terça-feira, 7 de março de 2023

Tarde de domingo com um filme dentro

 

Fomos ao Alameda. Éramos apenas quatro pessoas na sala 5 do cinema. O filme escolhido foi Mascarade, de Nicolas Bedos. O cenário é a bela Riviera francesa. É lá onde as personagens se encontram, desencontram, fingem, são verdadeiras, entram em jogos de enganos e sedução e muitos etecetras de vidas luxuosas com muitas paixões e ainda mais frustrações. Mais concretamente: uma atriz vive com um jovem acompanhante. Este liga-se a uma rapariga manipuladora e ambiciosa que entra na casa da atriz e na vida de um homem, que, com ela, julga ter recuperado a juventude e felicidade perdidas, confrontando-se, porém, com desesperada solidão. Achei piada ao filme. Mas sou suspeita, porque gosto da língua francesa, de histórias contadas em filmes franceses, de paisagens desse país, etc.

A dança que desceu do filme

 

Uma das músicas do filme Mascarade é La Bambola, uma canção italiana do final dos anos sessenta e que, tal como muitas canções dessa época, desperta emoções  em quem viveu esses anos do século XX. Inesperada, ainda assim, e bonita, foi a reação do casal que tinha estado a ver o filme. Passava a ficha técnica, acompanhada dessa canção. Descidos os degraus, o casal começou a dançar, bem juntinhos. Como nos slows de antigamente nos bailes de garagem. Ambos pareciam felizes e sem máscaras. Não sei se pelo poder do cinema. Ou da música. Ou do amor. Ou de uma simples tarde de domingo com chuva e sem pressas.

 

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Sábado à tarde

 

Comprei há dias uns vasinhos com amores-perfeitos e pu-los num canteiro, sem os transplantar. O tempo era pouco e o desejo que a chuva voltasse era muito. Ela chegou, benfazeja, ontem à noite, foi ficando e não se despediu até hoje. Há pouco vi que os amores-perfeitos ainda estavam mais perfeitos nas suas pétalas vivas de veludo amarelo. Também graças à chuva, ainda que leve.

Abri a janela que dá para a casa vizinha. E que, por isso, raramente abro de par em par. Mas há uma laranjeira entre a minha casa e a outra casa que também tem janelas e quem lá mora, tal como eu, gostará que haja uma laranjeira alta de permeio. Diante mim, está o computador e, de vez em quando, volto-me para ver a luz da tarde e vejo-a semeada de laranjas. 

À minha esquerda, tenho um rádio ligado na antena 2. Lídia Jorge está a ser entrevistada. A voz do jornalista não me é familiar,  mas agrada-me o modo como conduz o diálogo em que a escritora fala de muita coisa e da mãe e do livro que lhe pediu antes de morrer. Retenho frases como 'A literatura é sempre uma carta de amor por alguma coisa, mesmo sendo cartas de raiva'. E também episódios da vida da mãe em que, no lar de idosos, em vez da reza repetida do terço, preferia ouvir histórias bíblicas. Ou de conversas em que perguntava à filha por que não preferia fins felizes para os seus livros.

O meu neto vem ter comigo com o seu linguajar variado e monossilábico. Sento-o ao meu colo. Põe os dedinhos nas teclas do computador e começam a aparecer letras e mais letras em filinha. Volta para a sala onde estava com o pai e o silêncio volta também à luz aberta do quarto que tem a janela, donde se veem as laranjas da casa vizinha. 

Talvez amanhã  transplante os amores-perfeitos. Talvez amanhã tenha outros momentos simples e perfeitos como estes. Oxalá. Ainda que com a consciência de que o mundo, esse, não.        


terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Os amuos e um saco que se julgava roto

 

Desde pequeno que se habituara aos amuos. Da mãe, do padrasto, dos irmãos. Os amuos punham-no triste e indefeso. Querer falar e obter apenas respostas frias de não mais que uma ou duas palavras era pesado.

Desde muito novo, dava consigo a pensar nestes momentos de incomunicação prolongada, que, de repente, irrompiam na família e estragavam toda a alegria que era quase sempre breve. Os amuos, por sua vez, eram longos. Chegavam a durar dias e abriam feridas de culpabilidade que demoravam a curar.

Às vezes, bastava uma palavra mais transviada, uma recusa em fazer qualquer coisa, um desacordo momentâneo para logo a face da outra pessoa se fechar como castigo, tantas vezes misturado com acusações que irrompiam de todos os tempos e lugares.

