silêncio. Ninguém
aparecia para os servir e os convidados permaneciam expectantes. Não tinham
comido nada durante o dia, na esperança de que a refeição fosse tão suculenta
quanto a de Priya. No desconforto crescente da espera, começaram a suspirar e a
mexer-se, inquietos, nas cadeiras.
A madrasta de Priya bateu repetidamente com a tigela
de madeira na mesa: “Despachem-se, suas lesmas, que estamos com fome!” Nesse
preciso momento, começaram a deslizar para fora da tigela cobras e mais cobras
sibilantes, de línguas bífidas vibrando no ar. Horrorizada, a madrasta de Priya
soltou um grito e os convidados fugiram. As cobras, no entretanto,
desapareceram rapidamente nas ervas altas. A madrasta de Priya sentiu-se
muito envergonhada e ficou cabisbaixa, pesada pelo remorso. Como poderia voltar
a olhar alguém de frente?
Quando o pai de Priya regressou de viagem, a mulher
explicou-lhe por que razão a filha não estava lá para recebê-lo. “Priya não
queria trabalhar e, por isso, fugiu. Ela é a nossa vergonha. Não nos resta
outra saída senão abandonar a cidade o mais rapidamente possível.”
O vendedor ambulante ficou perplexo. Não conseguia
acreditar na mulher, pois tinha a certeza de que Priya nunca o abandonaria.
“Não poderei partir sem a minha menina, a minha Priya querida. Vou à procura
dela para a trazer de volta.” Após uma busca incessante ao longo de três dias e
três noites, acabou por encontrar a filha no templo, a rezar à deusa Durga Ma.
“Minha querida filha!” Tomou Priya nos braços e
apertou-a contra si de lágrimas nos olhos. “Porque é que te foste embora?”
Priya contou-lhe tudo. “Volta para casa, peço-te”, implorou o pai. “ A tua
madrasta não vai viver mais connosco.”
Priya concordou sem hesitar, despediu-se do swami,
pegou na tigela e foi-se embora com o pai. Quando chegaram a casa, a madrasta
já tinha partido. Desde então, Priya viveu feliz com o pai. E a tigela mágica
continuou a oferecer manjares deliciosos que Priya sempre partilhava com as
outras pessoas.
(1) Um dos 28 estados da Índia, no
sudeste da península indiana.
(2) A deusa suprema.
(3) Árvore típica da Índia, de cujos
ramos pendem raízes e que pode atingir uma grande envergadura.
(4) Título honorífico hindu atribuído tanto a homens
como a mulheres. O termo provém do sânscrito e significa "aquele que sabe
e se domina a si mesmo".
Shenaaz Nanji;
Christopher Corr
Indian Tales: A
Barefoot Collection
Cambridge, MA: Barefoot Books, 2007
(Tradução
e adaptação)