sábado, 4 de fevereiro de 2012
sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012
Sabores e silêncio
Gauguin
Há muitos anos,
estive num campo de férias para crianças e jovens. Não me recordo muito bem,
mas julgo que foi em Miramar. A casa onde estávamos era antiga e solarenga. Se
fosse hoje, talvez reparasse melhor nos pormenores.
Naquela altura,
o tempo era ocupado na praia em reflexões que fazíamos em conjunto, sobretudo
ao fim da tarde (recordo-me da areia fresca e dos tons avermelhados do pôr do
sol).
Tomávamos as
refeições em conjunto e recordo nitidamente duas coisas. Uma foi um grande
raspanete das responsáveis a todo o grupo, que era de dezenas de jovens, porque
havia quem desperdiçasse muito pão. Lembro-me disso quando vejo pão estragado
ou deitado fora.
A outra coisa que me ficou foi o
comportamento de uma das miúdas. Enquanto comia, nunca falava. Mastigava
devagar, olhava as companheiras de mesa, sorria mas mantinha-se em silêncio.
Como achávamos um procedimento estranho, um dia alguém lhe perguntou por que
não falava enquanto comia. Respondeu que era um hábito que tinha adquirido. Era uma forma de descansar um pouco, de retemperar
as forças e de saborear os alimentos.
Confesso que o
caso dela me vem à memória quando vejo, num qualquer restaurante, alguém a
falar muito alto. Apetece dizer: nem saboreia nem deixa saborear.
Meninos, sintam também o silêncio…
Hoje, numa aula
do 10º ano, pedi aos alunos que lessem em silêncio. Fácil? Não, difícil! E isto
porque querem perguntar o significado de uma palavra, porque a alguns custa ler
com a boca fechada, porque lhes ocorre um comentário que não pode esperar, porque
sentem frio e querem fechar a janela, porque acham a sala escura e abrem o
estore, porque de repente se lembram de alguma coisa e cochicham para o colega…
Então, eles
(são mais de vinte rapazes e apenas três meninas) lá fizeram silêncio.
Eu disse-lhes
uma coisa banal: é bom fazermos silêncio de vez em quando. Não sei se fui
eficaz a passar esta mensagem, mas gostei de os ver a ler o texto em silêncio
na sala onde o sol entrava com clara abundância.
E também gostei
de os ver e ouvir, depois, a apresentar as suas conclusões. O silêncio, tal
como a luz, ajuda a compreender melhor as palavras do texto.
Para a turma (10º
1) vai um poema sobre o silêncio. Espero que gostem também de o ler em voz
alta.
Silêncio
É silêncio que pedes,
E é silêncio que peço.
Mas o poema é o som dos leves passos
De uma aventura.
Se nada ouves,
Se nada ouço,
É que não há Poesia.
E, então,
Ai de nós
E da nossa harmonia!
Miguel
Torga
quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012
"Cantiguinha"
Monet
Foi
numa das últimas aulas. A escola a meio gás por já terem acabado as
aulas do 9º e 12º ano. Na turma, iriam ser apresentados os últimos
trabalhos sobre poesia do séc. XX. Dois alunos ainda não o tinham feito e
haviam faltado nas duas últimas aulas. O que me desagradava. A mesa
deles estava vazia: lugar copioso para o repouso das mãos. Como se o ano
escolar já tivesse acabado e o tempo só fosse de passagem e despedida. E
como nada havia sobre a mesa, o que estava mais à mão era o lado do
cochicho. O que me desagradava também.
O tempo já era pouco. Estava calor. Muito calor. Perguntei, então, pelos trabalhos. E o Zé disse: eu não fiz nem faço.
Não gostei do modo como falou. Disse-lho. Ele respondeu que ia mudar de
curso e não valia a pena. E que, na opinião dele, tinha falado
normalmente.
Estava
cada vez mais calor. As janelas tinham de estar abertas. Lá fora
soprava um vento morno. Que fazia tilintar as beiras dos estores em
baloiço irritante de encontro à janela. No corredor, passava um grupo de
alunos ruidosos.