Não, quando fosse adulto não seria assim. Em vez de amuo, recorreria ao diálogo. Sem ruídos acusadores nem silêncios fechados à chave, como estava habituado.

Com o tempo, vieram os sorrisos empáticos do amor. Uma nova vida começou. Na primeira casa onde viveram foram muito felizes. Na segunda, já começaram a aparecer situações mais desavindas, sobretudo depois da chegada do bebé.

Começou a amuar por muitas e variadas razões que o contrariavam. Ela, porém, continuava a falar e a viver os seus dias.

Embora pensasse que os amuos de antigamente tinham caído em saco roto, afinal estavam bem presos a si e era ele próprio que o desatava.

Ela, porém, não deixava que os sons dos seus dias se interrompessem. E assim o saco em que ele transportava os amuos foi-se esvaziando. Por inutilidade.

 

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Para quem quiser ficar mais ao corrente das Correntes D'Escritas

 

Vi agora no blogue 'Horas Extraordinárias' de Maria do Rosário Pedreira este link para aceder às últimas Correntes d'Escritas.

Maria do Rosário Pedreira venceu também o Prémio Literário Casino da Póvoa, com o livro de poesia O meu corpo humano.  


 https://www.cm-pvarzim.pt/territorio/povoa-cultural/pelouro-cultural/areas-de-accao/correntes-d-escritas/correntes-descritas-2023/

domingo, 19 de fevereiro de 2023

Ontem foi para mim um dia bom

 


As Correntes D'Escritas já contam com mais de vinte edições. Ontem, sábado, fui lá, pela primeira vez, ao Cine-Teatro Garrett, na Póvoa de Varzim.

A grande figura homenageada este ano foi Ana Luísa Amaral, para além de Nélida Piñon e Luís Sepúlveda. As comunicações na sala principal eram subordinadas a um verso da Poeta que nos deixou no ano passado e que também nos deixou uma grande obra. 

Para além dos seus poemas que os oradores liam ou referiam, também ouvimos falar das suas compotas, das quais gostosamente partilhava receitas, dos sabores inesquecíveis da carne assada com batatas que cozinhava com esmero para os amigos, do amor pela vida e pelos prazeres que ela  proporciona, etc.

 

'Ler e escrever é resistir - lê-se na capa

 

Ontem à tarde, nas CORRENTES D'ESCRITAS, depois de almoço, enquanto que na 'sala de ensaios' eram apresentados livros, na 'sala de atos' era apresentada a revista virtual e gratuita Palavrar.

Foram lidos textos da revista cujo tema era a Paz. E gostei muito da leitura - nalguns casos, feita pelos autores - porque foi sem pressas nem correrias e quem lia e quem ouvia parecia saborear os sentidos das palavras e o que elas contavam.

 

No texto constante da apresentação da revista, pode ler-se, para além de outras coisas:

'Caracterizada pela diversidade de rubricas e assuntos (História da literatura, escrita criativa, escrita motivacional, revisão e edição de textos, crítica literária), a «PALAVRAR — Ler e escrever é resistir» partilhará crónicas, contos, histórias infantis e poesia, de autores desconhecidos e de vozes conhecidas no panorama literário nacional.Será leve e próxima dos leitores, mas não superficial. Funcionará como plataforma de difusão de novas vozes literárias, alargando o pouco espaço atualmente existente em Portugal com esse propósito.

Conheça a nova revista literária portuguesa (...)'.


segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Bom dia dos (e)namorados

 

Aurélia de Sousa (1866-1922)

'ILUSIONISMOS'


Lurdes Castro - 1975



'Repara, meu amor: são duas da manhã

e eu ainda aqui a começar

(na minha hora que tem sido a hora

onde poemas são e se entrelaçam)


São duas da manhã e sem luar:

não sei atravessar-te pelo vidro

e criar-te metáfora de brilho


São duas da manhã e o céu

tão escuro como carvão-carvão:

onde vou inventar pequenos seixos

para fazer fogueira que te escorra?


Estamos dentro da noite que é mais noite

e que é que eu trago para te acordar?


