quarta-feira, 18 de maio de 2022

Felizmente há anjos!

 

Foi este o segundo volume da coletânea Anjos, 2022, da Editora Lugar da Palavra.

Partilho o texto que escrevi. Como me acontece quase sempre, há pormenores vividos e outros inventados.

Nota: a Dona Berta era professora primária nos anos 30 do século XX.


 

Anjo da infância e não só

Quando ela contava alguma deslocação mais longa de carro à mãe, sempre ouvia esta pergunta receosa: foste sozinha?  E logo se seguia, com um sorriso divertido e carinhoso, a habitual resposta:

- Fui com o meu anjo da guarda.

Quando o dizia, recordava-se da oração que a mãe lhe ensinara em pequena, a ela e aos irmãos: "Anjo da guarda, minha companhia, guardai a minha alma de noite e de dia".

Ao ouvir a resposta já esperada, a mãe entreabria o seu sorriso de costumada abnegação e, por algum tempo, tal como quando partilhava poesia, esquecia-se dos medos que a idade avançada lhe agudizava: medo da guerra, dos assaltos, da violência, da solidão, da morte, da falta de água...  

Para além da família e das orações, o que continuava a animá-la eram os versos que aprendera pela mão da Dona Berta, a professora primária, sempre por ela lembrada, apesar de mais de oito décadas já passadas. Ao dizer os versos que sabia de cor, ou aqueles que ela própria fazia, os seus olhos iluminavam-se de remoçada alegria.

E, apesar da velhice, nunca confundia as sílabas e as palavras dos versos que tantas vezes repetia, tal como as das orações. Para ela, versos e orações eram sagrados, por isso mereciam todo o respeito.

Mas voltemos à filha.

Pois bem, ela tinha uns anjos muito especiais. De carne e osso. Tinham nascido de si e, por sua vez, haviam-se reproduzido dando à luz outros anjos.

Quando estavam todos à volta da mesa, em hora de saboroso ritual das refeições, ela sentia que pedacinhos de céu se abriam em cada um desses momentos que voavam.

Silenciosamente, pedia ao seu anjo da guarda que a todos protegesse, embora soubesse que aos anjos não se pode nem deve pedir tudo e que a cada pessoa compete ir aprendendo a desenhar as suas asas.

Numa outra deslocação, a mãe voltou a perguntar-lhe se viajara sozinha, e a resposta, desta vez, foi que, para além do anjo da guarda, tinha tido a companhia da rádio. E falou, resumidamente, do conto 'Sempre é uma companhia', de Manuel da Fonseca, porque a leitura lhe revelava anjos que também a acompanhavam.

De tão religiosa que era, a mãe prestou mais atenção à primeira parte da resposta.

Para ela, havia seres que eram anjos, mas não gostava de o anunciar em voz alta. Não estava certa de que o anjo da oração diária - o anjo da guarda - admitisse seres terrenos no seu reino celestial. Podia até ser ofensa não lhe ter sido pedida permissão.

Sem certezas, a filha acreditava que o anjo, como anjo verdadeiro que era, ter-lhe-ia feito soar, com alegre convicção, que o nosso tempo - apesar de incompreensíveis e desumanas resistências - vai banindo tais distinções, havendo lugar para todos os anjos merecidos, sejam eles da terra ou do céu.

Porém, essa mensagem de voz angelical não chegou ao ouvido da mãe, porque o ouvido já não era o ouvido de antigamente.

A poesia, sim. Revelada pela Dona Berta - um anjo da sua infância e de toda uma vida.

 

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Hoje...

 

 Hoje levantei-me cedo. Como quase sempre. 

Abri as janelas e fiz café. Como quase sempre.

Olhei os livros que quero ler. Como quase sempre.

Comi um restinho de doce com o café com leite. Adoça-me a manhã comer um pouco de doce de manhã.

Vi o meu neto descer as escadas pela mão da mãe. À luz da manhã, sorri-lhe e chamei-lhe 'meu sol'.

Ontem, ouvi os ais de minha mãe. As pernas não querem andar, a cabeça dói, os ouvidos não ouvem, os olhos não veem... 

Que desgosto já não ser quem era... Valha-me Nossa Senhora! 

Mãe, eu também já não ando como andava, já não oiço como ouvia...

Mãe, lembre-se de coisas bonitas. Que as há, mãe.

Pois, mas não tenho o teu pai e não posso ir regar as flores.