A minha expressão fechava-se, encerrando quase todos os sorrisos. E perguntei à Otília, aluna da mesma mesa vazia: e tu, fizeste o trabalho? A resposta foi não.
De novo o não diálogo. Ela emudeceu. Perguntei-lhe por que não
respondia. Fechou mais o rosto, fez preguinhas com os lábios que cerrou
encolhendo os ombros. O Zé, colega e amigo inseparável, que tinha dito
que não fazia o trabalho, respondeu: ela não diz nada porque se sente constrangida. Estava difícil. Estava calor. E estava na hora de retomarmos os outros trabalhos. Foi o que fizemos.
A
Núria levantou-se, segurando as folhas do trabalho na mão. Dirigiu-se à
secretária, no estrado, onde costumavam apresentar os trabalhos. Os
alunos sentiam que subiam a um patamar mais alto e eu gostava de os ver
subir na visível demonstração dos conhecimentos.
E Núria tinha escolhido Cantiguinha de Cecília Meireles.
Meus olhos eram mesmo água,
- te juro -
Mexendo um brilho vidrado,
Verde-claro, verde-escuro.
Fiz barquinhos de brinquedo,
- te juro -
Fui botando todos eles
Naquele rio tão puro.
Veio vindo a ventania
- te juro -
As águas mudam seu brilho,
Quando o tempo anda inseguro.
Quando as águas escurecem,
- te juro -
Todos os barcos se perdem,
Entre o passado e o futuro.
São dois rios os meus olhos,
- te juro -
Noite e dia correm, correm,
Mas não acho o que procuro.
Cecília Meireles, 1938
Leu
o poema. Referiu temas abordados. Acrescentou algumas figuras de
estilo. Juntou um comentário final. Anexou alguns dados biográficos
sobre a autora.
Disse-lhe para ler o poema de novo. Em voz alta. Devagar. Como a poetisa era brasileira, sugeri: Núria, e se o lesses com sotaque brasileiro? – Eu não sei – respondeu ela com aqueles olhos grandes de quem está sempre à espera de apoio e concordância. Mas ela sabe… e ele… ele também lê bem…
E
a cantiguinha foi adoçando outras leituras em sotaque brasileiro. Leu,
então, a Fábia. Com a sua voz fininha, doce e sorridente. Ó setora, o Zé também sabe… E o Zé leu. De forma suave. Pausada. Soletrada. Prolongando maciamente o refrão «te juuuro…»
Felicitei-o
pela leitura. Ele sorriu. No final da aula, saiu normalmente. A Otília
ficou para trás. Veio falar comigo sobre as últimas faltas. E de não ter
feito o trabalho. Não sabia bem o que se passava com ela. Sentia-se
desligada. Eu disse-lhe que se temos talentos, devemos multiplicá-los e
não desperdiçá-los. Sorriu. Sem constrangimento.
Senti que a esperança pode ser «verde-claro, verde-escuro». Como na «Cantiguinha». Vos juro! Ou melhor, vos juuuuuro!
Escrevi este texto há uns três anos. Foi publicado no blogue Terrear. Apesar de simples, podia ter sido escrito recentemente, por isso o partilho mais uma vez.
quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012
Poema de Aniversário
Salvador Dali
Procurei no dicionário,
Com paciência e cuidado,
O real significado
Da palavra aniversário.
Aquele livro pesado,
Mestre dos visionários,
"Pai dos burros" batizado,
Pareceu-me sectário,
Ao responder meu chamado.
Deveras decepcionado,
Joguei o meu dicionário
Na estante, empoeirado,
Para pregar, solitário,
O meu significado
Da palavra aniversário.
Diz assim, o verbete lendário,
Ontem, por mim criado:
"Aniversário: Espécie de relicário,
Muitíssimo bem guardado
Nas folhas do meu diário,
Dos versos que eu escrevi,
Com todo amor, e não li,
Durante o ano passado."
Com paciência e cuidado,
O real significado
Da palavra aniversário.