Olha: ponho esta lâmpada a fingir

de estrela mais polar do que a polar,

e, vês, o vidro em frente: não me vejas

enrolada a escrever: é espelho mágico


e agora eu era o verso mais perfeito

e tu a mais perfeita das palavras

e às duas da manhã trago-te: um céu,


são estrelas e mil luas, são seixos

mais galácticos que a luz, mais velozes

que a luz e no teu corpo, vês, a minha mão

 
é chão feito de luz e estrelas e do

carvão-carvão nasceu um sol e do meu

pé, repara nesse céu: fogueira interestelar


e o que eu tinha escondido atrás do Tempo

e Deus: um tempo a sério para tu entrares

em bola de cristal feita de espelhos'.

Ana Luísa Amaral

 

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

AMADEO

 

https://cinecartaz.publico.pt/filme/amadeo-409386

 


Antes que saísse do cartaz ou passasse para horários que não nos convêm, ontem, às 13.40, estávamos a entrar na sala 1 do Centro Comercial Alameda para ver o filme  AMADEO sobre Amadeo de Souza Cardoso, nascido em Manhufe, Amarante, em  1887, tendo vivido apenas 30 anos. Em Paris, onde conviveu e trabalhou com grandes pintores modernistas, conheceu Lucie por quem se apaixonou e com quem partilhou a sua vida e a sua obra.

Realizado por Vicente Alves do Ó, Amadeo é representado por Rafael Morais e Ana Lopes dá vida a Lucie: um belo e jovem par de atores que contribui, na minha opinião, para reafirmar a beleza que perpassa do filme pelas paisagens, cenários, roupas, etc. Ficou-me/nos esta ideia e também de calma pela entrada num ambiente sereno em que havia arte, para além dos trabalhos do pintor que eram mostrados. Alguns, muito poucos, aparecem a ser elaborados, mas eu gostaria de ver mais pintura de Amadeo, de ficar a saber mais.

Talvez o tempo dedicado à gripe pneumónica, que atingiu a família, pudesse ser reduzido, para desenvolver mais a dimensão do pintor, embora fosse pertinente a inclusão da epidemia para revelar o lado humano de todos que viviam naquela  bela casa.

A fotografia é excelente e o som também, o que ajuda os espetadores a participar melhor do que é contado, haja ou não um forte argumento. 

Depois do filme, já com a sala vazia, ficámos, no lugar, a comentar o que se tinha desenrolado diante dos nossos olhos. Ao fundo da sala, estava a senhora da limpeza à espera. Em breve, haveria outra sessão. Tal como na nossa, estaria pouca gente, por certo, mas haveria, com certeza, pessoas a ficar com vontade de conhecer mais sobre a vida e obra deste pintor, que também deu o nome ao belo museu que existe em Amarante.

 

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

A chave

 

Gostaria de saber dizer o que se sente quando se entrega a chave. A chave de uma casa onde se viveu longo tempo de juventude, ao qual se seguiu um tempo mais longo aonde se ia como se continuasse a ser a sua casa, embora já lá não morasse. A morar tinham ficado os pais e muitas coisas que faziam recordar outras coisas, umas boas, outras nem tanto.

Quando entregamos a chave é como se uma parte da vida vivida estivesse a marcar um ponto final, sabendo-se, naturalmente, que nada nem ninguém é eterno.Tentar contrariar esta realidade é puxar por sofrimentos que, se puderem ser evitados, tanto melhor.

Pela parte que me toca, gostava de encontrar uma chave, cada vez mais apaziguadora, para as muitas chaves que vamos entregando, de uma maneira ou de outra, ao longo da nossa vida. 

 

domingo, 5 de fevereiro de 2023

Compacto de domingo com mar ao fundo

Pela fresca, em manhã bastante fresca

Saí de casa cedo. Parte do meu domingo seria passado na 'minha' cidade com mar ao fundo. Antes das nove, a TSF passa o compacto de 'Postal do dia' de Luís Osório. Ouvi tudo com agrado. Estava sol e eu conduzia devagar. Não tão devagar, acho eu, que irritasse outros condutores. Àquela hora, também os havia poucos.

Lá chegada, vi que no espaço da feira semanal, havia uma feira de velharias. Devia ter peças engraçadas. Noutro tempo, não resistiria e compraria alguma coisa. Hoje, andei sempre, embora não deixasse de olhar.

 

A bela adormecida

Ainda tenho nos olhos a foto com o palco mágico de A Bela Adormecida, espetáculo aonde a Clarinha foi com os pais.

Com o belo bailado diante dos seus olhos e a música a envolvê-la, a menina ouvia, escutava, via, olhava...

