terça-feira, 9 de julho de 2024

Mas, sem jeito nem paciência, nada feito!


Rosarinha abriu o portão alto e entrou em casa. Estava triste. Queria ajudar o afilhado, mas estava a ver que não conseguia. O Nequita era bom rapaz, mas não estava fadado para ser padre, ia concluindo. Para tal, faltava-lhe espiritualidade e, sobretudo, convicção e empatia. Poderia ser até violência querer fazê-lo seguir um rumo para o qual não tinha nascido.

A ideia da cruz  ao peito, do missal e de se apresentar com indumentária à beato do início do século XX não resultava e tornava-o uma figura caricata. Era o que Rosarinha menos queria e culpava-se a si própria por ter corroborado nesta situação. Custava-lhe dizer que não a quem quer que fosse e muito menos ao padre.

Só a ela própria menos vezes dizia sim, incluindo sobre a sua saúde. Quando ia ao médico, de longe a longe, trazia sempre vários exames que não fazia. Ia adiando até que ficavam esquecidos no envelope que usava para o efeito. Até que um dia ficou doente, muito doente, doença que podia ter sido evitada se tivesse sido vista por um médico mais cedo. Nessa altura, sentiu que era até leviandade e desrespeito por si própria.

Sempre tinha ajudado mais do que tinha sido ajudada, dizia para si própria como revolta ou desabafo. E sofreu bastante com a incerteza do presente e do futuro. Apesar de ser tão religiosa, não concordava com promessas. Parecia-lhe um negócio de toma lá dá cá, ou melhor, dá cá e depois toma lá.

Porém, durante a doença, deu consigo a fazer uma promessa. Se recuperasse a saúde, tentaria viver uma vida ainda mais equilibrada com ela e com os outros. Tentaria ajudar quem precisasse, sem se pôr em segundo plano,  como sempre tinha acontecido.

Neste patamar, entrou o Nequita, em quem o padre depositava confiança, porque gostava de rezar e de ir à igreja, muito mais do que os jovens da sua idade. Como era afilhado da Rosarinha, e viviam muito próximos, o caminho até à vida religiosa seria mais fácil. Rosarinha confiou no projeto que englobava Nequita. Depositava nele a confiança que tantas vezes inculcava pela imaginação.

No entanto, via agora que era quase impossível transformar aquele jovem num ser religioso, amado, confiável e ouvido.

Já na cozinha, começou a fazer o jantar. Aproveitaria o diálogo à mesa para o orientar e aconselhar. De repente, a campainha começou a tocar em desespero.


segunda-feira, 8 de julho de 2024

Rosarinha ficou a olhar para eles


 - Não contava com os dois aqui a conversar a esta hora. Como vai, sr Augusto?

- Como Deus manda e que nem sempre é como a gente quer. E a dona Rosarinha, como está?

- Estou bem, graças a Deus, e hoje tive a alegria de saber que o meu afilhado, se continuar a fazer boas obras, em breve entra no Seminário.

- Ó madrinha, era disso que estávamos a conversar.

- Como assim? Estavas a dar a boa noticia ao Sr Augusto?

- Não, estava a dizer-lhe que tem de ser melhor pai e melhor marido.

- Desculpe, Sr Augusto, o meu afilhado é muito direto. Tem um grande coração e às vezes mora-lhe muito perto da boca.

- O madrinha, então não fiquei de dizer o que disse ao dr Esticadinho?

- Ele tem nome de batismo, Nequita, não te esqueças e, como já temos falado, às vezes temos de dar tempo ao tempo porque ninguém é dono da verdade.

- Ó dona Rosarinha, peço imensa desculpa, dou os parabéns ao Nequita pelo sucesso, que, deixe-me dizer-lhe e com a sua licença, ele só consegue com a sua ajuda, porque a inteligência dele não me parece grande coisa, mas estou cansado e está a fazer-se tarde.

- Graças a Deus, Sr Augusto, o Nequita tem feito muito esforço e muitos progressos, mas compreendo o seu cansaço e irritação. Vá então para casa e peço-lhe desculpa por esta situação inesperada. Se, entretanto, precisar de alguma coisa, ou a sra Nilda, não hesitem e batam-me à porta.

- Muito obrigado, dona Rosarinha, eu sei que a senhora gosta de ajudar.

- Faz-se o que se pode, Sr Augusto, e nem sempre é perfeito. Uma boa noite para toda a família.

Uma boa noite, dona Rosarinha.


- Nequita, queres jantar comigo hoje?

- Claro que sim, madrinha. Está chateada comigo?

- Não, Nequita, não estou, mas tens de saber esperar pelo momento certo, se queres mudar alguma coisa na vida das pessoas.

 - Afinal, madrinha, é  mais difícil seguir a vida religiosa do que eu pensava.

- Nequita, não sejas precipitado e pensa no mundo melhor que, com a ajuda de Deus,  vais construir. Mas, sem jeito nem paciência, nada feito.


domingo, 7 de julho de 2024

O que é que o Nequita me quererá dizer?


Quando o dr Esticadinho saiu da camioneta, deu logo de caras com o Nequita,  bem visível ao longe, com os botões da camisa apertados até ao pescoço, cabelo  com brilhantina e risca vincada, calças pretas, uma grande cruz ao peito e um missal preso na mão que fechava para dentro junto ao coração. 

- Então, Nequita, o que se passa?

- Preciso de falar consigo, mas sem ninguém à nossa volta.

- Isso aqui é mais complicado, mas diz lá, rapaz.

Nequita, olhando-lhe a nódoa da camisa, perguntou:

- O que lhe aconteceu? Foi comer alguma francesinha e descuidou-se? 

- Nada disso, mas diz lá o que precisas porque tenho mais que fazer.

- E se fôssemos caminhar um pouco para conversarmos mais à vontade?

- Caminhar? A esta hora e com a camisa neste estado?

- Vamo-nos sentar então aqui no muro e assim ninguém nos ouve.

- Mas é segredo? 

- Tem a ver com coisas do céu, mas também da terra!

- Diz lá, então, enquanto tenho paciência. 

- Hoje ouvi o Sr padre falar de um livro e de famílias desavindas.

- Ó Nequita, deixa-te de palavras difíceis e  de histórias e vai aos finalmentes. 

- Tenho visto que a Sra Nilda anda desanimada e você nunca está em casa e, se está, está a dormir.

- E o que tens com isso? Ando cansado, rapaz, e a dormir também não faço despesa. Mas, vamos lá ver, Nequita, e se tu te metesses na tua vida a ler os teus missais e a passear a tua cruz?

- Você também tem a sua, que eu sei.

- Mas não ando a carregar com ela ao pescoço pra toda a gente ver.

Nequita  parou uns instantes, olhou o chão, voltou a olhar  para o dr Esticadinho e disse:

- Tem de falar mais com a Sra Nilda, dar-lhe mais atenção e também aos seus filhos. 