Mãe, a chuva já as regou.  

Mas há vasos que estão cobertos. Eu dantes aproveitava a água da chuva, mas agora ninguém se lembra.

Mãe, valha-me também Nossa Senhora.


sexta-feira, 13 de maio de 2022

Não te esqueças do que estavas a dizer...


Penso que não me acontece só a mim. E, se calhar, também já o fiz, porque, às vezes, somos mais distraídos quando somos nós que agimos.
Ora, não sei se já se depararam com esta situação: 
Começamos a contar alguma coisa a alguém. Por semelhança ou por diferença, a outra pessoa diz-nos, alheando-se do que estava a ouvir:
- Não te esqueças do que estavas a dizer... 
e passa para o seu assunto, ficando nele muito tempo enquanto assistimos ao desfile de pormenores. Fala, conta, explica…
Como quem estava a falar ficou pendurado, tenta interromper para reatar o que dizia, mas logo ouve:
- Espera! 
Muitas vezes acompanhado por um gesto brando de stop com a mão ou por uns toquezinhos no braço para que o que está a contar não seja interrompido.
Ora, terminado o quase monólogo, quem tinha começado o assunto, que lhe deu origem, já perdeu a vontade de continuar ou quase se esqueceu do que ia dizer.
Da próxima, se calhar, nem sequer começa. A menos que o assunto se resuma apenas a um par de frases! Para não ouvir de novo
- Não te esqueças do que estavas a dizer...
 e esperar muito tempo para poder continuar e concluir. Se tiver oportunidade, é claro.


quinta-feira, 12 de maio de 2022

"Os atores somos todos nós"

 

Ontem à tarde, assisti à inauguração desta bela exposição realizada pelo Agrupamento de Escolas de Valbom, do pré-escolar ao 12º ano. Para além dos múltiplos trabalhos expostos, houve poesia, música, magia, pintura, entusiasmo de professores e alunos...

O mestre Júlio Resende, que criou este Lugar do Desenho, ficaria contente ao ver a adesão amorosa à arte e aos valores importantes da existência, incluindo os da boa comunicação.

Ficam algumas imagens - que são apenas uma amostra da exposição que pode ser vista, no Lugar do Desenho/Fundação Júlio Resende em Gramido, Gondomar, até final do mês.

 












terça-feira, 10 de maio de 2022

Número da porta: 39

 (...)

Combinámos, então, tomar o chá às quatro. Assim, eu teria tempo para, depois, ir ao infantário buscar o bebé. Confesso que estive para não aceitar o convite. O que iria encontrar naquela casa? Era tudo tão estranho. Porém, a vizinha já não me inspirava receio: um pouco corpulenta, tinha o tique de encarocolar uma pequena madeixa de cabelo enquanto falava. Às quatro horas, desci as escadas e nem sequer precisei de bater à porta. Apareceu logo a mulher da voz meiga e disse-me, em tom muito baixo como a segredar, que desculpasse mas, afinal, não podia estar comigo e que o chá deveria ficar para outra tarde de sol. Sorriu com ternura e fechou a porta sem qualquer ruído. Vi o lado positivo da situação, aproveitando para ir buscar o bebé mais cedo e dar um passeio pelo parque.

Com o tempo sempre a passar veloz, no fim de semana regressei a Portugal sem ter voltado a ver a vizinha.

Quando, semanas depois, voltei a Londres, deparei, à porta do nº 39,  com uma pequena carrinha de mudanças. Não chegara a deslindar o mistério: o porquê daquele inusitado silêncio, o convite para o chá feito em tom normal e a desistência comunicada em surdina. E por que razão tinha dito ela que naquele dia não tinha limitações? Quem lhas imporia? O homem do violino? Que laços os uniriam? Se vinham outras pessoas morar para aquela casa, nunca mais teria resposta para estas questões. Como era uma situação que eu não dominava, subi e, olhando pela janela que dava para o jardim das traseiras, vi que já lá não estavam os vasos de flores.

Uns dias depois, tocaram à campainha logo de manhã cedo. Ainda estávamos todos em casa e o café, borbulhando, perfumava a pequena cozinha.

- Hello, disse eu, pegando no intercomunicador.

Era uma voz masculina.

- Vivo no nº 39, e gostava de vos fazer um pedido. Peço desculpa por vir tão cedo.

Entreolhámo-nos. Voluntariei-me para descer até à porta da rua, porque não tinha horários rígidos a cumprir. 