O primeiro ato foi visto com olhos e ouvidos atentos do princípio ao fim; a meio do segundo, já encostava a cabecinha à mãe; no terceiro, aconchegou-se ao colo do pai. Daí a nada, adormeceu. Era uma verdadeira bela adormecida.

 

Vamos indo e vamos lendo

Apesar das suas mais de quinhentas páginas, já li o thriller quase todo Cem Anos de Perdão de João Tordo.

No dia 3 de fevereiro, o autor viria à Biblioteca Municipal de Gondomar para falar da sua obra e deste livro em particular, como havia sido anunciado na sessão anterior. Na minha cabeça, ficara a data registada e nem procurei confirmação.

Como não tive tempo de ler tudo antes da sessão, aproveitei uma longa sesta do meu neto e li bastantes páginas finais do livro. Nada de que Daniel Pennac não tenha previsto nos seus Direitos do Leitor. Estava ainda mais disponível para a sessão que seria daí a horas.

Embora não goste de sair à noite, era bom pensar que iria ao encontro dos 'Encontros com Escritores'. Telefonei a uma amiga e lá fomos, contentes e felizes, à hora marcada. Porém, à hora marcada, a Biblioteca estava ... fechada.

Ontem, liguei para a Biblioteca porque nada via no site. Sim, haverá a sessão, mas noutra altura. Será anunciada atempadamente. Sim, foi dito na sessão anterior, mas nada foi escrito posteriormente, como pode confirmar. Que pena terem vindo ao engano. As nossas desculpas.

Tal como havia registado a data, também registei: mais vale não acreditar logo na palavra dita e esperar pela palavra escrita. Enquanto isso, vamos indo e vamos lendo.

 

'O sol é histérico', disse ele

Se esta sessão (ainda) não se realizou, o encontro com Valter Hugo Mãe, no final de janeiro, teve lugar e foi muito bom. A sala estava cheia e havia gente jovem, o que nem sempre acontece nestas coisas.

A sessão começou, como habitualmente, com uma abordagem breve de algumas obras e temas trabalhados pelo autor, seguindo-se um diálogo mais específico sobre o livro escolhido, neste caso, Contra Mim, um livro quase todo escrito durante a pandemia e que resultou de crónicas/episódios  dessa altura e que o autor viria a unir e a articular. Valeu-lhe até o prémio da novela e romance da APE. A uma pergunta se o livro era uma romance, respondeu com graça e  espontaneidade em modo irónico: se ganhou o prémio do romance é porque era.

Uma coisa foi pelo autor confirmada: é autobiográfico e foi repetindo situações pessoais e familiares vividas e contadas no livro. Se morresse, disse ele, na pandemia, durante a qual 'parecia não haver futuro', o passado tinha valido a pena, tal como o arrumara no livro.

Quanto ao trabalho de escrita, disse realizá-lo virado para a parede e de janelas fechadas para não entrar luz exterior. E, apesar de viver perto do mar, em Caxinas, Vila do Conde, prefere as nuvens ao sol. E mais uma frase surpreendente se lhe ouviu: 'o sol é histérico'.

Sobre a utilidade da escrita, disse que escrever é um modo de dizer que gosta de ser útil e de continuar a ponderar o mundo melhor.

E esta ideia não é nada histérica. Como esperei deste domingo bom e de sol com um belo mar ao fundo.

 


 

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Às vezes é complicada a comunicação

 

Em verdade vos digo: também não sou exemplar quando converso com alguém, reconheço. Às vezes, interrompo, se calhar não dou tempo a que o assunto termine, etc., mas, embora ninguém seja bom juiz em causa própria, acho que há pior. Como quando se quer dizer alguma coisa que se considera ser importante para ambas as partes e logo ouvir um juízo de valor a falar mais alto e a cortar o que se quer comunicar.

Perdemos tanto tempo a não ouvir os outros e a falar sobretudo de nós próprios, como se só o altar de cada um fosse importante.


quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Muita coisa no mesmo saco

 

 

Sábado passado, fui a um workshop de costura, bem perto da minha casa. Éramos cinco mais a monitora que nos ia apoiando e ajudando nos cortes e na costura.

Quando de lá saímos, cada uma trazia o saco que tinha feito. A manhã tinha sido bem passada a construir, a falar, a rir, a aprender, a tomar cafezinho com palmiers, etc.