- O que é que queres dizer  com isso? Só não te chamo nomes nem te deixo a falar sozinho, porque tenho grande consideração pela tua madrinha,  a Rosarinha.

- E que me tem ajudado muito e, por isso, vou seguindo este caminho que me vai iluminando e que sei que é o que ela quer para mim.

- Tiveste sorte. Muito mais sorte do que eu na vida. Pronto, era este o teu sermão? Então, adeus e amanhã continuamos.

- Sei que não lhe vou pôr a vista em cima, a não ser que eu vá ao Porto, à Casa do Sol.

- Ó Nequita, estás muito bem informado. 

- Tudo se sabe e para a Sra Nilda é um desgosto.

- A minha mulher não é para aqui chamada. Se me fizeres outra espera como a de hoje para sermão e missa cantada, pensa bem no que te vou dizer, até o missal vai rebolar pelo chão.

- Vá, vá, então, mudar de camisa e lavar as suas máculas. Seja você a lavá-las porque a sujidade vem de si. E pense no que eu lhe disse.

Nisto, a Rosarinha saiu da mercearia, a que toda a gente chamava venda, e ficou a olhar para eles.


sábado, 6 de julho de 2024

O prazer fica sempre aquém do desejado, disse ele, já sozinho à mesa

 

O dr Esticadinho, a olhar para a nódoa da camisa, até se esqueceu de que a Maribel o tinha deixado sozinho à mesa. Já a conhecia há uns anos e sabia desse seu  hábito que o irritava e a outros clientes. Ou melhor, amigos do peito, como elas diziam. Quando ela ouvia uma conversa mais divertida entre as colegas, levantava-se logo da cadeira, se o momento não era de sedução,  e lá ia ela saber o que se passava.

No momento, a Lurdes ria-se com aquele seu riso meio fechado e arrastado. Quem não a conhecia ficava na dúvida se era riso ou se era choro.

O que estaria a contar Lurdes? Interrogou-se ele, com a cabeça ora mais esticada, ora mais baixa, fixando e maldizendo a nódoa.

Daí a nada, saiu da mesa e juntou-se ao grupo à volta de Lurdes. Era da maneira que não pensava na malfadada nódoa da camisa. Sempre impecável e aquela nódoa a manchar-lhe a indumentária e a reputação! Raisparta.

E como o bife com as batatas fritas e o ovo a cavalo lhe tinham sabido bem! Um festim. Boa fritura, bom tempero. Este manjar não lhe saía da cabeça há muito tempo. Hoje, finalmente, tinha-lhe escorregado, deliciando tudo até ao estômago. E tinha que vir aquela nódoa tirar-lhe o prazer do momento. Vinha à Casa do Sol para ser feliz e ter prazer e, afinal, até neste ninho de ternura descobria que o prazer fica sempre aquém do desejado!

Levantou-se devagar, arrastou a cadeira consigo e sentou-se bem perto do grupo. E Lurdes foi contando:

- Como a minha avó era muito religiosa, quando eu era adolescente, inscreveu-me uns anos seguidos num campo de férias, orientado por freiras. Havia uma que não tinha paciência para nada e um dia deu um estalo numa miúda do nosso grupo. Ficámos furiosas. Tínhamos de fazer alguma coisa para vingarmos o que se tinha passado.

- E o que fizeram?

- Esperem um bocadinho senão perde a graça.

E continuou:

- Como sempre, ao fim de tarde, fomos com essa freira escrever pensamentos, num caderninho próprio. De repente,  reparámos que, junto de nós, havia  pulgas da areia, sempre a saltar. Mesmo sem nos levantarmos, apanhámos muitas para um saco de papel e, sem a freira reparar, despejámo-lo no saco preto de asas que a freira tinha deixado atrás de si. Quando nos preparávamos para ir embora, ao pegar no saco, a freira deu conta das pulgas que lhe tinham invadido o saco. ‘Ai, meu Deus’ - repetia ela vezes sem conta e aos gritinhos.

- E depois, e depois?

- Quando nos viu todas a rir, mandou-nos rezar o terço, e só nos pudemos levantar depois de terminada a salvé-rainha, apesar de a areia ter ficado gelada.

O dr Esticadinho ouviu a história, sorriu e disse de forma lenta:

- Até nisto o prazer fica aquém do esperado! São horas de eu ir andando. Um vizinho meu, que por acaso também é muito religioso, disse-me que precisava de falar comigo ainda  hoje.  O que é que o Nequita me quererá dizer?


sexta-feira, 5 de julho de 2024

Quando regressava a casa, é que era um sarilho

 

O dr Esticadinho chegou a casa e logo se estendeu na cama, ou melhor, deitou-se depois de ter tirado o fato, que pendurou, meticulosamente, no cabide que era só dele e aí de quem o tirasse daquele lugar. Se tal acontecesse, os berros tremendos até faziam tremer cá fora.

Deitado por cima da cama, em cima da coberta macia e bem esticada, como sempre exigia, o seu corpo estreito e magro lembrava um quase esqueleto com alguns tufos de pelos escuros a sair da pele seca e branca. Perguntou o que era o jantar. Sardinhas fritas com arroz de feijão, respondeu Nilda, já a fazer o estrugido. 

- Os fritos fazem-me azia. Até o cheiro me incomoda.

E foi resmungando que já não bastava o barulho das crianças, a gritaria da rua, o falatório das vizinhas, a loiça esbotenada, não ter mimos como precisava… 

Se Nilda reagia, ele exaltava-se; se ela se calava, ele exaltava-se na mesma.

Nilda sabia onde ele passava quase todas as tardes, depois que veio para casa por invalidez. Nesse dia, ele até rejubilou. Ia ganhar muito pouco, é certo, mas não tinha de aturar o patrão nem os colegas, nem tinha de se levantar tão cedo, nem andar nos transportes públicos em horas de ponta. O dinheiro ia esticando, porque as vizinhas davam roupa para os filhos, ele tinha dois fatos que duravam muito porque tratava muito bem deles. Sobre a roupa de Nilda não sabia nem muito nem pouco, porque não tinha tempo nem vontade para reparar, mas devia estar mais ou menos. Nas poucas saídas a dois, as pessoas olhavam-na de alto a baixo, o que o incomodava e levava a esticar-se ainda mais, porque gostava de ser ele o centro das atenções. 

Para a comida, o dinheiro também ia dar, porque em casa só entrava comida barata. O que valia era o sr Salomão, da família da Rosarinha, que vivia sozinha na casa alta e de pedra. Ele tinha um barco de pesca e, quando a faina corria bem, trazia peixe e distribuía-o pela aldeia. As mulheres vinham com as suas baciinhas e levavam-nas cheias para casa. Tinham peixe para várias refeições. Era pena era ter de ficar dentro do mosqueiro porque o frigorífico era luxo dos ricos. Também os lavradores eram generosos e davam hortaliças dos seus campos, em tempo de fartura.