Aquele livro pesado,
Mestre dos visionários,
"Pai dos burros" batizado,
Pareceu-me sectário,
Ao responder meu chamado.
Deveras decepcionado,
Joguei o meu dicionário
Na estante, empoeirado,
Para pregar, solitário,
O meu significado
Da palavra aniversário.
Diz assim, o verbete lendário,
Ontem, por mim criado:
"Aniversário: Espécie de relicário,
Muitíssimo bem guardado
Nas folhas do meu diário,
Dos versos que eu escrevi,
Com todo amor, e não li,
Durante o ano passado."
Carlos Eduardo Drummond
Diário de Mariana
1 de
fevereiro 2012
Para a minha
irmã que faz anos hoje
A minha irmã do meio faz hoje anos. Ela vive longe e como a
minha mesada é pequena, não deu para comprar prenda agora, por isso já que posso
escrever neste blog, aproveitei a oportunidade.
Eu adoro a minha irmã. É mesmo fofinha. A minha mãe diz de outra
maneira. Diz que ela é bonita, inteligente e sensata. E meiga. E com muita
sabedoria… Sei lá, diz tantas coisas que eu até digo assim: ó mãe, e eu, e eu
não sou nada disso, pois não? A minha mãe começa logo a justificar-se: ó
querida, claro que és. Não é preciso estar sempre a dizer-te. Minha rica filha.
Dás-me tanta alegria…
Pronto, pelo tom, fico de
novo a saber que sou bonita, inteligente e sensata mas sempre menos um
bocadinho do que as minhas irmãs. Mas não me importo, porque Uma vez a minha Dê
Tê disse que cada um tem o seu lugar no mundo e eu concordo. Um dia, ouvi a
minha mãe dizer a uma amiga: a Mariana é um bocadinho distraída, não é tão aplicada
como as irmãs, mas é tão querida, é mesmo um doce. Eu até parei para pensar: um
doce? Feito com que receita?! Fui ter com a minha mãe e dei-lhe um xi-coração.
Ela percebeu e abraçou-me também com doçura.
Eu gosto de ler, mas da minha irmã, que hoje faz anos, não dizem
que gosta de ler; dizem logo: ela lê muito. Resultado, deve ler mesmo muitos livros do princípio ao fim e não se fica pela
leitura de algumas páginas como às vezes eu faço. Ela anda sempre com um livro
na carteira, para ler em qualquer sítio, mas nunca o estraga. Pega nele sempre
com muito jeitinho. É mesmo altamente.
Outra coisa que eu acho muito fixe é ela deixar o melhor
bocadinho de comida para o fim da refeição. Por exemplo, uma batata frita com
um bocadinho de ovo, um pedacinho de bife sem nenhuma gordura...
A minha irmã já conhece muito bem várias cidades do mundo, mas
não é nada vaidosa. Ela sabe bué de coisas, porque estuda muito. Nunca a vi foi
dar lições a ninguém, mas gosta que a gente explique bem as coisas sem recorrer a generalidades (eu aprendi esta
expressão com ela).
Quando damos algum passeio ou fazemos uma viagem, ela sabe ler
os mapas tão bem que seguimos sempre o que ela diz e dá certo. Se fosse eu a
ver, acho que íamos em sentido contrário. Ela diz que não, porque é muito fixe
comigo e com toda a gente.
Somos muito parecidas numa coisa: temos o cabelo forte e sempre
um bocadinho despenteado. Também não gostamos de andar a experimentar sapatos
novos. Rimos sempre quando falamos dessas coisas.
Eu não tenho lá muito jeito para versos, mas escrevi estes para
a minha irmã que faz anos hoje.
Ó mana querida
muitos parabéns
E muitos beijinhos
Eu te quero dar
Não sei se já te disse
Mas quando estou contigo
Sinto-me tão feliz
Que só me apetece rir e
dançar
Eu não pretendo ser como
tu
Porque não iria conseguir
E sei que me adoras como
sou
Por isso vou continuar
Achando piada à vida
Sempre a rir e a festejar
Maninha, tu merecias muito
mais
E é tão pequenina a minha
prenda
Que até já falei disso
Na página do meu diário
Envio-te muitos beijinhos
Com desejos de um dia
muito feliz
Desta tua irmã que te
adora
E que adora os teus
miminhos
Mesmo sendo eu um ser
imaginário!