E impossível não me lembrar da minha adolescência em que a minha mãe nos mandava, a mim e à minha irmã, para a costura. Em pequena, tinha gostado de fazer roupa para as bonecas , mas para a nossa roupa não tinha jeito nem gostava. E até me sentia mal ao ver a outra rapariga, também aprendiz, que levava muito a sério a costura e punha questões sobre os pontos ou os alinhavos com muito esmero e seriedade.

E também me lembrei de uma almofada em patchwork que fiz numa retrosaria da rua das Flores, no Porto, já há alguns anos. Já tenho saudades de lá passar. Gosto muito das cores das retrosarias e das linhas e dos botões e dos tecidos e dos cestinhos com mil coisas pequenas e organizadas...

E como correu bem, já marcámos a próxima sessão para fazermos uma almofada com tecidos e rendas que tenhamos em casa. Depois mostro. E, com certeza, outras coisas me virão à memória, mesmo que não goste muito de meter tudo no mesmo saco.

 

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

As casas

 

 'Algumas casas são como animais no dorso dos quais subimos, deixamos de as frequentar com a impressão de nos haverem abandonado ou morrido'.

In Valter Hugo Mãe, Contra Mim, Porto Editora, 2020, p.32

 

Há dias, no velório da mãe de uma amiga, ela dizia-me: 'agora tenho de tomar conta da casa, somos também filhas das nossas casas'.

Embora partilhe desta ideia, quando posso, vou-me despojando de algumas coisas de que não preciso e que podem fazer mais jeito a alguém. Depois do falecimento da minha mãe, mais vontade tenho de o fazer. A minha mãe, talvez por ter vivido a escassez de bens essenciais durante a segunda guerra mundial, aproveitava tudo e achava que tudo podia fazer falta, sem deixar, contudo, de ser generosa.

Enquanto ela pôde, se alguma coisa se rasgava ou estragava, fosse o que fosse, logo a cosia ou consertava. E ponteava meias, coisa que as novas gerações nem sabem o que é. Nestes casos, quando a pessoa morre, são precisas muitas horas para separar o que pode ser útil a outros, respeitando o que fez parte de toda uma vida, e que resultou muitas vezes do trabalho amoroso, paciente e manual.

Estes contextos ainda acentuam mais o que penso há muito tempo: quero conservar sobretudo o que para mim e para a família mais chegada é importante, para não dar muito trabalho às minhas filhas quando eu morrer.

Contudo, como dizia essa minha amiga, também me sinto filha de casas que, de uma maneira ou outra, me foram abrigando ao longo da vida, embora com a distância que o tempo e um natural abandono mútuo vão ditando. Por exemplo, tenho ainda presente a casa - com a sua frondosa laranjeira - onde vivi a infância e parte da adolescência, a casa mais moderna - mas sempre com flores e verduras - onde vivi até casar, etc.

Ah, e a casa de lavoura das minhas tias, onde brincávamos muitas vezes perto de abundantes cebolas, batatas, alhos,  alfaias agrícolas, hortaliças acabadas de colher nos campos; no meio do austero afã para que todas as tarefas se cumprissem a tempo e horas, etc.

E a casa dos meus avós paternos, para onde eu e a minha irmã nos escapávamos sempre que podíamos, porque era apetecível pela sua alegre vozearia e estridentes gargalhadas.

Quando nos abeiramos de casas da nossa vida, ou nos lembramos delas, impossível não ouvir palavras ditas e ouvidas dentro ou fora das suas quatro paredes - ainda que estas estejam em ruínas ou só se ergam na nossa memória. Tal como acontece com os nossos pais, ainda que já nos tenham morrido.

 

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

ChatGPT??????

 

Ontem à noite, à mesa, surgiu o tema/questão do ChatGPT, entre alheiras, batatas cozidas e espargos (tentei comprar grelos, mas não arranjei). Pois é,  no meio de um prato tão comum, embora bom e ainda a fumegar, vem à baila o ChatGPT.

O quê? O que é isso? 

O que se sabia: decorre da inteligência artificial. E logo se quis experimentar, embora alguns de nós não gostem nada de telemóveis à mesa. Íamos escrevendo um tema ou questão e logo aparecia a resposta em texto correto e competente.

Fiquei estupefacta.

E também logo imaginei muitos alunos a escrever apenas o assunto pedido na escola e a tê-lo de imediato no seu ecrã. Enquanto o diabo esfrega um olho. 