Mesmo assim, às vezes, andava desconsolado e um dia comprou um bom bife só para ele, sem dizer nada em casa. Levou-o para a Casa do Sol e pediu que o fritassem com batatas e ovo a cavalo. Consolou-se com a companhia e com o pitéu. O pior foi a nódoa de gordura que lhe caiu na camisa, apesar de ter posto um guardanapo bem preso ao pescoço. Raisparta!

O prazer fica sempre aquém do desejado, lamentou, já sozinho à mesa.


quinta-feira, 4 de julho de 2024

Julgo que já falei dela, mas não lhe disse o nome

 

Se, ao domingo, pelas nove da manhã, passar pela paragem da camioneta, sei que vejo Nilda, de seu nome, e nascida  há quase oitenta anos. O cabelo ondulado lembra qualquer atriz dos anos vinte. O fato de saía e casaco, em tons claros, que veste habitualmente quando o dia se prevê de sol, é antigo, tal como a blusa de nylon, com preguinhas no colarinho e botõezinhos doirados. E saltam à vista os brincos compridos, o alfinete e as pulseiras, tudo com preciosas pedras de tão baratas mas bonitas e a condizer.  Ah, e também um relógio de pulso que só usa precisamente ao domingo, dia de ir ao Centro Comercial ter com o grupo em que todos esperam por todos, sempre à mesma mesa.

Enquanto não vem o transporte, quem passa diz bom dia e Nilda responde com palavras risonhas. Quando entra na camioneta, logo reconhece passageiros do domingo. E tudo continua próximo e familiar até ao Porto.

Um dia, uma companheira de assento gabou-lhe a roupa que trazia vestida e ela logo se apressou a dizer que era muito antiga, mas que muito estimava porque cada peça que usava tinha uma história. Nem sempre bonita, acrescentou com um sorriso meigo, ainda que amargo e amarelecido.

A roupa vinha-lhe do tempo em que o marido - o dr Esticadinho, como era conhecido  - estava vivo. Ele era de compleição estreita, comprida e bem esticada, daí a alcunha. 

Fosse inverno ou verão, usava um fato branco, camisa branca e sapatos que limpava com tino e esmero para também não perderem a alvura. Se as nuvens do céu anunciavam chuva, calçava os sapatos com recortes pretos, mas a meia, essa tinha de ser branca como  a cal, não como a do muro do caminho que estava suja, mas como a da parede da habitação bem próxima, a única casa bonita da rua, e a única com portão alto. 

Quando passava junto à casa alta e de pedra, não havia vez nenhuma que não olhasse lá para dentro. Tinha pena de não ser rico, mas só na Casa do Sol, na ruazinha apertada e sombria do Porto, com cheiro a fritos,  se sentia com coragem de o dizer porque as interlocutoras tinham tempo e bom humor.

Quando regressava a casa, é que era um sarilho.

quarta-feira, 3 de julho de 2024

A leviandade às vezes fica bem!

 

Não deve ser bem o significado que vem no dicionário, mas, para mim, na palavra leviano cabe também o sentido de encarar certas coisas mais complicadas de forma mais leve. Para não sofrer, para não interligar com outras mais profundas e dolorosas, e, muitas vezes, para que as outras pessoas com quem se interage não tenham acrescidos motivos de inquietação.

Talvez eu esteja a ser abstrata.

Clarificando: a alguém é comunicado que tem uma doença grave, fica triste, o problema não lhe sai da cabeça, mas, ao falar do assunto, parece menorizar o mal para não se inquietar tanto nem aos outros. Parece leviandade, mas pode fazê-lo pela lei do menor esforço, por alguma generosidade, e, porque não dizê-lo, também para se convencer de que o seu caso poderá ser menos grave do que lhe é apresentado.

E se a leviandade, nestes moldes, ajudar à cura e à redução da preocupação de quem está próximo, pode ter as suas vantagens. Em dose qb, é claro. 


terça-feira, 2 de julho de 2024

Há dias assim

 

Há dias em que acordamos cedo e apetece logo levantar e sentir o cheiro do café  quente e ouvir os pássaros e regar as flores e fazer o que ficou por fazer do dia anterior, quase sem pensar na vida que se abre em tudo que tocamos. Tão natural como a nossa sede.

Há outros dias em que quase nada disto acontece. E parece que o presente estagna por desconhecimento e receio do futuro. E a boca seca ainda que da torneira continue a jorrar água.

Há dias em que apetece organizar tudo porque a vida promete; existem outros dias em que muitas das palavras ouvidas pintam os sorrisos de amarelo.

Há dias em que se ouvem as crianças a falar de borboletas e logo esses seres surgem aos nossos olhos e voam, risonhos, na nossa memória.

Há dias em que as borboletas parecem desaparecer porque não veem flores onde pousar.

Há dias e dias, como há mar e mar. Fique sempre a esperança de a melhores dias voltar.


domingo, 30 de junho de 2024

Previsões intensas


Nos últimos dias, mais uma vez, o meu telemóvel anunciava chuva e trovoada intensas. Ora, eu que, se puder, fujo das trovoadas como o diabo da cruz, vendo estas previsões, fico logo em alvoroço e só penso como mudar os planos, se os tiver, é claro.
E, com frequência, lá estou eu a ver no mesmo site a que horas chega a chuva intensa e a trovoada também intensa. Porém, o que vejo eu? Ele é céu nublado, ele é sol a espreitar e pouco mais.
E as horas vão passando, as noites e os dias também e as tempestades anunciadas ficam pelo caminho. Ainda bem, mas porque foram tão anunciadas para tantos lugares tão fora da sua rota? 
Como as palavras andam sempre interligadas, é caso para dizer:  ‘Cão que ladra não morde’ ou, então, o que é pior, eis outra coisa em que não se pode confiar.
Como ainda estamos em maré de santos populares, 

Aí que bom não haver
A anunciada tempestade
Retirou-se ou perdeu-se?
Vá lá, digam a verdade!


sexta-feira, 28 de junho de 2024

O balcão número 3

 

- Boa tarde!

- Tirou a senha?

- Sim,  aqui está.

- Para que é?

-Venho fazer este exame e queria marcar uma consulta.

- Uma coisa de cada vez.

- Quanto  vou pagar pelo exame?

- Estou a preencher o formulário, não posso fazer tudo ao mesmo tempo.

- Não há problema, eu aguardo.

- Tem de ser. Não é chegar e vencer.

- Também  não era essa a minha intenção. Apenas quero fazer o exame e marcar uma consulta. Estou na minha vez.

- É que os médicos têm marcações. A consulta não pode ser logo logo.

- Também não disse que queria já já.

- Mas há pessoas que julgam que só os outros têm de esperar.

- …

- Pronto, aqui tem. A seguir, vão chamá-la para fazer o exame. Para a consulta só tenho vaga às cinco horas.

