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Acabei por lhe agradecer de novo ter-me ajudado a subir os degraus com o carrinho e ia pensando qual seria a razão daquele "Tem de ser assim".
No dia seguinte, quando cheguei e travei o carrinho, logo olhei para a porta com o n.º 39, que, porém, não se abriu. Nem vi qualquer luz, como às vezes acontecia. O meu olhar fixou-se nessa entrada enquanto levantava o carrinho e, com inusitada força, subi, apressada, os degraus até ao pátio. Abri a porta num ápice e logo a fechei, verificando se tinha ficado bem trancada. Eram estranhas aquelas aparições, de tão súbitas e silenciosas.
Esta pressa de entrar repetiu-se ao longo da semana porque não voltei a ver a vizinha da voz meiga e quase inaudível, cuja casa se mantinha às escuras, nem a porta se abriu às minhas chegadas do infantário com o bebé. Nos dias que se seguiram, nem sempre vim à mesma hora. Ou porque havia uma festinha no infantário, ou porque ficava a ver ou a comprar alguns produtos que as educadoras produziam para angariar fundos, ou porque passava pela padaria para comprar pão...
Uma tarde, pareceu-me ouvir o som de um violino. Reconheci ser música de Bach. Aproximei-me da janela, que dá para o pequeno jardim das traseiras, e vi a mesma senhora sentada numa cadeira com um homem ao seu lado a tocar violino. Fiquei por dentro do vidro a olhar e a ouvir. E, curioso, parecia-me não ser a primeira vez que o tinha ouvido tocar. Ela, entretanto, levantou os olhos, viu-me e acenou-me em silêncio. Enquanto durava o gesto, o homem, repentinamente, parou de tocar, olhou no mesmo sentido, levantou-se, voltou para dentro, logo seguido por ela. Nessa tarde, fui ao infantário buscar o bebé mais cedo do que era habitual. Quando cheguei, não vi a vizinha nem ninguém que me pudesse ajudar, preferindo até que assim fosse.
Não sei se ela me causava medo, compaixão ou curiosidade, o que sei é que sempre estremecia pelas suas chegadas repentinas porque nada se ouvia, apesar de a parede da casa ser comum. Nem uma porta a fechar, nem a abrir, nem vozes, nem rádio ou televisão, nem o carteiro a tocar à porta... Só o som do violino de vez em quando. Cheguei a pensar que era um CD que, de repente, começava a tocar sozinho. Às vezes, em casa, falávamos disso ao jantar, mas logo mudávamos de assunto, porque o bebé chorava, ou fazia uma gracinha a que achávamos piada, ou queria que lhe lêssemos uma história... No dia seguinte, o trabalho era retomado e muitos factos sobrepunham-se a esse, que acabava por perder importância.
Com o ritual dos dias, continuaram intermitentes as saídas da vizinha do n.º 39 e as aparições quase de surpresa. Um dia, porém, estava eu a arranjar a melhor posição para erguer o carrinho e subir os degraus, vi e ouvi a porta a abrir-se normalmente com a vizinha a aproximar-se de mim, perguntando, num tom de voz também normal, mas sempre meigo, se eu precisava de ajuda.
- Sim, claro, disse eu. Muito obrigada. E acrescentei, sorrindo:
- Hoje não me assustei.
- Pois, hoje vejo que não, disse ela.
Agradeci, abri a porta, entrei e subi normalmente. Logo que pus o bebé no quadradinho mágico da sala, para ele brincar, ouvi, vindo do jardim das traseiras, uma voz que me chamava:
- Madam! Madam!
Aproximei-me da janela e ela disse-me olhando na minha direção:
- Vi agora que para amanhã se prevê bom tempo. Aceita vir tomar um chá comigo aqui no jardim?
- Sim, a que horas, perguntei.
- Amanhã, não tenho limitações. A que horas pode vir?
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