Foi este o segundo volume da coletânea Anjos, 2022, da Editora Lugar da Palavra.
Partilho o texto que escrevi. Como me acontece quase sempre, há pormenores vividos e outros inventados.
Nota: a Dona Berta era professora primária nos anos 30 do século XX.
Anjo da infância e não só
Quando ela contava alguma deslocação mais longa de carro à mãe, sempre ouvia esta pergunta receosa: foste sozinha? E logo se seguia, com um sorriso divertido e carinhoso, a habitual resposta:
- Fui com o meu anjo da guarda.
Quando o dizia, recordava-se da oração que a mãe lhe ensinara em pequena, a ela e aos irmãos: "Anjo da guarda, minha companhia, guardai a minha alma de noite e de dia".
Ao ouvir a resposta já esperada, a mãe entreabria o seu sorriso de costumada abnegação e, por algum tempo, tal como quando partilhava poesia, esquecia-se dos medos que a idade avançada lhe agudizava: medo da guerra, dos assaltos, da violência, da solidão, da morte, da falta de água...
Para além da família e das orações, o que continuava a animá-la eram os versos que aprendera pela mão da Dona Berta, a professora primária, sempre por ela lembrada, apesar de mais de oito décadas já passadas. Ao dizer os versos que sabia de cor, ou aqueles que ela própria fazia, os seus olhos iluminavam-se de remoçada alegria.
E, apesar da velhice, nunca confundia as sílabas e as palavras dos versos que tantas vezes repetia, tal como as das orações. Para ela, versos e orações eram sagrados, por isso mereciam todo o respeito.
Mas voltemos à filha.
Pois bem, ela tinha uns anjos muito especiais. De carne e osso. Tinham nascido de si e, por sua vez, haviam-se reproduzido dando à luz outros anjos.
Quando estavam todos à volta da mesa, em hora de saboroso ritual das refeições, ela sentia que pedacinhos de céu se abriam em cada um desses momentos que voavam.
Silenciosamente, pedia ao seu anjo da guarda que a todos protegesse, embora soubesse que aos anjos não se pode nem deve pedir tudo e que a cada pessoa compete ir aprendendo a desenhar as suas asas.
Numa outra deslocação, a mãe voltou a perguntar-lhe se viajara sozinha, e a resposta, desta vez, foi que, para além do anjo da guarda, tinha tido a companhia da rádio. E falou, resumidamente, do conto 'Sempre é uma companhia', de Manuel da Fonseca, porque a leitura lhe revelava anjos que também a acompanhavam.
De tão religiosa que era, a mãe prestou mais atenção à primeira parte da resposta.
Para ela, havia seres que eram anjos, mas não gostava de o anunciar em voz alta. Não estava certa de que o anjo da oração diária - o anjo da guarda - admitisse seres terrenos no seu reino celestial. Podia até ser ofensa não lhe ter sido pedida permissão.
Sem certezas, a filha acreditava que o anjo, como anjo verdadeiro que era, ter-lhe-ia feito soar, com alegre convicção, que o nosso tempo - apesar de incompreensíveis e desumanas resistências - vai banindo tais distinções, havendo lugar para todos os anjos merecidos, sejam eles da terra ou do céu.
Porém, essa mensagem de voz angelical não chegou ao ouvido da mãe, porque o ouvido já não era o ouvido de antigamente.
A poesia, sim. Revelada pela Dona Berta - um anjo da sua infância e de toda uma vida.