- Marco  então para a semana. São só duas horas e tenho de ficar muito tempo à espera. É para renovar a carta de condução e ainda tenho algum tempo.

- Então, já podia ter dito, porque há mais gente à espera.

- …

- Dona Maria…, pode acompanhar-me, por favor. Ora vamos lá fazer o nosso exame. Não vai custar nada, vai ver.

- Nem sei que diga, porque tenho várias perguntas a fazer, mas receio sobrepor alguma e que me leve a mal.

- Por que diz isso? Esteja à vontade. Estou a ver que vem do balcão número 3!!!!


quinta-feira, 27 de junho de 2024

Ó meu rico S. Pedro


Já passou o Sto António

E também o S. João

Vem agora o S Pedro

Haja festa e balão


És o último, deixa lá

Como se costuma afirmar

Os últimos são os primeiros

E vale a pena esperar


Em muitos sítios és rei

Um querido padroeiro

Não perdes a compostura

Desejado mensageiro


Como tens as chaves do céu

Abre as que puderes

Torna mais felizes os homens

Mas não esqueças as mulheres


terça-feira, 25 de junho de 2024

A meio gás


Ontem, 24 de junho e dia de S. João, era feriado no Porto. Como vivo em concelho vizinho, verifica-se um misto de procedimentos. Há quem folgue e quem trabalhe; veem-se portas abertas e outras fechadas… Tudo parece acontecer a meio gás.  E não é que acho piada a isso?

Pois bem, logo pensei: tenho análises para fazer e será da maneira que não encontro fila. E, pelas oito da manhã, lá estava eu. Fui a primeira, disse-me a enfermeira que logo me perguntou se eu tinha feito o jejum necessário, porque a noite tinha sido de folgar até tarde, com sardinhas e febras à mistura.

Confirmei. Não, não fui à festa, disse eu. E fiz-lhe a mesma pergunta, porque não havia ninguém à espera e o gabinete era só nosso. Tinha feito a festa em casa, disse ela. E ainda falámos das correntes no rio Douro que quase impediam o fogo de artifício na Ribeira, o que estragaria a Festa. No final, desejámo-nos um bom dia de S. João.

Já junto ao balcão:

Olá, não me estás a conhecer?

Claro que estou,  como estás?

Estou cheia de caruncho, ando manca… venho fazer exames.

E a conversa continuou mais um pouco neste tom. E, olhando-lhe o rosto, parecia que ainda há pouco éramos adolescentes, dávamos alegres gargalhadas, tínhamos sonhos e os olhos sorriam com os namoricos.

Volto para casa. Deito de comer à Castanha e são poucos os carros que passam na rua. Sabe-me bem o silêncio. Até as hidrângeas dos canteiros me parecem mais nítidas e bonitas.

Talvez seja boa altura para ir também à Loja do Cidadão tirar os documentos que me faltam. Procuro na net. Há serviços abertos. 

E fui.

Afinal, também à Loja do Cidadão estava a meio gás, isto é, uma porta estava aberta, outra fechada.

As pessoas em espera contavam-se pelos dedos. Tiro a senha. Vejo alguém a fixar-me e a sorrir. Alguém que conheço há muitos anos e que, apesar de nos encontrarmos poucas vezes, temos sempre assunto. Daí a nada, estávamos com os telemóveis a mostrar as fotos dos netos  - para cada um de nós os mais lindos do mundo.

Quando chegou à minha vez, tratei metade dos assuntos que queria, nada mau, em dia de S. João, um dia a meio gás, com bocadinhos bons de suaves e antigas amizades dentro.


De regresso a casa, ouvi o podcast ‘O coração ainda bate’, de Inês Meneses. O episódio de hoje  - A idade maior - fala do ‘privilégio da amizade’.

https://podcasts.apple.com/pt/podcast/o-cora%C3%A7%C3%A3o-ainda-bate/id1543484053

Em dia de instituições a meio gás, soube bem ouvir este programa tão bem escrito, tão bem dito, tão profundamente arquitetado, e que dura apenas 6 m. O dia continuou amigavelmente devagar. Gosto de dias assim.


segunda-feira, 24 de junho de 2024

Várias vezes fui ao Porto

 

Várias vezes fui ao Porto

Na noite de S. João

Na cabeça, o martelinho;

No céu, a luz do balão.


E em muitas ruas se via

Uma rusga a aparecer

Com arquinho e balão,

Tudo lindo de morrer!


De manjerico e cidreira

A noite era perfumada;

O alho porro e a arruda

Para a malta ataviada!


Muito se fazia ouvir

O martelo brincalhão.

Se a cabeça era careca,

Maior era a animação.


Há muito não vou ao Porto,

Em noite de  S. João,

Prefiro ver à distância

A alegre multidão.


E a bela sardinha assada,

Na brasa a fumegar,

À espera da bela broa

Pra nela poder pingar!



Pudesse eu voltar atrás,

Talvez lá quisesse rever

As minhas filhas pequenas,

Podendo vê-las crescer.


O resto lá foi passando,

Ficando-me na memória.

Foi ave que já voou

Morando na trajetória.



domingo, 23 de junho de 2024

Ó meu rico S. João!

 

O meu rico S. João,

Temos tido a vitória;

Sabendo jogar a bola.

Venha então nova glória!


E não só no futebol,

Mas na vida em geral;

Tanta verdade que falta,

Não mentira em Portugal.


Há tantas meias verdades,

Tanta gente a enganar,

Para, subindo ao podium,

Prémio único ganhar!


S. João, é bom rever-te,

Aqui pertinho de nós.

Aumenta os bons exemplos

Pra não nos sentirmos sós!


E quando dissermos gooolo!

Que seja grande a alegria!

Não pra mostrarmos vingança!

Mas pra termos confiança

Que melhora cada dia!


terça-feira, 18 de junho de 2024

‘Verão’


 

O croquete e a maçã

 

Ontem e hoje, em tudo que é revista ou programa cor de rosa ou de outra cor qualquer, logo se ouve ou lê sobre a expulsão de Sónia Tavares, cantora dos Gift, do Rock in Rio em Lisboa.

Estando ela a fazer reportagem para a SIC, e, comendo um croquete da mesa, foi severamente admoestada por alguém da organização, que lhe retirou a pulseira de acesso à zona e a levou por um braço para fora do espaço vip, onde estava a trabalhar, juntamente com Bárbara Guimarães.

Se calhar, há razões de parte a parte para que a trinca no croquete pudesse ser dada e notada, mas ser expulsa e exposta daquela maneira, sinceramente, não havia necessidade, acho eu, que sou um ser anónimo que não vai a festivais de verão nem frequenta zonas vip, embora também goste de croquetes.

Esta história do croquete fez-me lembrar uma situação desconfortável, que se passou comigo há bastantes anos. De vez em quando, íamos, em família, passar férias ao Algarve, quase sempre num aldeamento. Uma vez, resolvemos puxar os cordões à bolsa e fomos uns dias para um hotel de uma cadeia conhecida e nada barata.