Estranho. Era o homem do violino que eu tinha visto semanas antes a tocar no jardim ao lado da mulher da voz meiga. Disse-me, semicerrando os olhos, como se a minha presença ou a minha voz o enfastiassem, que era músico e que passara a viver só, não deliberadamente, mas porque os ruídos próximos de outrem eram nefastos à sua necessária concentração.  Sem me olhar nunca nos olhos, fez o pedido:

- Seria possível não fazerem ruídos? Toco e estudo enquanto há a luz do dia. Só saio de casa quando tenho audições. Durante a noite, preciso igualmente de silêncio para ouvir os sons das raposas que também me inspiram para as minhas composições que deixarei à Humanidade. Atendendo à minha idade, não posso perder tempo.

Eu ia perguntar-lhe pela senhora da voz meiga, mas tive de subir as escadas depressa porque o meu filho e a minha nora estavam a descer com o bebé e a porta poderia, inesperadamente, fechar-se, apesar de não se ter pressentido qualquer sinal de vento.

 


Nota: 

Sempre que ia a Londres (espero lá voltar sem esperar tanto tempo), trazia algumas notas que ia registando no caderno ou na cabeça. Foi de lá que fui trazendo (esboços de) alguns contos e quase todas as histórias e rimas das Histórias da Clarinha.

Quando lá fui pela última vez, ainda não tinha havido a invasão da Ucrânia. Uma vez por semana, ia lá a casa uma senhora moldava - a D. Vitória. Julgo que também entrou numa história. Desta vez, apesar de o meu inglês não ser nada fluente e o dela ainda menos, acho que terá outras histórias a contar. Nem que seja pelos silêncios. 

 

domingo, 8 de maio de 2022

Número da porta: 39

 (...)

Acabei por lhe agradecer de novo ter-me ajudado a subir os degraus com o carrinho e ia pensando qual seria a razão daquele "Tem de ser assim".

No dia seguinte, quando cheguei e travei o carrinho, logo olhei para a porta com o n.º 39, que, porém, não se abriu. Nem vi qualquer luz, como às vezes acontecia. O meu olhar fixou-se nessa entrada enquanto levantava o carrinho e, com inusitada força, subi, apressada, os degraus até ao pátio. Abri a porta num ápice e logo a fechei, verificando se tinha ficado bem trancada. Eram estranhas aquelas aparições, de tão súbitas e silenciosas.

Esta pressa de entrar repetiu-se ao longo da semana porque não voltei a ver a vizinha da voz meiga e quase inaudível, cuja casa se mantinha às escuras, nem a porta se abriu às minhas chegadas do infantário com o bebé. Nos dias que se seguiram, nem sempre vim à mesma hora. Ou porque havia uma festinha no infantário, ou porque ficava a ver ou a comprar alguns produtos que as educadoras produziam para angariar fundos, ou porque passava pela padaria para comprar pão...

Uma tarde, pareceu-me ouvir o som de um violino. Reconheci ser música de Bach. Aproximei-me da janela, que dá para o pequeno jardim das traseiras, e vi a mesma senhora sentada numa cadeira com um homem ao seu lado a tocar violino. Fiquei por dentro do vidro a olhar e a ouvir.  E, curioso, parecia-me não ser a primeira vez que o tinha ouvido tocar. Ela, entretanto, levantou os olhos, viu-me e acenou-me em silêncio. Enquanto durava o gesto, o homem, repentinamente, parou de tocar, olhou no mesmo sentido, levantou-se, voltou para dentro, logo seguido por ela. Nessa tarde, fui ao infantário buscar o bebé mais cedo do que era habitual. Quando cheguei, não vi a vizinha nem ninguém que me pudesse ajudar, preferindo até que assim fosse.

Não sei se ela me causava medo, compaixão ou curiosidade, o que sei é que sempre estremecia pelas suas chegadas repentinas porque nada se ouvia, apesar de a parede da casa ser comum. Nem uma porta a fechar, nem a abrir, nem vozes, nem rádio ou televisão, nem o carteiro a tocar à porta... Só o som do violino de vez em quando. Cheguei a pensar que era um CD que, de repente, começava a tocar sozinho. Às vezes, em casa, falávamos disso ao jantar, mas logo mudávamos de assunto, porque o bebé chorava, ou fazia uma gracinha a que achávamos piada, ou queria que lhe lêssemos uma história... No dia seguinte, o trabalho era retomado e muitos factos sobrepunham-se a esse, que acabava por perder importância.