Julgo que a grande maioria dos professores já se confrontou com cópia de trabalhos retirados da net, mas aparecer um texto, consoante o pedido do momento é que é mais difícil de imaginar, sem ter de ficar à espera. Outro dilema para muitos professores na correção de textos: isto é original ou a autoria é artificial?

Ora, o último podcast Efeito Borboleta de Raquel Varela e Joel Neto é sobre o assunto e fica-se a perceber bem melhor o que é o Chat GPT.

Deixo aqui o link. Vale a pena ouvir. E é relativamente curto.

 https://podcasts.apple.com/pt/podcast/chatgpt/id1610328684?i=1000593580087

Ah! Apesar de ter achado o Chat GPT surpreendente, quero continuar a escrever os meus textos por mim, com as minhas ideias, com as minhas palavras, recorrendo apenas à minha inteligência natural. Na quantidade que me foi sendo atribuída. 

 

domingo, 15 de janeiro de 2023

Quando o café se acaba

 

Hoje podia levantar-me mais tarde. Fazer as coisas que queria fazer, seguindo a ordem que quisesse. Até começar e não acabar. Ou fazer um bocado aqui e outro bocado acolá. Tudo ao meu ritmo. A manhã estava por minha conta. 

E dei conta que havia sol. Podia abrir as janelas. Não a porta da cozinha para que a Castanha não entrasse logo para me farejar a mesa. O velho e saudoso Dunas tinha o privilégio de livre circulação. Tal como as pessoas, os cães também têm diferentes privilégios.

E, como o tempo estava bom, podia ir à minha cidade com o mar ao fundo, aquela que agora é referida em todos os telejornais com imagens da Câmara Municipal e de quem se deixou corromper e de quem corrompeu, aproveitando-se de serviços públicos. Alegadamente, como sempre se acrescenta. Tal como sempre se ouve esses seres a dizerem que estão de consciência tranquila. 

O que será consciência e quando é que está tranquila nessa versão, pergunto. Como o uso vai mudando a língua, daqui a algum tempo vão aparecer outros significados para consciência tranquila, tipo mentir segura e descaradamente, não ter consciência nenhuma, estar-se nas tinhas para os outros, achar-se acima do comum dos mortais, etc.

Mas nada como começar o domingo com cheirinho a café a espalhar-se pela cozinha. Antes de o pôr a fazer, cortei umas fatias de pão e pus a compota em cima da mesa. Mas, oh, a lata do café estava vazia. Que desconsolo. Felizmente tinha alternativa, embora de consolo menor. 

Mesmo acabado o café, outro dia estava a começar. 

Bom domingo! 

 

domingo, 8 de janeiro de 2023

Ainda uma almoço de Natal - uma alegre tradição.

 

Foi ontem o nosso almoço de Natal: de um grupo de amigos de longa data. Desta vez, com francesinhas. E que boas que estavam. E que quentinhas com o molho espesso e saboroso. Eu tinha dito à minha amiga anfitriã: para mim, não ponhas bife. Não é que eu seja vegetariana, mas dispenso.

Éramos uns doze à volta da mesa numa cozinha grande, com janela grande donde víamos a chuva abundante a cair e um limoeiro pequeno cheiinho de limões. Antes tínhamos visto na televisão a fúria libertina das águas das chuvas ruas abaixo na baixa do Porto. E as escadas de belas estações, como a de S. Bento, eram entradas abertas às fortes enxurradas. E o assunto continuou já à mesa. Era forte de mais para não continuar.

E como gostamos de livros, veio também à baila, já não sei por quê, Contra Mim de Valter Hugo Mãe e muito do que ele conta da sua infância e juventude, onde cabe uma escola primária, que frequentou em Paços de Ferreira, com réguas que alguns pais ofereciam às professoras, o que, felizmente, seria impensável nos dias de hoje. E logo surgiram relatos de momentos da nossa infância com algumas reguadas dentro. E a razão, ou a falta dela, de as professoras o fazerem. 

Como sempre, de vez em quando, lá se levanta uma voz: eu ainda não acabei! E lá continua a contar e a intercalar parênteses, logo motivo de mais risota.

Quando nos reunimos, há sempre muitos assuntos - uns que começam e nem acabam; outros que nem se sabe como começam, uns que se soprepõem, outros que se cruzam no meio de graças e de boa disposição. E, sobretudo, há muita amizade e muito gosto em estarmos juntos à volta da mesa, como já fazemos há bastantes anos, sobretudo por esta altura.