Pois bem, uma manhã, depois do pequeno almoço, olhei para uma maçã, que parecia bem saborosa, tipo tentação de Adão e que ruborescia num cesto de fruta bem próximo. Peguei na maçã, e fui saindo, inocentemente, com ela na mão,  Poderia, assim, satisfazer o slogan saudável: ‘Ao meio da manhã, coma uma maçã.

O que eu desconhecia era que, no hotel, as regras não permitiam levar alimentos para o exterior da sala. Por isso, o funcionário, à saída, logo me chamou a atenção para a infração que eu estava a cometer e lá tive de deixar a bela e tentadora maçã em cima do balcão. Não sou muito de corar, mas sentia imenso calor na cara pela vergonha, ou pecado que vinha de longe, também por causa de uma maçã. 

Mais valia - pensei eu depois - ter dado uma trinca na maçã e, por certo, já não teria de a devolver, nem passaria por aquela vergonha. 

Quando vejo o símbolo da Apple, lembro-me sempre da trinca que, naquele dia, podia ter dado na maçã, se tivesse tido mais coragem.

Pelo que sei, Adão nunca se arrependeu.

sábado, 15 de junho de 2024

Deixem-nos desfrutar!

 

Tendo ouvido as últimas notícias, apetecia-me dizer: Deixem os professores aposentados descansar! E fazer coisas diferentes de que gostam. Sem tantos horários a cumprir. Sem tantos constrangimentos burocráticos. Sei, contudo, que ‘cada caso é um caso’. Conheço docentes - poucos, é claro - que quiseram, por sua livre vontade, continuar a trabalhar até aos setenta anos.

Compreendo a proposta que o governo (vinda por certo de alguém que não deu aulas dezenas de anos a fio)  emitiu para que professores aposentados possam trabalhar, mediante pagamento, e assim ajudar a resolver o grave problema da falta de professores nalgumas disciplinas. Outras medidas parecem-me, porém, mais enquadradas no contexto, como o pagamento de propinas a candidatos a cursos de educação, uma vez que há pouquíssimos jovens que querem ser professores.

Voltando aos professores aposentados que poderão voltar à escola, o dinheiro pago, em muitos casos, não compensa o desgaste que inclui também a reação de alunos perante professores, para eles velhíssimos, e que consideram desatualizados.

De facto, sem pôr em causa a sua competência e boa vontade, facilmente se confrontarão com a dificuldade em dominar sobretudo novas tecnologias e técnicas para porem os alunos a trabalhar de forma alegre, motivada e ativa.

Sem esquecer que há exceções à regra.

Tenho uma amiga americana, da Califórnia, professora aposentada e que faz trabalho periódico na escola há muito tempo. Diz ela que se sente bem em fazê-lo e ganha assim dinheiro para pagar as viagens que gosta de fazer.

Cada um sabe da sua vida, mas acho que, entre nós, não haverá muitos candidatos para esse trabalho. Se houver, na minha opinião, passado algum tempo dirá:

- Já fiz o meu papel durante muitos anos, agora, deixem-me desfrutar! 

sexta-feira, 14 de junho de 2024

O pombo persistente



Era uma vez um pombo

Que vi em praça londrina

À volta de uma migalha

Ou semente peregrina


Dava-lhe forte bicada

Com desejo de a apanhar

Mas nunca mais conseguia

Fazê-la no bico entrar


Mas nada de desistir

O pombo era persistente

Sem deixar de ir à luta

Como via tanta gente


E assim fiquei um tempo

Esta cena a observar

Pra saber quem poderia

Esta luta então ganhar


O tempo foi passando

E resolvi sair dali

Sendo menos persistente

Do que o pombo que ali vi.


Não sei portanto o desfecho

Mas continuo a pensar

Que a migalha ou a semente

No chão não iam ficar!


quinta-feira, 13 de junho de 2024

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Você, a correção e o riso!

 

Em criança, nunca fui habituada a dizer ‘você’ aos meus pais, avós, tios, isto é, aos mais velhos. Também não os tratava por tu, porque o tempo não era para grandes aproximações.

Essa prática devia-se sobretudo à minha mãe e às minhas tias (eram 13 irmãos) que, não tendo casado, ficaram na casa antiga e de lavoura, onde todos nasceram.

Elas prestavam muita atenção às palavras e às formas de tratamento. Não tinham estudos - exceto o irmão padre - mas cuidavam muito da expressão linguística, sobretudo as que gostavam de ler. Apesar de alguma austeridade, tinham bom humor e as palavras incorretas que ouviam davam sempre para serem contadas com graça na varanda ou na cozinha.

Pois bem, graças sobretudo a esse ramo da família, os meus irmãos e eu sempre aprendemos a dizer: - o pai/ a mãe quer? Em vez de dizer: Você quer? 

Estava implícita alguma (às vezes muita!) formalidade.

Tive muitos alunos que diziam: - Ó professora, você… 

E como aqui no Norte trocamos os vês pelos bês, o você saía bocê. Por aí não vinha mal ao mundo, porque cada região poderá ter a sua forma de pronunciar as palavras e nenhuma é mais correta do que outra. Tal como diz o provérbio, cada terra tem seu uso, cada roca tem seu fuso!

Nesses momentos, eu chamava a atenção para a forma de tratamento - eu era muito mais velha e havia uma hierarquia - apesar de o diálogo se estabelecer com bastante naturalidade, aconselhando-os a dizer:  - A professora… em vez de você. Isso valia para, por exemplo, o desempenho ser melhor em futuras entrevistas de emprego, etc., em que todos esses elementos contam.

Muitos alunos nem sequer tinham pensado no assunto, porque assim haviam sido habituados. E alguns até acrescentavam: - Mas não é falta de respeito!


Reparo que já escrevi muitas linhas e ainda não cheguei à peripécia que queria contar. Não estivéssemos nós no tempo das cerejas!

Pois bem, um dia destes, o meu neto, que tem três anos, disse-me:  Avó, você já vai embora?  

Não consegui conter o riso.

Donde viria o você, se em família quase todos nos tratamos por tu e é palavra pouco usada cá em casa? E, como a fama das avós é serem permissivas, logo ouvi: - Mãe, deve ser dos desenhos animados que o deixas ver.

E não é que a forma de tratamento, que sempre tentei evitar ou corrigir, me fez achar graça vinda do meu neto? Não devo ser a única. Ele há coisas! 

Seja como for, quando o ouvir dizer você, vou corrigir, até porque há muita proximidade entre nós e tratamo-nos por tu. Não sei é se consigo fazê-lo sem me rir.

 

terça-feira, 11 de junho de 2024

Ó meu rico Santo António!