Com o ritual dos dias, continuaram intermitentes as saídas da vizinha do n.º 39 e as aparições quase de surpresa. Um dia, porém, estava eu a arranjar a melhor posição para erguer o carrinho e subir os degraus, vi e ouvi a porta a abrir-se normalmente com a vizinha a aproximar-se de mim, perguntando, num tom de voz também normal, mas sempre meigo, se eu precisava de ajuda.

- Sim, claro, disse eu. Muito obrigada. E acrescentei, sorrindo:

- Hoje não me assustei.

- Pois, hoje vejo que não, disse ela.

Agradeci, abri a porta, entrei e subi normalmente. Logo que pus o bebé no quadradinho mágico da sala, para ele brincar, ouvi, vindo do jardim das traseiras, uma voz que me chamava:

- Madam! Madam!

Aproximei-me da janela e ela disse-me olhando na minha direção:

- Vi agora que para amanhã se prevê bom tempo. Aceita vir tomar um chá comigo aqui no jardim?

- Sim, a que horas, perguntei.

- Amanhã, não tenho limitações. A que horas pode vir?

(...)

 

sábado, 7 de maio de 2022

Número da porta: 39

 (...)

Um mês depois, voltei a Londres e retomei a rotina habitual em casa do meu filho: tratar da casa, fazer as compras, caminhar, ir buscar o bebé, ler e escrever pequenas coisas... Ora, eu costumava ir ao infantário pelas cinco da tarde. No regresso a casa, o bebé palrava, eu cantarolava canções que sabia serem do seu agrado, mas o momento difícil para mim era subir os degraus exteriores com o carrinho. Quando chegava ao pequeno portão, ainda no passeio, olhava à minha volta para ver se havia alguém que me pudesse ajudar. Nem sempre avistava quem quer que fosse porque a rua era muito sossegada e passavam muitos minutos sem passar ninguém.

Num desses fins de tarde, de fria e cinzenta humidade, tentei ver se avistava alguém, como habitualmente, enquanto o bebé ia batendo palminhas de contentamento por termos chegado a casa e, finalmente, poder em breve brincar com o panda e os outros brinquedos. A chuva ameaçava no céu carregado. Havia os degraus para subir e o melhor era não perder tempo, porque podia começar a chover. Foi quando, de repente, sem ter visto ninguém nem ouvido qualquer ruído, surgiu uma mulher junto de mim, perguntando, em voz muito baixa e muito meiga, se eu precisava de ajuda.

- Sim, obrigada, desculpe, não a tinha visto - fui dizendo de forma desajeitada, sem nunca deixar de segurar bem o carrinho do bebé, assustada com a repentina aparição. Ela segurou de um lado, eu do outro e, já no pequeno pátio, agradeci. Ainda sem abrir a porta, despediu-se quase em surdina e vi-a entrar, silenciosamente, no n.º 39. Esquisito - pensei eu. Julgava que nem vivia ninguém na casa ao lado e, de repente, surge aquela pessoa. Que, na verdade, me ajudou bastante.

Subi as escadas interiores e a casa encheu-se de repente com as brincadeiras, as histórias, o pratinho com o jantar... E até me esqueci do que se tinha passado quando estávamos os três à mesa e o bebé brincava no pequeno parque a que tínhamos dado o nome de quadradinho mágico. Depois, veio o banhinho do bebé, os emails para ler e responder, as notícias que iam chegando à net, a leitura de algumas páginas do livro que andava a ler e... boa-noite, descansem bem... até amanhã!

O dia seguinte não foi muito diferente dos anteriores. Porém, o céu estava desanuviado e a tarde parecia mais clara quando regressei do infantário, embora o relógio indicasse a mesma hora. De novo, a chegada à porta de casa, a travagem do carrinho no passeio, a olhadela para ver se passava alguém a quem eu pudesse pedir ajuda e, de repente, enquanto olhava para a esquerda, apareceu-me a mesma mulher vinda do lado direito. Quase estremeci de susto outra vez.

- Desculpe, assustei-me - disse eu com a mesma falta de jeito, como tinha acontecido no dia anterior, não deixando de segurar bem o carrinho do bebé.

- Eu é que peço desculpa, disse-me ela, no mesmo tom muito baixo e meigo de voz, mas evito sempre fazer ruído com as portas e o meu calçado também é silencioso. Tem de ser assim.