Mariana
terça-feira, 31 de janeiro de 2012
A seca também (me) traz memórias
Manet
Desde criança
que me habituei ao ritmo das estações porque a minha família materna estava
ligada à terra. Lembro-me de ver semear e crescer o milho, as batatas… podar as
videiras, vê-las verdejar, formar pequeninos cachos que iam ganhando volume e
cor; apanhar as uvas e trazê-las para o lagar…
Conservo os
cheiros do mosto, dos tomatais, das hortaliças acabadas de colher... assim como
recordo os sons do chiar dos carros de bois de manhã muito cedo, o silêncio quente
à hora da sesta… as cores: o amarelo cintilante do milho na eira, o verde
escuro e claro da erva em plena campo…
Estas imagens
vieram-me à memória por causa da seca que se está a fazer sentir.
Também me
lembro de outros invernos em que não chovia. Os mais crentes rezavam,
implorando chuva. Essa imagem também a não esqueço.
Somos um país de grandes contrastes
Ouvi hoje que
há escolas em que mais de metade das crianças só come uma refeição completa por
dia. E quase sempre na escola. Não sei ao certo as razões, mas será fácil
adivinhar: desemprego dos pais, salários muito baixos, dívidas para pagar, incapacidade
ou falta de vontade de escolher alimentos melhores e mais baratos…
Por outro lado,
vieram à baila alguns jovens que, em diferentes escolas, frequentam o ensino
profissional. Têm direito ao almoço pago na cantina. Porém, alguns rejeitam
a senha que recebem e vão almoçar fora da escola, pagando do seu bolso, quando
podiam tomar, de forma gratuita, uma refeição completa.
Somos um país de grandes contrastes.
segunda-feira, 30 de janeiro de 2012
Artesanal
É de tarde. A
casa está em silêncio. O sol brilha lá fora. Estou sentada ao computador, como
antigamente se estava à máquina de costura.
Costuro
pequenos textos, arranjo umas composições, conserto umas poucas frases, corto algumas palavras, acrescento vários sinais de pontuação…
Vou, assim, talhando
pequenos tecidos, à procura de modelos simples e escorreitos.
Sempre gostei
de linhas, agulhas, novelos, tesouras, dedais… Como gosto de sons, de sílabas, de palavras, de
frases…
Tem razão quem
diz que a escrita também é artesanal.
domingo, 29 de janeiro de 2012
“Realizaram o meu sonho duas vezes”
Domingo de manhã. Ligo a televisão. Sic Notícias. Fala-se de leitura
(tema bastante raro nas televisões!). Fico presa aos diálogos. Com doce
pronúncia do Norte. Crianças, pais e professores falam dos contos partilhados
pelo Clube Contadores de histórias.
Várias
famílias falam das coisas boas que retiram da leitura dos contos: prazer,
conhecimento do mundo, reflexão sobre problemas humanos que nos preocupam…
E foi bonito
ver a família, em casa, à volta de um conto, lendo-o e falando sobre ele.
Os contos
são curtos, ilustrados e, muitas vezes, ocupam só uma folha A4 – dobrada em
forma de livro.
E a leitura,
através dos filhos, tornou-se alavanca para os pais quererem aprender mais e alguns
regressarem à escola. E concretizarem sonhos que não tinham podido realizar.
Uma professora
dinamizadora do projeto referiu, com alegria, a propósito do papel dos jovens leitores:
“Realizaram o meu sonho duas vezes”.
Nota: Fiz uma
formação, há alguns anos, na FLUP, com a Dra Maria do Rosário Pontes, sobre a
leitura. Abordámos muitos destes contos. Através deles, também vou concretizando
alguns dos meus sonhos. Obrigada.
sábado, 28 de janeiro de 2012
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