Não comprei o manjerico

Como é costume fazer

Não se pode comprar tudo

O importante é viver


Ó meu rico Sto António

Não entres em euforia

Mas não deixes de trazer

Ao mundo mais harmonia


Gosto de ver a cascata

Com prato prà moedinha

A fartura não é muita

Que não falte comidinha


Não te peço muita coisa

Santo de boa figura

Mas não deixes de aumentar

A educação e cultura


Tanto problema existe

Difícil de resolver

Mas evita um muito grave

Que são crianças a sofrer


E agora faz a festa

De sardinha aí que cheirinho

Que haja paz e alegria

Muito abraço e beijinho


segunda-feira, 10 de junho de 2024

O zapping de ontem

 

Ontem, estive a ver os resultados eleitorais até se conhecerem os números  definitivos. E fiz ainda mais zapping do que costumo fazer. 

Fiquei contente com os resultados finais e muito, muito mais com a estrondosa redução de votos no partido de André Ventura. Só por isso foi um dia bom para a democracia. Ele não tem feito nada bem ao país, pelo contrário, por isso merece que se chegue para lá.

E a mim, que sou católica, que tenho algumas virtudes e muitos defeitos, custou ver esse dono da voz de todo o partido, de joelhos, a rezar. Quem será o seu deus? Não é o Deus da misericórdia, com certeza. Se fosse, não seriam espalhadas tantas mentiras, tanta discriminação, tanto desrespeito por quem é diferente ou vem de país diferente.

Julgo que à volta de meio milhão de eleitores não votou nesse partido, tal como nas eleições anteriores. E não deve ter sido só pela falta de jeito do senhor embaixador-velejador, candidato ao parlamento europeu por esse partido. Foi lançado às feras pelo dono da voz do partido todo, embora o tornasse invisível de vez em quando, para ficar sempre ele na fotografia.

Com o tempo, as pessoas vão percebendo quem as quer ajudar e quem as pretende enganar, embora os vendedores da banha da cobra façam tudo para parecer que não cobram nada.

Oxalá esta extrema-direita vá secando e não haja maus motivos para a regar, porque a sede é grande e, para os populistas, o copo parece sempre vazio. E o zapping que fazem, no seu motor sedento de busca, nunca é inocente.


domingo, 9 de junho de 2024

Vou votar em mobilidade

 

Hoje é dia de eleições europeias.. E vou votar, é claro, como sempre tenho feito. Acho que, desde que vivemos em democracia, só não votei uma vez. 

Acho bem que tenham pensado em alternativas para a escolha do local de voto, não só por causa dos feriados, mas porque pode motivar mais à participação, tornando o ato mais natural e menos rígido.

Estou até com alguma curiosidade para ver como funciona.

Logo às oito da noite, conto estar atenta para saber se as sondagens acertaram ou se foram apenas sondagens, como dizem os políticos quando os resultados não agradam ou querem conter o entusiasmo.

Tenho as minhas convicções e espero que a minha candidatura preferida ganhe. Se não ganhar, paciência, embora preferisse a vitória. O que é preciso é que quem for para o parlamento europeu continue a defender direitos e deveres, como, no geral,  foi proclamado na campanha eleitoral, para que na humanidade haja avanços e não retrocessos. 

Dos candidatos,  lamento, porém, a presença do velho senhor, que é ou já foi velejador, não pela idade, mas pelas ideias que defende e que se move em águas de desventura.

Quando o dia começar a declinar, veremos os resultados. 

Convinha era não haver outras eleições em breve, senão, mesmo com mobilidade, ganha a vontade de desmobilizar.


sexta-feira, 7 de junho de 2024

Que calor!

 

Digo também: ‘Que calor!’ Mas não me posso queixar! Não tenho de entrar em autocarros cheios, nem comboios a abarrotar, nem andar a pé e à pressa para chegar a horas ao emprego, nem trabalhar em lugares quentes com pessoas frias que ainda ficam mais frias com o excesso de calor…

Entre o dia de ontem e o dia de amanhã, intercalou-se um dia de calor que, dizem as previsões, arrasta poeiras, desaba em chuvas e rebenta trovoadas. Desde pequena, que relâmpagos e trovões me apavoram. 

Em criança, ouvia repetidamente que as trovoadas eram castigos de Deus pelos pecados cometidos. Com os ensinamentos da vida, fui-me afastando dessa noção de Deus castigador, ideia que, tantas vezes, servia para aumentar ou calar outros grandes medos quando a liberdade era muito pequenina.

Mas, pelo que se ouve e sabe, mesmo empiricamente, muitas tempestades atuais resultam da acumulação de erros de muita gente e ao longo de muito tempo. 

Iremos ainda a tempo de reduzir problemas como o excesso de calor e outros fenómenos climáticos que atingem e adoecem os diferentes continentes?

Ser otimista, também neste caso, poderá ser estimulante para se melhorar o que se faz, ou que ainda não se faz e que, facilmente, se pode fazer para benefício de todos e de cada um.

E para que não se diga, aflitivamente, em tantos sítios do mundo: Que calor!


quarta-feira, 5 de junho de 2024

Despojamento

 

Hoje passei uma boa parte da manhã a arrumar uma divisão da casa  que já estava à espera disso há muito tempo. Eu, pelo menos, estava, mas demorou a começar: umas vezes porque não havia tempo, outras, porque faltava vontade…

E, como estamos no tempo das cerejas (hoje comi algumas e souberam-me muito bem), umas coisas puxam outras. Recuei então ao tempo em que as minhas filhas eram pequenas e passávamos férias no Algarve. Tínhamos um Mini, onde cabíamos os quatro, mais as malas, mais uns sacos, mais um lanche e garrafas de água…

Nessa época, eu tinha o fraquinho pelo artesanato do Alentejo e por cestos em vime do Algarve.

Portanto, na viagem de regresso, o pobre do Mini aguentava também com cestos algarvios (alguns ainda duram) não muito pequenos e pratos ou outras peças do Redondo, que ainda conservo, embora já tenha dado algumas.

Ah, e da zona de Almeirim, ainda trazíamos um melão ou melancia e pequeninas abóboras decorativas.

E não havia autoestrada nem ar condicionado. Nem telemóveis. Saiamos de madrugada e, ainda assim, apanhávamos filas intermináveis. Éramos jovens, os perigos espreitavam, mas quase não os víamos.

Era o tempo da acumulação de objetos. Vou-me despojando, no entanto, de algumas coisas e não sinto vontade de ocupar esses lugares que ficaram vazios. 

Agora, procuro rentabilizar o que tenho. E, quando faço arrumações, vou separando coisas para dar, para levar à loja social, para conservar pelo valor afetivo que algumas coisas têm…

E, apesar de achar que agora um Mini seria demasiado pequeno, cada vez gosto mais da palavra despojamento.


terça-feira, 4 de junho de 2024

Os biscoitos souvenir


Sempre que eu ia a Londres, trazia uns biscoitos ou bombons para a minha mãe. De preferência em caixa ou lata bonita, que também valorizava. E depois sempre lhe arranjava serventia.