Na casa aonde formos, lá chega cada um com o seu saco de presentes, mais uma sobremesa, mais uma entradinha... E quando de lá saímos, o saco vem de novo cheio com presentes recebidos, mais umas tuperwares com umas sobras de doces ou salgadinhos. E todos os anos, no momento de troca de prendas, ou falta ou sobra alguma. Já é alegre tradição.

Vivam estes momentos de convívio e amizade. Também ajudam a abrandar algumas tempestades.

 

sábado, 7 de janeiro de 2023

Onde falo da casa e até de um motor

 

Vivo na minha casa há uns quarenta anos. Estávamos na flor da idade quando a construímos (com a grande ajuda dos meus pais) e na flor da idade tudo parece ser eterno. E, nesse tempo, ainda mais. A vida, muito mais efémera do que parecia, não era fácil, mas, atualmente, ainda será mais difícil para muitos casais com velhas e novas instabilidades que não param de bater à porta.

Vem isto a propósito da minha casa da qual continuo a gostar, mas jamais faria igual quarenta anos depois. Para ir à rua, tenho escadas, para ir ao quintal, escadas tenho. Para que o saneamento funcione bem, tenho de ter um motor de escoar águas pluviais. E que cumpra a sua função.

Como o período de seca foi longo, o motor de escoamento de águas teve tempo de funcionar e avariar sem eu dar conta. As máquinas também precisam de atenções porque  adoecem e avariam, o que aconteceu e eu não sabia. Pois bem, no primeiro dia deste ano, a chuva foi tão intensa e tão prolongada que a água, sem nada que a impedisse de circular à vontade, me entrou na parte de baixo da casa tão depressa como eu subia as escadas há quarenta anos.

Tive de chamar os Bombeiros para me ajudarem a resolver o problema, mas os meios de que dispõem não são muitos, apesar da boa vontade e da celeridade em prestarem os serviços. Valeu-me também a solidariedade de um vizinho que foi cedendo a sua máquina, embora estivesse atento a uma iminente inundação. E agora o meu receio é grande quando vejo que as previsões são de mau tempo por estes dias.

Valeu a última semana de sol para limpar e secar muita coisa, mas não bastou para me consertarem o motor de escoamento de águas. Peço ao S. Pedro que guarde as chuvas por uns dias, mas não me está a ouvir porque, coitado, este e outros pedidos devem ser mais do que muitos.

O tempo foi-me ensinando que uma casa não é só o nosso bom abrigo no imediato, embora saiba também que as novas gerações estão mais disponíveis para as mudanças, o que considero um bem.

Ah, e se fosse agora, tinha feito um pequeno pátio fora da cozinha. Para algumas refeições, para me sentar um pouco ao ar livre com os meus novelos, com um livro, ou sem nada, só para olhar o céu e as árvores que, felizmente, continuam perto. Sem ter de subir ou descer escadas, é claro. 

 

domingo, 1 de janeiro de 2023

Um belo presente

 

Há dias, recebi um presente. Um belo presente. Um presente diferente. De uma querida amiga. Um poema para cada uma de um pequeno grupo de amigas. O meu foi este que agora partilho. Ela lá sabe por que o escolheu. Obrigada, Idalina.

(Bea, um bom motivo de gratidão, pegando nas suas palavras do seu blogue Erva Príncipe)


LÍNGUAS

 

Contenho vocação pra não saber línguas cultas.

Sou capaz de entender as abelhas do que o alemão.

Eu domino os instintos primitivos.

 

A única língua que estudei com força foi a portuguesa.

Estudei-a com força para poder errá-la ao dente.

 

A língua dos índios Guatós é múrmura: é como se ao

dentro de suas palavras corresse um rio entre pedras.

 

A língua dos Guaranis é gárrula: para eles é muito

mais importante o rumor das palavras do que o sentido

que elas tenham.

Usam trinados até na dor.

 

Na língua dos Guanás há sempre uma sombra do

charco em que vivem.

Mas é língua matinal.

Há nos seus termos réstias de um sol infantil.

 

Entendo ainda o idioma inconversável das pedras.

É aquele idioma que melhor abrange o silêncio das

palavras.

 

Sei também a linguagem dos pássaros – é só cantar.