Agora, que já cá não está, quando vou e antes de eu regressar, vem-me sempre à memória essa necessidade que criei e que parece estar ainda presente. Apesar de preferir não trazer sacos no avião, para além da carteira, mesmo no aeroporto, dou comigo a pensar nos biscoitos souvenir para a minha mãe. Caio ‘na real’, lembrando-me que já não.

Um vez, juntamente com os biscoitos sempre bem-vindos, trouxe um postal com uma foto da rainha, que tinha a idade da minha mãe, e de quem a minha mãe era uma grande fã. Outras vezes, trazia pagelas de santos de uma qualquer igreja aonde eu entrasse. Ela recebia estes objetos, acarinhando-os, como se fossem únicos.

Também cheguei a trazer-lhe sementes, que ela, com os seus cuidados, ajudava a crescer e a florir, aproveitando bocadinhos de terra livre, como tantas vezes se vê em Londres, cidade que nunca visitou.



segunda-feira, 3 de junho de 2024

A guia

 

Era tarde de sábado, não chovia, o que era bom para fazermos a visita guiada já marcada à City, em Londres.

Chegámos ao ponto de encontro - de vários grupos para diferentes visitas - bem perto da majestosa Torre de Londres. Como ainda faltavam alguns minutos e um espaço verde se estendia ao nosso lado, o mais pequenino começou logo a correr na relva e a mais crescida a fazer a roda, toda consolada.

Chegaram as catorze horas - a mesma hora no Porto, como dizem nos aviões - e aproximámo-nos de uma guia. Sim, seria ela a guia da visita à City.  Éramos doze visitantes, incluindo as nossas duas crianças. 

Começámos por uma zona muito antiga, onde em séculos anteriores vivia muita gente que acabou por morrer ou afastar-se devido ao grande incêndio de Londres, ou à chegada do comboio, ou à primeira guerra mundial.

Ora, a este texto dei o título ‘A guia’ e ainda não falei dela. Pois bem, teria uns sessenta anos, era muito expressiva, parecia bem informada e tinha sentido de humor. Ah, e fazia muitos gestos com as mãos pequenas e magras, sobressaindo as unhas muito compridas. Usava gabardina preta e, ao ombro, um saco vermelho de tecido, já bastante usado e que nunca saía do sítio.

Como eu gostaria de ter percebido muito mais do que ela dizia. Às vezes, quando as pessoas se riam, eu apenas sorria por simpatia. O que vale é que a minha filha que vive em Londres ia-me fazendo o ponto da situação.

Circulando entre os edifícios modernistas, espelhados e altíssimos, fomos sabendo também que há alguns que deviam ser implodidos, mas que não o são por falta de espaço. 

No final, a guia, que havia sido professora, elogiou o comportamento dos nossos meninos. Ficámos contentes. 

Sabe elogiar e olhar para todos enquanto comunica, pensei eu.

Terminámos a visita numa praça bonita, onde, no subsolo, havia ruínas romanas. A guia despediu-se de todos com o sorriso que sempre manteve ao longo das duas horas sempre a comunicar e imaginei-a a chegar a casa e a estender os braços e as pernas no sofá-alivio.

Felizmente na praça também havia bancos e logo procurei um. Que bom poder descansar um bocadinho, pensava eu, enquanto a minha neta aproveitava a praça com pouca gente para correr e fazer a roda. Que bom poder fazer mais movimento, pensaria ela. 



Fui à primeira sessão e gostei muito

 


sábado, 1 de junho de 2024

Acho que em Portugal não aconteceria!

 

Há uns dias, uma senhora velhinha e muito frágil foi a um Centro de Saúde a poucos quilómetros do centro de Londres. Dirigiu-se ao balcão e disse ao que ia: sentia-se doente e queria marcar uma consulta. Ouviram o pedido e a resposta foi:

- Desculpe, mas não podemos marcar consultas aqui ao balcão. Tem de o fazer online. 

A velhinha disse que tinha dificuldades em fazê-lo desse modo.

Poderia então pedir ajuda a alguém - responderam-lhe.

A senhora velhinha foi-se embora, muito mais triste e fragilizada do que tinha chegado.


Apesar de todas as críticas ao SNS em Portugal, vindas de diferentes setores e agudizadas por ideias que na Campanha eleitoral são repetidas, acho que tal não se passaria e a consulta seria marcada.

Oxalá eu tenha razão no que estou a dizer. E sobretudo que continue a haver cada vez mais razões para que quem precisa de ajuda tão premente não seja despachado com indiferença o que, em idades mais avançadas, aumenta a dor da solidão.


sexta-feira, 31 de maio de 2024

Como se eu tivesse oito anos

 

O meu pai lê muito e muito bem. A minha mãe também, mas à noite é o meu pai que costuma ler para mim. Deito-me e só adormeço depois de ouvir a história. Há muito tempo que andamos a ler Harry Potter. Adoro tudo o que é Harry Potter. Ano passado, oferecemos um livro, em português, do Harry Potter à minha avó. Ela gostou muito, mas disse que a letra era muito pequenina.

Eu já sei ler há muito tempo, mas adoro à noite estarmos os três a ler ou a ouvir ler um livro. Já é assim, desde muito pequenina. Deve ser por eu gostar tanto que a minha mãe às vezes diz que não há leitura de história à noite, quando ralha comigo por qualquer coisa que fiz mal, mas acaba por desculpar e leem na mesma um livro. Eu acho que os meus pais também gostam muito daquele bocadinho em que estamos os três juntos para a leitura, antes de eu dormir.

Quando a minha avó nos vê assim, diz que é muito bonito e que é por isso que eu gosto de ler. Não sei se é, mas gosto muito de ler e também de cantar e de ver vídeos no meu iPad e da escola e da natação… Do que não gosto tanto é de tocar piano, mas o meu pai insiste. Se eu soubesse magia como no Harry Potter, havia de convencê-lo a não insistir tanto, mas como não sei, tenho mesmo de tocar,

O que vale é que todas as noites, sei que vou estar quentinha e feliz na minha cama a ouvir ler uma história,


quinta-feira, 30 de maio de 2024

De dentro para fora - diferentes formas de calor

 

Quando chegámos a Londres, chovia com abundância. Em Portugal, as temperaturas altas levavam muita gente para o bronze ou frescura da praia. Sol e maresia a consolar o corpo e a alma.

Mas eu, que se calhar sou meio esquisita, gostei de ouvir a chuva nas janelas do avião. Seria assim depois da viagem de comboio e já em casa da minha filha?

Tínhamos partido cedo e já havia fome. De estarmos todos juntos e também de almoçar.

E se fôssemos ao restaurante libanês? Todos concordaram.

Comida saborosa, mediterrânica, colorida…

Depois da caminhada a pé, chegámos a casa. Com as malas e com sol, ainda que tímido mas bonito. E veio o dilema: ficar em casa ou aproveitar o tempo do resto da tarde para um passeio ou visita. 

Vamos andar de barco?

Vamos a um parque?

Acabámos por ficar em casa a ouvir a chuva que voltou, a sentir a preguiça boa de poder estar no sofá, conversando, uns quase dormitando…

Entretanto, reparei que o fogão precisava de limpeza e o frigorífico de alguma arrumação. Sem dizer nada,  meti mãos à obra. Entretanto, a menina tinha afastado os seus castelos de legos para que o primo mais pequenino não os desfizesse. E era uma correria: o mais pequenino que queria chegar aos castelos e a mais crescida que logo ia atrás dele como boa castelã e guardiã.

No dia seguinte, haveria programa mais completo.

No nosso país, tinha ficado a campanha eleitoral das europeias. E muito calor.

Aqui, em país que saiu da Europa, havia outra forma boa de calor. 


terça-feira, 28 de maio de 2024

Palavras ditas ou não ditas

 

Dizer alguma coisa, por pouco que seja, em muitas circunstâncias, ainda que simples, é correr riscos. No entanto, não dizer nada também pode trazer consequências.

Considero cada vez mais difícil atingir o equilíbrio, isto é, dizer as palavras  certas no momento certo e saber calá-las, quando desnecessárias. E, às vezes, as palavras, ainda que aparentemente anódinas, ferem e marcam algumas sensibilidades, ainda que sejam proferidas naturalmente e sem má intenção.

Recordo-me de algumas situações - poucas, felizmente - em que umas tantas palavras me escorregaram e a outra pessoa reagiu, por exemplo, pelo silêncio, que pune mais do que muitas palavras.

Se, para algumas pessoas, não custa  nada ver que alguém ficou melindrado com alguma palavra; para outras, pode aumentar tristeza e até solidão, sobretudo se a educação foi mais acusatória do que benevolente.

Será lugar comum dizer-se que o ser humano é complexo. Bem mais do que algumas situações, aparentemente simples, que complicamos  - quando dizemos ou escutamos alguma coisa que, no momento, não nos cai no goto. Também não fujo à regra, é claro.


segunda-feira, 27 de maio de 2024

Este é o tempo da hidrângea ou hidranja ou hortênsia …

 





Elogio versus crítica

 

O tempo em que nasci e vivi durante anos era avesso aos elogios, ou melhor, estes nem eram lembrados porque quem o poderia e deveria fazer também pouco ou nada os tinha ouvido.

E a falta de elogios deixa mazelas. Conheço vários casos de sofrimento ao longo da vida por não ter havido, durante a fase de crescimento, um sorriso de empatia, uma palavra elogiosa, o reconhecimento de que algo estava bem feito.

Se as coisas corriam mal, havia críticas fortes; se as coisas corriam bem, nada se dizia porque assim tinha de ser e nada havia a acrescentar.

E como cada ser humano é diferente e complexo, muitos dos que sempre ouviram críticas e nunca elogios mantiveram essas práticas para com os mais próximos; enquanto outros passaram a dizer que sim a tudo para que o pesadelo vivido não se repercutisse nos seus descendentes.

Muitas inseguranças se geraram pela ausência permanente do elogio e pela mais que certa crítica por tudo e por nada.

É por estas e por outras que precisamos cada vez mais de reconhecer o que os outros fazem de bom para sermos todos um bocadinho mais felizes!


domingo, 26 de maio de 2024

O ‘não fez nada’ está na moda


Pelo menos desde que a atual ministra do trabalho criticou duramente Ana Jorge por não ter feito nada na Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, já ouvi até jornalistas a dizer que fulano ou fulana de tal não fez nada no cargo que exercia.

Não estou lá para ver, mas custa-me bastante aceitar que uma equipa não faça nada. Pode ficar aquém das expectativas, não ter resolvido problemas essenciais, mas dizer que não se fez nada é, muitas vezes, uma forma de puxar a cadeira para que outra pessoa se sente nela o mais depressa possível. Se a moda pega, nem é preciso arranjar muitas justificações - dizer e repetir que alguém não fez nada no cargo é o pontapé para saída da pessoa que se quer ver substituída e não o pontapé de saída para se conhecer a realidade.

A moda não se ficará só pela política. E nem são precisos muitos adereços: basta poder e alguma arrogância.

Recordo-me de ter ouvido um dia uma professora dizer desesperada, depois de um momento difícil na sala de aula: ‘Não valho nada’.

Sentir que não se vale nada será muito diferente de ouvir que não se fez nada?


sexta-feira, 24 de maio de 2024

O pássaro num fio

 

O pássaro que acabei de ver pela janela. Já desapareceu. Fez bem. Há parar e voar!



Há mar e mar…


‘Há mar e mar, há ir e voltar’ 
Alexandre O’Neil







domingo, 19 de maio de 2024

Mais um problema para alguns professores

 

Felizmente aconteceu-me poucas vezes, mas houve alturas em que ouvi alunos a dizer: ‘Eu digo o que eu quiser, porque há liberdade’

Para responder com eficácia nessas ocasiões, não há modelos e mesmo o que se diz pode ser bom para uns e o contrário para outros, o que é natural.

Continuo a ter muito mais dúvidas do que certezas sobre muitas coisas e sobre esta também. Como vivi também no tempo em que não havia liberdade de expressão, defendo que esta tem de existir, mas deve haver o cuidado de não se ofender nem amesquinhar seja quem for.

Isto tem a ver com o que se passou recentemente na Assembleia da República, cujo presidente defendeu que tudo pode ser dito na ‘Casa da Democracia ‘, uma vez que há outros escrutínios.

Como houve bastante ruído em relação a este episódio, JPAB já argumentou em sua defesa, mantendo a posição tomada. Ele estará no seu direito, mas, na minha opinião, crescerá o número de alunos a afirmar: ‘Posso dizer o que eu quiser, porque há liberdade’. 

Se tal acontecer, esses professores sentir-se-ão mais indefesos e sós. Viver em liberdade é um dos maiores bens humanos, mas ver pessoas tristes não celebra o seu sabor.


sábado, 18 de maio de 2024

Hoje comecei o meu dia a olhar flores

 




Ainda não eram oito da manhã quando saí de casa. Minutos depois, noutro espaço, onde vivem muitas árvores,  podia olhar e fotografar algumas flores - que estão ao sol e à chuva. E as rosas, apesar de mais imperfeitas e rugosas do que as de estufas, têm perfume e as cores são vivas.
E há pequenas margaridas a irromper na relva com muitas ervas daninhas à mistura. 
E há um banco comprido que chama para um pouco de descanso, mas que não é ouvido e continua só a maior parte do tempo. Quando está vento, as camélias dançam e fazem-lhe festas nas costas.
Chuviscava e afastei-me.
Quando voltei a casa, vi as fotos. E sentei-me no banco comprido com o olhar mais descansado.