 

                                          Barros, Manoel de, Poesia Completa, 2016, Relógio d´Água, p. 363


No primeiro dia

 

Ultimamente, com os afazeres domésticos e familiares, tenho visto notícias de forma intermitente. Vejo umas coisas aqui, oiço outras coisas acolá, leio uma crónica ou títulos ou subtítulos, livros continuam à espera, oiço bocados de podcasts, etc.

Hoje poderá ser um dia em que me começo a organizar melhor. Espero que sim. A chuva e a ventania mandam ficar em casa, o que, para mim, é quase sempre muito bom, sobretudo se tenho tempo e calma suficientes. Há tantas coisas pequenas e boas para fazer em casa, quando há computador, livros, rádio, televisão... Para além de dar o lugar às coisas da casa que também nos organizam a vida.

Comecei este post a falar de notícias e meti-me por outros caminhos, enquanto oiço a chuva a cair e o vento a soprar. Ah, e ouvi agora um trovão.

Na Ucrânia, não sei se haverá tempestade assim, mas neve e frio haverá com certeza nesta manhã, como em muitas manhãs, tardes e noites. E os bombardeamentos a fazerem-se ouvir e a destruir esperanças que, em paz, julgamos serem possíveis.

Ontem ouvi que um grupo de crianças continuou a cantar num espetáculo de Ano Novo, enquanto armas iam atingindo o alvo que mentes cruéis não param de definir. Muita gente não tem água potável, eletricidade, medicamentos, etc.

Quase ao mesmo tempo, vi o psicopata Putin com uma taça de champanhe na mão, a brindar não sei a quê. Nos seus bunkers, a neve nunca lhe cairá em cima nem nada lhe faltará. E a culpa fica de fora. E nem o ruído de uma taça de champanhe a partir-se ele ouvirá.

Oxalá que as crianças da Ucrânia possam continuar a cantar. E não sejam cada vez menos. E a esperança possa ser cada vez maior.

 

sábado, 31 de dezembro de 2022

Uma pinóquia simpática e as minhas rabanadas

 

Hoje à noite vamos ser menos à mesa. Mesmo assim, há sempre coisas que faltam. Neste caso, vi que não tinha alhos. Fui ao cemitério pôr umas orquídeas-sapatinho na minha mãe porque ela cuidou sempre carinhosamente delas enquanto pôde. Como a nossa vida é feita de contrastes, fui depois comprar os alhos que me faltavam para o jantar.

Logo no primeiro corredor do supermercado, vi uma rapariga, agora mulher, que havia sido minha aluna há muitos anos. Reconheci-a de imediato e ainda me recordava do seu nome: Elsa. Ela também me reconheceu assim que me viu e disse aquilo que muitas vezes se diz quando se quer ser simpático: - Está na mesma! Claro que fiquei contente pelo reconhecimento, mas 'na mesma' ninguém está quando umas dezenas de anos passam por nós sem nunca se esquecerem de deixar as suas marcas, do cabelo aos pés.

Esta tarde, fiz rabanadas e, olhando para o prato com elas já com açúcar e canela, tive a ilusão de pensar que o melhor era só comer uma já que estou 'na mesma', passados mais de vinte anos e o melhor será manter-me assim. Mas logo ouvi a voz fininha da razão que só eu ouvia: - Olha que sempre andaste despenteada e hoje estava muito vento. A Elsa foi uma pinóquia simpática, não te esqueças nem te iludas. E o melhor é mesmo não comeres muitas rabanadas!



 FELIZ ANO NOVO!


sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Pinóquio

 

Quando vamos a Lisboa, vamos às vezes jantar ao Pinóquio. Estando nós um dia desta semana na fila, chega um sujeito, com muitos predicados na vestimenta e nas palavras, vai ao início da fila, chama o funcionário, cumprimenta-o, saúda-o, põe-lhe a mão no braço e pede-lhe uma mesa para si e para o seu grupo. Estão com pressa, pede desculpa e compreensão. Já tinha dito no dia anterior que viriam. Recorda-se, amigo? Lembra-se?

O funcionário, com todo o traquejo e tranquilo savoir-faire, diz-lhe que sim, com certeza, arranja mesa, mas têm de esperar na fila porque não fazem reservas e há pessoas que chegaram primeiro. O sujeito, deixando cair alguns dos predicados, voltou ao grupo que já estava na fila.

Quem viu e ouviu olhou o sujeito como pinóquio ou raposa e juntou-o a outras histórias que cada um vai conhecendo.